quarta-feira, 28 de novembro de 2012

A CIDADE SEM LÁGRIMAS



A noite vai escorrendo entre as sombras e as luzes da cidade, arrepiada de frio, molhada nas poças que os carros vão espalhando ao acaso. Um homem sentado no café olha lá para fora depois de um café duplo e um folhado seco que lhe serviram de jantar. Agarra no telefone e ensaia uma mensagem mas arrepende-se de imediato e volta a olhar através da vitrina. Uma mulher arruma o pano da louça numa cozinha iluminada por uma luz fraca. O filho saiu para a faculdade e a casa ficou vazia, silenciosa. Senta-se na sala indiferente à televisão, pega num livro, lê duas frases e põe-no de lado. Um sem abrigo procura um lugar seco e abrigado para poder passar a noite, levando debaixo do braço um molho de cartões que lhe servirão de cama. Parece que pensa por vezes, mas não pensa nada, não espera nada, caminha apenas em busca de um lugar para passar a noite. O homem do café brinca distraído com o isqueiro, puxa a gola do casaco para cima antes de enfrentar a rua. Outra mulher fixa-se na internet, atenta a novidades, a frases novas que possa comentar.
Amanhã será…qualquer coisa. Qualquer coisa que se escapa entre sombras e luzes de uma noite que amanhece. Amanhã será mais um dia a caminho de lado nenhum. Os sonhos morreram espalhados no vazio pelas rodas da vida de todos os dias. O sonhos foram ontem quando tudo era possível, na idade em que era permitido sonhar. O homem do café, a mulher que acabou de arrumar a cozinha, o sem abrigo, a mulher da internet, já todos foram rostos, já foram corpos cheios de energia e esperança. Estiveram todos juntos numa noite como a de hoje, indiferentes ao frio. Foram actores numa pequena peça teatral, num pequeno filme onde se ouvia música que parecia vinda directamente do paraíso. Foram amantes insaciáveis em noites sem cansaço, criadores de sonhos e de esperança. Jantaram entusiasmados mal tendo tempo para se ouvir no meio da algazarra de estudantes. Hoje limitam-se a observar a cidade com o olhar vazio, esvaziados de ambições. Umas vezes por escolha própria, outras por escolha do tempo, ou da sobrevivência. Caíram e levantaram-se muitas vezes, caíram e levantaram-se vezes demais. Agora empurram os corpos em busca de uma noite, de um sono redentor que os liberte desta cidade sem nome. Não esperam nada, não querem nada, e por mais lágrimas que imaginem já não as conseguem produzir. Esqueceram-se como era chorar. Esqueceram quase tudo. Agora vivem indiferentes, empurrados pela lógica dos dias a caminho de nada.

A cidade vai escorrendo a noite por entre sombras e luzes fugidias, permanente, indiferente, implacável. Os homens e as mulheres que nela habitam vão-se arrastando a caminho de mais um dia. A cidade não lhes pertence. Só a solidão é deles e as lágrimas que querem chorar, não choram porque se esqueceram de como se faz.

 

Artur

sábado, 24 de novembro de 2012

ENTRE LENDAS E NARRATIVAS

                                                                     (*)

Ao Coronel Farinha Tavares
A vida militar é composta por longas páginas de medo e solidão, coragem e sacrifício. Ao se entregar à carreira das armas o indivíduo está a abdicar de uma série de componentes habituais da vida civil que nunca mais voltará a recuperar. Digamos, de uma forma geral, que a maior perda será a da conjuntura doméstica por troca com um colectivo permanente e omnipresente. Afastado da família, dos amigos, dos seus livros, da intimidade do seu sono, o indivíduo passará a dividir toda a sua realidade com outros indivíduos adquirindo nessa partilha uma camaradagem e uma solidariedade que nunca mais esquecerá ao longo da vida.Em cenário de guerra, a Vida e a Morte passarão a fazer parte da ementa diária. Num colégio interno dirigido por militares o ambiente não será tão radical embora as semelhanças sejam abundantes. Ninguém está em guerra mas o sono divide-se numa camarata para mais de 60 tipos, o duche diário é também um acto colectivo, o afastamento dos familiares, dos amigos, do espaço doméstico, essas são as principais semelhanças. A diferença é que neste caso ainda não somos homens e vamos de encontro a esta realidade com 10 anos. Aprendendo a lidar com o medo e com a solidão desde muito cedo, entre alunos e militares fica criado o espaço propício à criação narrativa. As histórias circulam com pontas soltas, recuperam partes de lenda, inventam heróis ou paspalhos ao sabor das simpatias. Em suma, as histórias são um dos elementos fundamentais da vida de homens solitários habituados a conviver com o medo. Ou, dizendo de outro modo, os guerreiros são feitos de medo, coragem, solidão, vida, morte e...de histórias.

Hoje lembrei-me de um professor mítico que tive por mais do que uma vez, militar, antigo aluno do colégio, e que leccionava juntamente com um irmão dele. Por alunos mais velhos vim a saber que as suas alcunhas (elemento fundamental indentificativo destes ambientes) eram o PV 1 e o PV2, alcunhas essas que nunca cheguei a perceber se já vinham do seu tempo de alunos ou se teriam sido colocadas no tempo de professores. E quanto ao PV, a doutrina dividia-se. Havia quem garantisse tratar-se da designação de um modelo de avião antigo, enquanto que outros, de forma mais prosaica, atribuíam as iniciais a "Pele Vermelha" em homenagem ao mais velho que tinha um rosto permanentemente ruborizado, vermelhinho. O irmão, por herança, levou com a segunda designação. Num jantar com ex-alunos mais novos fiquei a saber que no tempo deles o PV 2 era conhecido pelo "Pôdre", por razões que adiante veremos. E é precisamente do PV 2 que me lembro lindamente, sempre pelas melhores e mais caricatas razões.Tratava-se do coronel Farinha Tavares apesar de nunca o ter visto de uniforme. Deu-nos aulas de geografia e de desenho. No 4º ano (hoje 8º)as nossas salas de aula ficavam num primeiro andar alto na parte traseira dos claustros com vista para o páteo do Desenho. O F.Tavares conseguia fumar cinco e seis cigarros no espaço de 50 minutos. Umas vezes alinhava as beatas na parte da frente da secretária (daí conseguirmos contá-las), outras vezes atirava-as pela janela fora. A seguir aproximava-se da janela e espreitava lá para baixo a ver se não tinha acertado em ninguém. O tabaco era portanto uma parte essencial daquele homem, facto facilmente verificável na estratificação cromática do seu imponente bigode. Nada mais que três camadas a começar, de baixo para cima, amarelo, cinzento e branco. O Farinha Tavares, ou PV2, era indisssociável do cigarro.

Outra característica do Farinha Tavares era a famosa interjeição com que sublinhava o seu discurso. Talvez como elemento auxiliar de memória, ou por uma questão de pontuação, de tanto em tanto tempo a frase famosa era proferida, começando como uma interrogação de chamada à atenção da classe e seguida por um acompanhamento solidário. A frase era : "Hã? Estás a perceber?" Mas este "refrão" sofria mutações ao longo da aula. Passava rapidamente a "Hã? Tás a ceber" e terminava em "Hã tááás a ssser?"  Com vários "s" para realçar a sonoridade sibilina da pronúncia... Autênticas vozes de comando para a ordem unida da marcha dos rios e das cordilheiras, dos oceanos e continentes. É claro que, como no teatro, o estribilho (agora o "soundbyte") pegava e no intervalo era ouvir o eco da frase na clandestinidade do cigarrinho fumado nas casas de banho.

Uma última história do Farinha Tavares tem a ver com um uso comum no colégio. Todos os expedientes eram bons para pôr o professor a contar histórias e atrasar a matéria. Então na qualidade de antigo aluno era muito mais fácil. Bastava perguntar-lhe um ou outro pormenor do tempo dele que havia conversa para a manhã toda. Mas infelizmente com o Farinha Tavares esse capítulo já se tinha esgotado, ou melhor, ele já sabia do "que é que a casa gasta...hã, tááás a ssser?" Até que um dia houve um boateiro de serviço que descobriu que ele tinha estado preso na India. A meio da aula com o barco em andamento, quando a beata acabava de voar janela fora e ele espreitava, a pergunta saltou como se nada fôsse. Apanhado de surpresa o Farinha Tavares não teve tempo de se furtar. "Efectivamente...efectivamente, assim foi, é como dizes,rapaz...tááás a ssser?" Logo a seguir, antes que ele se recompusesse saltou a segunda questão. O cativeiro deveria ter sido uma experiência terrível. O Farinha Tavares fez uma pausa breve como que a recordar-se daqueles 12/14 meses num campo de prisioneiros na India. Depois respondeu quase comovido. "Foi uma tragédia, estive à beira do desespêro, hã? Tás a ssser. Diria mesmo mais: foi uma enorme tragédia. Eu estive prestes a enlouquecer porque estava à beira do colapso...hã? Tás a ssser?" E os nossos olhos cada vez se arregalavam mais. Á nossa frente estava uma lenda viva de uma das páginas mais recentes da nossa história. Ele olhava-nos por trás dos óculos e por cima do bigode que quase tremia e explicava a sua odisseia. "É que de repente eu estava sem mantimentos...isto é, sem tabaco, e então eram dois problemas enormes...Hã, tááás a ssser? Primeiro não tinha tabaco, e segundo, não fazia a mínima ideia como é que havia de comunicar com o indígena que nos guardava para me arranjar cigarros. Foi praticamente uma tragédia. Mas a certa altura, por gestos o indígena finalmente percebeu o que é que se pretendia e então...Hã? Tááás a ssser? O tipo lá foi lá dentro e voltou com uma zurrapa parecida com barbas de milho. Tá claro que me soube como um charuto cubano. Hã? Táááás a ssser? Tal era o estado de carência em que me encontrava. O cativeiro traz-me estas recordações terríveis. Hã? Tááás a ssser?"

O seu à vontade, a sua forma de estar de guerreiro do Império, o seu sentido de humor, a amizade que nos tinha faziam do Coronel Farinha Tavares uma lenda viva que se instalou definitivamente no nosso panteão colectivo. Eu, nunca mais o esqueci. "Hã? Tááás a ssser?"



Artur   (*) Imagens do livro "A Queda da India Portuguesa" - Crónicas da invasão e do cativeiro -. Carlos Alexandre de Morais Ed. Estampa Lisboa, 1995

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

AS MULHERES DE KAFKA



                                                                  Franz Kafka
O registo conhecido do universo feminino na vida de Franz Kafka ajuda-nos a enquadrar numa dimensão mais abrangente paradoxos e grandezas de uma obra singular que acabará por marcar toda a Literatura do século XX. Temos de um lado Milena Jesenska e uma breve relação de quatro dias, e depois Dora Dyamant ,com quem passará os últimos tempos da sua vida.
Kafka nasce e vive a maior parte do tempo da sua vida em Praga, sendo um pequeno judeu burguês, frágil e educado, contemporâneo de duas tradições em decadência.
Por um lado a austríaca, que havia feito de Praga o seu segundo foco espiritual e antiga capital do império. Por outro lado a tradição judaica, ponto de fricção entre um judaísmo ocidentalizado e germanizado, afastado das suas origens rurais e religiosas, e um judaísmo campestre, de idioma yidish, de grandes e profundas riquezas religiosas conservadas com orgulho da miséria material em que frequentemente florescem estes valores. Em "Carta ao Pai" ataca ferozmente a figura masculina que domina a sua infância e adolescência acusando-a de lhe haver mostrado o lado falso e superficial do judaísmo. Nunca foi marxista nem freudiano e a sua versão do judaísmo pouco ou nada tinha de comum com a dos seus correlegionários de 1900. Acima de tudo, Kafka sentia-se profundamente ferido com as explosões do século (I Guerra Mundial, revolução bolchevique na Rússia, miséria do pós-guerra, decadência dos valores), desenvolvendo em paralelo uma intensa necessidade de compreender, amar, redimir... Uma busca angustiosa e sofrida resultante do fracasso da política da ciência e da filosofia do séc. XIX.

Entre o judaismo e o cristianismo houve um fosso que Kafka nunca conseguiu ultrapassar. Esse salto que ficou por dar entre o Antigo e o Novo Testamento, essa timidez ontológica é representada n' "O Castelo". O " agrimensor" nunca chegará a conhecer o conde Westwest e também nunca saberá qual era a missão para que fora chamado, se é que alguém o tinha mandado vir ao castelo. Neste romance, o elemento social e o elemento político não são mais do que estados visíveis do elemento religioso. O que busca o "agrimensor", dentro dos limites do visível, sua única relação com a vida, é uma segurança metafísica. Como qualquer ser humano deseja saber o "porquê" da sua presença e, se fôr possível, conhecer o dono do seu destino. O conde Westwest, debaixo de cuja sombra vive e prospera todo o povo, é pois o inacessível. É o imperador, mas é Deus igualmente. E é também o pai de Kafka. Tanto em "O Castelo" como n' "O Processo", todos os personagens são funcionários típicos da gigantesca máquina burocrática da monarquia austríaca. Os personagens centrais, José K. e K. são cidadãos do império, ambos cristãos como quase todas as personagens de Kafka. Em "O Processo", vamos assistir à morte de um burocrata no meio da  burocracia e dos seus métodos que, desta maneira, se mata a si mesma. O homem que não quer deixar-se conduzir pela fluidez do tempo e da história, limita -se a congelar nos seus hábitos de burocrata. Morrerá como um cão. É o ciclo completo, imperturbável como um silogismo de todo o sistema fechado, condenado por si mesmo, matando os seus, sem se preocupar que estas mortes esboçam no ar da história a silhueta de um suicídio.

O drama de Kafka não é o conflito com o pai, ou melhor, o conflito com o pai é o conflito com Deus (do Antigo Testamento) não havendo aqui lugar para grelhas freudianas limitadoras. Enquanto que associado à figura paterna, para além de um self made man vitorioso, encontram-se os valores da responsabilidade. O que personificava o Pai era a Lei , as limitações impostas pela Família, pela Escola, o Dever, o Trabalho, o Amor. O que assusta Kafka no amor não é o acto em si, muito menos estar ao pé de uma mulher, mas os laços que isso representa enquanto responsabilidade familiar. Tudo o que é limitação o perturba.



"Tudo o que não seja literatura me aborrece e eu detesto, pois distrai-me e faz-me mal, ainda que sejam só imaginações minhas"



Kafka nunca quis ao seu lado uma presença permanente na medida em que a sua vida era a literatura. A maior parte dos escritores procuraram ansiosamente a mulher, não só para a retratar nas suas obras, como para viver com ela uma parte importante das suas vidas. Esta perplexidade permanente entre o literato que se quer isolar e o amante que quer e não quer, que tem medo do matrimónio, ou seja à Lei, ou seja ao Pai, e que transforma os últimos anos de Kafka num verdadeiro inferno de caprichos e aborrecimentos é impressionante. Típico de uma época decadente. É caso para perguntar: Por acaso conheceu Kafka o amor total, a entrega complicada e sem reservas da fusão de corpos e almas?

                                                            Milena Jesenska
Milena Jesenska era uma checa, filha de um professor da Faculdade de Medicina de Praga, casada com um judeu da boémia vienense. Conheceu Kafka porque quis traduzir textos seus para checo. Típica heroína de romances expressionistas, Milena dominou o escritor desde a primeira hora. Vestia como Isadora Duncan, trajes amplos que flutuavam, à maneira antiga, em torno do seu corpo, era de ideias livres, atravessava a nado, de noite, o rio Moldava, passava tardes inteiras nos ateliers dos pintores, tinha relações amorosas com eles, era o modelo de uma nova geração feminina. Tinha vinte anos e Kafka trinta e nove. Passam quatro dias juntos em Viena. Milena cura-o dos medos que o escritor tinha (de si próprio, da angústia que o impedia de se entregar inteiramente no acto de amar; da sua doença, a tuberculose). Dias depois Milena divorcia-se mas não se chegou a juntar com o seu novo amante.

                                                             Dora Dymant
A única mulher com que Kafka convive durante meses é Dora Dymant, que conhece em 1923 e com quem passará os últimos instantes da sua vida no sanatório de Kierling, perto de Viena, onde o escritor virá a morrer a 3 de Julho de 1924 sem se ter casado. Numa carta escrita ao seu grande amigo Max Brod, Kafka confessa que Dora lhe permitiu libertar-se das forças demoníacas que o atormentavam, nos dias em que viveu com ela numa felicidade quase conjugal, referindo-se a uma curta temporada em que alugaram uma casa perto de Berlim em 1923. Que forças demoníacas seriam essas que o impossibilitavam de amar mas que ao mesmo tempo lhe desenvolviam um desejo inato de o fazer e de ser retribuído? Algum limite se interpôs entre este homem e os seus, entre a possibilidade de amar e o amor, facto que se reflecte de forma clara no seu trabalho de romancista, onde a mulher tem um papel bastante reduzido.

Uma análise freudiana está completamente afastada na medida em que Kafka nunca quis matar o seu Pai para que este lhe deixasse livre trânsito para o amor da mãe. Não existe nenhum indicador retorcido nas relações do escritor com a sua família, pais e irmãs. Tudo decorre dentro da normalidade. A sua líbido é de uma outra matriz e Édipo não tem lugar neste drama. O drama é essencialmente existencial e o seu curto romance "Metamorfose" sintetiza-o claramente. Gregório Samsa, alter ego do autor, torna-se um animal no momento em que se consciecializa da sua solidão. O solitário é um ser anormal num século em que toda a gente vive misturada com toda a gente. O romantismo tem em Kafka a a sua última hora de actualidade, não já na sua obra mas na sua vida. Mas além do romantismo Kafka experimenta a solidão enquanto impossibilidade de amar, acrescida da angústia que se desenvolve em consequência desse facto. A máxima necessidade de ser livre, conjugada com a máxima vontade de amor pela Humanidade acabam por se combinar numa equação impossível de resolver.

Artur



quinta-feira, 22 de novembro de 2012

CCB

Não, não somos o melhor povo do mundo, como dizia o colossal galhofeiro das Finanças, rindo-se na cara e gozando à fartazana com aqueles a quem vai destroçando as vidas, pondo a sua enorme (in)competência ao serviço dos interesses instalados, dos credores e dos seus patrões alemães. Um verdadeiro inimigo do Povo, para retomar o título de um exemplar filme de George Schaefer. Também não somos - como pretende a folgazona da Jonet - uma cambada que passa a vida a comer bifes e a assistir a concertos de rock. Somos só uma comunidade a quem a modernidade assenta mal: apesar dos milhões de telemóveis, da Internet, do Facebook e de todas as parvoíces congéneres, ainda somos os mesmos rústicos com um leve verniz de civilização, de má qualidade,  mal aplicado e pronto a estalar à primeira intempérie. As estradas que fizémos à conta dos fundos europeus só serviram para melhor e mais rapidamente espalharmos lixo pelas bermas (ou despejar entulhos provenientes das obras das casas mais feias e inabitáveis do mundo ocidental). Ainda somos os mesmos, com terra debaixo das unhas, escarradela pronta e certeira, sem respeito pelos espaços públicos, sem apreço pela beleza, dentes estragados e sorrisos maliciosos. Ainda somos o pessoal da taberna (travestida de cafetaria), da carvoaria (disfarçada de mercearia fina), dos centros comerciais que fazem as vezes dos locais de lazer que não sabemos aproveitar ou que não temos dinheiro para frequentar. Desbravamos o nosso pequeno mundo de telemóvel nas unhas. Desbravámos o imenso mundo com os os olhos abertos de terror. Somos simultaneamente o povo do Quinto Império do Padre António Vieira, destinado a cumprir a profecia bíblica e a governar a orbe através do Rei de Portugal, governante do Império Cristão Universal (a mais delirante utopia messiânica que alguma vez foi imaginada) e o povo de Camilo Castelo Branco: capazes de sacudir o jugo das grandes potências e de nos submetermos a um tiranete medíocre e provinciano; capazes de derrubar um francês do cavalo, degolá-lo e a seguir palitar descontraidamente os dentes; de racharmos a cabeça do vizinho com uma sachola por causa de um fio de água e irmos depois à Missa Pascal e à desobriga perante o Senhor Cristo; capazes de sobreviver e resistir no meio do caos, permanentemente desconfiados do que vem "do alto" e "dos grandes", sabendo de antemão que daí só virão a expoliação, o confisco e os abusos; roubaram-nos a eternidade; deixassem que vogássemos ao sabor das correntes do tempo, intactos e pobres, carentes e enredados nas nossas pequenas e grandes fatalidades, amargurados ou felizes, inconscientes e imersos nas nossas ilusões e nos nossos sonhos de grandeza postiços e falsos como as jóias que os actores exibem no teatro. A única pena que tenho é essa : que não possamos entregar-nos sossegadamente ao estado de espírito que melhor nos caracteriza (não, não é a fatalidade expressa no Fado) e que melhor nos convém: o tédio. Incapazes de sentimentos nobres como a melancolia e a nostalgia (próprios das civilizações superiores), proponho que substituamos a nossa Constituição pelo "Livro do Desassossego" e que passemos o resto das nossas vidas numa sobreloja da Rua dos Douradores como espectadores impávidos e serenos do espectáculo do Mundo. É isso que nós somos: ternos, eternos e lambuzados de amoras.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

LAND OF HOPE AND DREAMS


(Whoaaa whoa-whoaaa, this train)
(I'm calling this train)
(Don't you wanna ride)
(This train, this train)
(This train, this train)
(Whoa-whoa, get on, get on, get on, get on, get on)

Grab your ticket and your suitcase, thunder's rolling down this track
Well, you don't know where you're going now, but you know you won't be back
Well, darling, if you're weary, lay your head upon my chest
We'll take what we can carry, yeah, and we'll leave the rest

Well, big wheels roll through the fields where sunlight streams
Meet me in a land of hope and dreams

I will provide for you and I'll stand by your side
You'll need a good companion now for this part of the ride
Yeah, leave behind your sorrows, let this day be the last
Well, tomorrow there'll be sunshine and all this darkness past

Well, big wheels roll through fields where sunlight streams
Oh, meet me in a land of hope and dreams

Well, this train carries saints and sinners
This train carries losers and winners
This train carries whores and gamblers
This train carries lost souls

I said, this train, dreams will not be thwarted
This train, faith will be rewarded
This train, hear the steel wheels singing
This train, bells of freedom ringing

[Clarence Clemons sax solo]

Yes, this train carries saints and sinners
This train carries losers and winners
This train carries whores and gamblers
This train carries lost souls

I said, this train carries broken-hearted
This train, thieves and sweet souls departed
This train carries fools and kings thrown
This train, all aboard

I said, now this train, dreams will not be thwarted
This train, faith will be rewarded
This train, the steel wheels singing
This train, bells of freedom ringing

Come on this train
People get ready
You don't need no ticket
Oh, you gotta do this
Just get onboard
Onboard this train (this train, now)
People get ready
You don't need no ticket (oh now, no you don't)
You don't need no ticket
You just get onboard (people get ready)
You just thank the Lord (people get ready)
You just thank the Lord (people get ready)
You just thank the Lord (people get ready)
(Come on this train, people get ready)
(Come on this train, people get ready) [fades]

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

GUILT TRIP


Na primeira audição julguei estar de volta ao tempo de "Darkness On The Edge of Town". A segunda, fez-me lembrar "Nebraska" ou "The River". Só à terceira percebi que em "Wrecking Ball" Bruce Springsteen disse adeus ao rock n' roll e deu as boas vindas a Woody Guthrie e ao Bob Dylan dos anos 60. Bruce Springsteen está muito zangado, diria mesmo que a zanga se transformou em cólera perante uma América devastada pela crise económica e pelos aprendizes de feiticeiro da finança. Sem ter perdido a ligação que o une à América profunda e à classe operária que a sustém, Springsteen alimenta-se das raízes dessa cólera e da tradição da canção de protesto para procurar responder à pergunta formulada no primeiro hino (We Take Care Of Our Own") . Tomamos conta de nós próprios e daqueles que nos rodeiam ? A resposta de Springsteen é claramente negativa, tal como fica demonstrado nas canções seguintes, sobretudo em "Jack Of All Trades" (the hurricane blows / brings the hard rain / when the blue sky breakes / it feels the world's gonna change / and we'll start caring for each other / like jesus said we might) canção na qual, depois desta breve mensagem de esperança e de mútuo conforto, a raiva surge de novo e em cheio (the banker man grows fat / working man grows thin (...) if I had me a gun, I'd find the bastards and shoot'em on sight).
O tom geral do disco é como a sua música : sombrio, marcial, grave, solene, uma espécie de country-folk musculado, enérgico que, por vezes, se tinge com laivos de Gospel e hip-hop.
A canção que dá título ao álbum refere-se à demolição do estádio dos Giants e à máquina de demolição (wrecking ball) que o destruiu, numa viagem nostálgica a um local de referência na vida do músico: na infância era lá que via jogar os seus ídolos desportivos; foi aí que deu alguns dos seus monumentais concertos (I was raised outta steel / here in the swamps of Jersey / some misty years ago / through the mud and the beer / the blood and the cheers / I've seen champions come and go (...)so raise up your glasses / and let me hear your voices call /'cause tonight all the dead are here / so bring on your wrecking ball) e essa imagem funciona como uma poderosa metáfora da crise que assola o país e o Mundo. Pesadamente simbólica this depression é o grito ferido de um homem que nunca se sentiu so down, so lost, so low. Springsteen, ele mesmo, parece estar em excelente forma. Mas esgota-se nos vazadouros desta América tão deprimida, à qual um laço visceral parece ainda uni-lo e que se manifesta na imensa energia que passa por aqui. Muitas vezes, como disse no início, o fantasma desse outro álbum de crise que foi Darkness On The Edge of Town perpassa por aqui. Springsteen também não o esqueceu, mas tenta olhar em frente e fazer o seu trabalho. Meio-pregador, meio-boxeur. Indestrutível.
Essa tenacidade nasce num quase filme por onde desfilam as sombras dos casais em busca do dinheiro fácil, dos operários que perderam tudo e sonham com a morte dos canalhas, os banqueiros que engordam e da gente comum que aperta o cinto, biblicamente resistentes como a Mãe Jod em "As Vinhas da Ira" de John Ford (nós somos o povo, não podem destruir-nos), imagens servidas por uma música que entronca nas mais profundas raízes americanas, nas gaitas de foles irlandesas, nos gospel-choirs, loops electrónicos e o espírito das Seeger Sessions.
E, depois da raiva, vem o conforto, a esperança, a busca de redenção. O gospel e as imagens bíblicas insinuam-se em Land of Hope And Dreams, talvez a mais bela canção do disco (big wheels roll through fields / were sunlight streams / meet me in a land of hope and dreams / well, I will provide for you and I'll stand by your side (...) leave behind your sorrows / let this day be the last / tomorrow there'll be sunshine / and all this darkness past) e prolongam o apelo humanista de People Get Ready. Sob um tom de folk céltico, We Are Alive apela ao espírito vivo das vítimas da violência americana através da história, sejam eles grevistas, negros em luta pelos direitos cívicos ou imigrantes clandestinos. Esta canção, poderosa nota de esperança e de espírito de resistência poderia ser a epítome deste disco poderoso, talentoso, enraivecido e, simultaneamente, comovido e fraternal. A vaga de indignação que varre o mundo encontra aqui os seus ecos e as suas ressonâncias na voz de um compositor que está de regresso, depois de alguns pontos baixos e actos falhados, mas que regressa sempre e que, desta vez, regressa com um discurso político sem concessões, duro e directo, uma pistola apontada às mentes e corações dos seus compatriotas e das pessoas que em todo o Mundo reconhecem a dimensão da tragédia e querem encontrar a sabedoria que lhes permita fazer-lhe frente. Bruce Springsteen regressou. Desta vez no papel do herói.

LUCIDEZ


domingo, 18 de novembro de 2012

O FUTURO É UM PLANETA DISTANTE

Tal como as famílias grandes que muitas vezes só se conseguem encontrar em casamentos ou funerais, por mais contactos e promessas de encontros trocadas, a minha familia de amigos só consegue registar um numero elevado (completo é impossível) de presenças no mesmo local em ocasiões especiais. Por exemplo, num aniversário. Desta forma regressamos ao tempo em que tínhamos 20 anos e nos víamos todos praticamente todos os dias. Revivemos o passado de forma intermitente. E já vamos cheios de sorte...a de ainda cá estar para o fazer. Da última vez calhou sentar-me ao lado de um antigo colega de trabalho do aniversariante. Um tipo que muito estimo, reformado há já alguns anos, a caminho dos 70. Não tenho nem nunca tive grande simpatia pela sua geração ( a dos meus pais). No entanto há nela, afinal como em tudo, excepções, gente que nunca se limitou a viver nas fronteiras etárias, geográficas e temporais do ano em que nasceu, gente que usou o seu estatuto de antiguidade para ajudar, ensinar, ser solidário com os mais novos, em vez de os usar como subalternos temporais, prestadores de serviços para satisfação de frustrações antigas. Falámos dos tempos que vão correndo, das perspectivas e possibilidades que o futuro desenha. Ele relembrou que o grande obstáculo do seu tempo tinha sido a guerra colonial. Ou se ia ou não se ia, e quando se ia, ou se voltava ou se ficava lá. Depois de tudo isso passado a vida correu com normalidade até à reforma. O grande obstáculo da minha geração ( que anda pelo fim dos 40 a caír para os 50) foi o começo de vida. Trabalho escasso e parcial, obrigação de viver fora do local em que crescemos por especulação imobiliária, drogas, tirania dos partidos a interferir em todos os aspectos da vida social e a secar toda a originalidade à sua volta. Não levámos com uma guerra mas travámos duras batalhas, contabilizámos as nossas baixas. Agora a geração dos nossos filhos (alguns já entrados na casa dos 20) a deparar-se com mais um cenário de guerra. No fundo todos acabam por entrar em combate, mas para poderem sobreviver, para ter direito a uma vida. E quem se recusa a aceitar a ordem que lhe é imposta, mais obstáculos encontra pelo caminho. Recordo uma discussão acalorada com o meu pai em que insistia na ideia de que tinha sido roubado o futuro à minha geração. Ele olhou para mim e perguntou-me: "Hás-de me dizer qual foi a geração a quem não foi roubado o futuro..." Não lhe consegui responder. Hoje compreendo o que ele queria dizer. Todas as gerações são despojadas de futuro, de esperança. Para alimentar as mais antigas, para manter no poder quem já lá se encontra. Qualquer acto de rebeldia será severamente punido, qualquer atitude de não alinhamento receberá o ostracismo, qualquer originalidade será ignorada. É assim que um geração entra no mundo e na vida, à força, em guerra e pelo direito a um espaço, um pedaço de vida. Falo obviamente daqueles que tendo personalidade se recusam a alinhar com o jogo já existente, daqueles que resistem, daqueles que se tentam manter dignos e não se importam com o preço a pagar.

Na segunda parte da conversa falámos das reformas, do posicionamento das nossas idades em relação às modas que se instalam. Ele ainda goza da sua reforma, eu provavelmente terei uma miséria para sobreviver quando fôr velho, os meus filhos de certeza que não terão reforma nenhuma. Dizia-me ele que, tal como vamos vivendo sem pensar na morte, não nos conseguimos convencer que a vida é uma sucessão de ciclos, um contrato de aluguer a termo certo. Um dia será a nossa vez de saír de cena e mais vale aceitar essa ideia do que pensar que ela nunca chegará. Quem vier atrás que apague as luzes. A nossa cena tem um tempo para acontecer e depois outro grupo tomará conta do palco. Despojados de futuro e de esperança os sobreviventes acabam por construir qualquer coisa, dar alguma forma às suas vidas. A peça que interpretamos não faz sentido nenhum...nunca fez. Daí mais uma razão para sermos dignos de nós próprios, mais uma razão para darmos a mão ao "outro" em vez de a fechar sobre a sua cara. Mais uma razão para promover o bem estar geral e aliviar tanto quanto possível o peso esmagador deste absurdo que nos governa. Porquê? Se calhar porque nos amamos uns aos outros sem o sabermos, porque a nossa tendência pende mais para o Espírito do que para a animalidade. Porque a maior, a única vitória certa da nossa existência é a de sabermos que não vamos ficar cá para sempre. E isso dá-nos uma felicidade, uma alegria sussurrada que nada nem ninguém poderá roubar...



Artur

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

NOVEMBRO

For last year's words belong to last year's language.
And next year's words wait another voice.

T.S. Eliot "Four Quartets"



Será que vou encontrar outra voz para as palavras deste novo ano ? Será que vou encontrar outro ano para estas novas palavras ? Que nova linguagem me espera ao cabo dos trabalhos que cada novo ano me traz ?

NÃO É MEIA NOITE QUEM QUER


António Lobo Antunes

 

2012

 

Os livros do Mestre são bilhetes deixados na beira de um penhasco que nos convidam a saltar, não têm meio-termo. Ou vamos ou ficamos do lado de cá a ver o que poderia ter sido uma boa leitura. A opção do salto é uma vertigem, um bailado entre o medo e a ansiedade, uma entrada a pique num universo que nos é proposto, sem rede nem protecções. Sabemos como entramos naquele mar que nos convida com a certeza de que nunca sairemos dali da mesma maneira. Uma parte de nós fica para trás enquanto um outro tanto acaba por ser adquirido na viagem. Os livros do Mestre não são para ler, com a pontuação arrumada, as ideias lavadas e a narrativa alinhada por pesos e alturas. Os livros do Mestre são autênticas aventuras dos sentidos que nos atropelam em cada frase estilhaçada, em cada pensamento intermitente, em cada personagem que começa a falar e pára de repente para continuar mais adiante, indiferente ao tempo a que se refere e a quem lhe termine a frase. Mas no ambiente caótico deste mar de escrita, tal como no mar real, o truque é abandonarmo-nos às vagas, deixar que a corrente nos leve, apreciar essa vertigem de estar num mundo que não dominamos e fazer a viagem. Essencialmente “sentir”, permitir que as células do romance se confundam com as nossas, ver no silêncio o desenho do diálogo do leitor com os outros personagens.

Descendente do (para mim) melhor romance da obra do Mestre (“Explicação dos Pássaros”), este “Não É Meia-noite Quem Quer” apresenta-se num fim-de-semana de despedida de uma mulher que visita a casa de férias da sua infância antes de se suicidar. Em ambos os romances estamos perante a morte anunciada, suicida ou não, do personagem central. Se no primeiro caso se vai desenrolando a desarrumação total da vida presente do homem, neste é a recordação da vida que se arruma na cabeça de uma mulher com 50/60 anos. A memória de uma família em que todos sofrem para dentro, em que os gestos de carinho são intenções que ficam suspensas no ar, quatro filhos, um pai bêbado e uma mãe austera, um espaço familiar em que o pudor de demonstrar o afecto é tão grande que ninguém acaba por perceber bem, sequer, se alguém gosta de alguém. As memórias de uma mulher que carrega consigo a dor da morte do irmão que se recusou ir para a guerra e se atirou do penhasco, do outro que voltou da guerra e se afastou da família, do surdo, da mãe adultera e disciplinadora que a segurou ao colo uma vez, do pai que se escondia na dispensa no meio das garrafas, de um marido que foi mais acidental do que passional, das amigas com que partilhou afectos. E mais importante para quem recorda antes de morrer, não é saber se foi feliz, não é pescar remorsos, rancores, culpas, maravilhas por explorar. Apenas fazer correr o filme de uma vida, repetir cenas, frases e gestos e encontrar finalmente a estação da aceitação das coisas na sua realidade mais óbvia. Não se trata de perdoar nem muito menos aceitar o que quer que seja, mas fazer do registo um exercício de testemunho existencial. Esta foi a nossa vida, vamos morrer a seguir, uma coisa e de pois outra sem etiquetas nem grandes pensamentos para embrulho. Assim é a existência, esse fenómeno pouco seguro, pouco dado a certezas e justificações, essa simples vivência, objecto de registo e indiferença, de memória e tentativa de compreensão.

“Não É Meia-noite Quem Quer” é mais um momento de paixão e vertigem em que as páginas se percorrem sem cansaço num mar de memórias de uma mulher que tenta fazer as últimas arrumações do seu passado e, desse modo, o registo da sua existência. Ficamos amigos dela sem reservas a partir do momento em que a sua história se torna a nossa história, em que a sua respiração nos devolve o ar, em que o seu coração nos faz circular o sangue das nossas veias. Porque a Humanidade é apenas uma.

Obrigado Mestre.

 

Artur

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

PEREGRINO E ESTRANGEIRO


Tomo de empréstimo o título de um livro de Marguerite Yourcenar para relembrar o aniversário de Albert Camus (nascido a 7 de Novembro de 1913), já que estas três palavras evocam no meu espírito uma imagem desse homem único que um dia escreveu:

"… a criança morrera naquele adolescente magro e vigoroso, de cabelos revoltos e olhar arrebatado, que trabalhara todo o Verão para levar um salário para casa e acabava de ser nomeado guarda-redes titular da equipa do liceu e, três dias antes, saboreara pela primeira vez, quase desfalecido, o contacto com a boca de uma jovem.” (O Primeiro Homem)

Relembro essa página gravada na pedra em que Camus se descobre "o primeiro homem", sem o referente do pai, construindo-se a partir de si próprio e de uma vivência ética da pobreza que o marcaria enquanto indivíduo e marcaria todo o século XX fundamentando-se na reflexão que enceta na sua escrita sobre múltiplas dimensões de uma humanidade que, longe de se dar como adquirida, permanentemente se põe em causa, se questiona e se refaz, invocando a marca da estraneidade e do absurdo da condição humana prisioneira de um destino que a amarra à pedra de Sísifo e a impede de se completar.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

VW





A Filosofia ensina que a negação pode ser determinante. É algo mais do que a negação da possibilidade. A privação tem consequências que não podemos antecipar ou avaliar com acerto. O livro não escrito é o que poderia ter feito a diferença. Que nos poderia ter permitido falhar melhor. Ou talvez não.  
George Steiner

Tornei-me um estranho para mim próprio, e nem na minha alma encontro respostas.
S. Agostinho


Tinha um rosto de jovem Parca (M. Yourcenar dixit), um rosto (digo eu) onde se expressavam a complexidade e a fragilidade da vida. Ninguém como Virginia Woolf conferiu tanto sentido à tese de Sartre segundo a qual "toda a técnica romanesca remete para uma metafísica". Era ela que não acreditava em relógios, no tempo mensurável e divisível em parcelas fixas e estanques capazes de balizar uma vida humana, decompondo-a em instantes definidos e definíveis; sabia que o tempo que conta é o subjectivo, que a personalidade individual se faz e refaz como as vagas (já lá vamos), não podendo ser narrada do exterior, mas sim a partir de um interior que é ele mesmo indeterminado, indefinido, em constante mutação, um pouco à maneira de Goethe descobrindo que a forma é metamorfose.
O corolário deste modo de pensar a escrita literária surge-nos sob a forma de personagens em silhueta, fantasmas absortos no nevoeiro, despojados de particularidades exteriores e ricos em percepções, imagens e recordações e atinge a plenitude no romance (?) "As Vagas" que culminam uma arte essencialmente elíptica, anti-realista e baseada em constantes metamorfoses dos conteúdos emocionais da consciência, libertando-se progressivamente da tirania dos factos e das formas a fim de surpreende no instante mesmo em que ocorre o escoar-se no tempo dessa coisa perecível a que chamamos vida. Essa mesma vida não passa, afinal, de uma manta de retalhos, de peças de empréstimo, de vagas sucessivas de encontros e memórias, miragens, quimeras, ilusões, sonhos, de destroços e de momentos fugidios de felicidade e de outros momentos, ainda mais ilusórios e fugidios de liberdade, sendo o romance um reflexo fiel e necessário dessa incoerência e do caos que habita aquilo a que chamamos consciência. A obra dessa escritora elusiva e frágil inunda-nos constantemente com as mesmas matérias, com as exactas substâncias de que a vida é feita: sensações, o volume confuso das impressões que somos, a fim de captar por meio de clarões isolados e descontínuos a realidade contínua (ou a continuidade que julgamos constituir o núcleo duro da realidade, como se a realidade fosse real).
Muitas vezes a técnica revolucionária de Virginia Woolf faz-me lembrar o cinema, como se estivéssemos no domínio puro daquilo que se designa por "camera eye"; ora faz deslizar o aparelho de captar imagens ao longo do seu eixo, ora o desloca do interior para o exterior, exactamente como sucede com os "travellings", as panorâmicas e outros movimentos de câmara, subtis e arrojados que são o segredo de alguns (muito poucos) grandes mestres da arte cinematográfica. A estes movimentos faz suceder efeitos de montagem, encadeamentos fluidos, sucessões de movimentos em frente e de retorno, elipses (comparáveis às do grande mestre delas que foi Kenji Mizoguchi), sucessão e escala de planos nos campos da consciência como, no cinema, se sucedem os planos no espaço e no tempo. O resultado é uma multiplicação até ao infinito de pontos de vista distintos, sucessivas perspectivas de imagens sobre uma mesma realidade, visando aumentar o conhecimento dessa mesma realidade e o aprofundamento das sensações que provoca. Como se percebe, Woolf nunca quis explicar nem descrever fosse o que fosse: deu a ver, explorou, fez sentir, submergiu os leitores nas correntes de consciência, abdicou de forçar o objecto tornando-o domesticado e acessível. Com ela, por causa dela, o artista já não o semi-deus que tudo observa e tudo compreende; a partir dela é um de nós, mergulhados nas mesmas incertezas, nos mesmos temores, na mesma e exacta indeterminação e nos mesmos instantes breves de felicidade.
Para descrever um mundo em pedaços (o seu e o nosso, hoje), inventou uma linguagem em separação, esquartejada  e uma técnica que procede por saltos, parcelada. As grandes obras literárias são assim : não basta que nos mostrem que somos apenas um mosaico de impressões, uma tábua rasa na qual se vêm inscrever os fenómenos que nos são exteriores e que nos dilaceram ou nos proporcionam alegria, não basta que nos digam que somos isso num tempo incaptável, arbitrariamente dispostos num espaço que nos foi dado habitar, mal ou bem: é preciso mostrá-lo, é necessário ver as imagens sucederem-se às imagens, os instantes aos instantes, é preciso que as frases nos dilacerem, nos puxem para o abismo, nos partam o coração, que a pontuação nos arranque a pele e que, por vezes, não ouçamos mais que uma sequência de palavras descosidas, desgarradas, ensanguentadas e uivadas ao vento. Mas ao mesmo tempo que nos mostra que somos vítimas (muito pouco inocentes) do tempo que passa e nos destrói, das sensações violentas e imprevistas que nos isolam dos outros, dos acontecimentos e dos acasos que nos vão desumanizando, a linguagem ambivalente de Virginia Woolf, a ausência de estruturas seguras naquilo que escreveu, mostra-nos esse outro tempo que goteja lentamente dentro de nós e que, longe de nos destruir, nos fortalece provisoriamente contra o caos circundante.
Mas não chega a ocultar-nos que as vagas atiram contra a praia os destroços do que fomos - miragens, quimeras, sonhos ilusões - e os cadáveres lívidos do que somos. Como dizia outro grande escritor. "entre a dor e o nada, prefiro a dor".

UM NADA QUE SERÁ QUALQUER COISA

Um raio de Sol oblíquo desenha no chão a grelha das frestas do estore. Encostado a um cigarro tranquilo distraio-me com as argolas de fumo que a boca vai expelindo em contracções mecânicas. A televisão desligada com o sinal vermelho de presença, por cima a estante dos livros, soldados de chumbo alinhados em parada dos tempos, bibelôs, alguns retratos. Mais a um canto a mesa com as fotografias dos que já foram, o meu avô muito magro, a minha avó com vinte e poucos anos, uma jovem linda vestida com um vestido leve em paisagem campestre. O Sol que se vai deitando lentamente, a grelha que se alarga até ser sombra, cada vez mais sombra, o cigarro a apagar-se ao fim da tarde. Títulos e mais títulos de romances inventados a esta hora do dia, Outonos preguiçosos, contemplativos, paisagens campestres inocentes, mulheres jovens a preto e branco, homens magrinhos com chapéus de aba redonda, que sorriem. Venerandos farfalhudos de suíças arrebitadas em uniformes de gala, tias com penteados altaneiros e óculos de modelos estranhos parecidos com o Batman. Eu todo nu sem dentes com um caracol em cima da testa e olhar apreensivo (talvez frio), a minha irmã em pose assustada a protestar contra um flash inesperado, o meu irmão sentado ao colo do Pai Natal a chorar baba e ranho, os livros a cantar títulos outonais para uma plateia de soldados de chumbo pouco participativa, a televisão em modo escuro, a tarde que vai morrendo lentamente em esplendores de luz espalhados pelo tapete da sala. Um dia tudo isto não vai passar de uma recordação, um dia eu não serei mais do que uma recordação, talvez um jovem magrinho a segurar um peixe ridículo de panamá na cabeça ao lado do meu tio, um caracol a sair do panamá, o meu tio de bigode, a televisão muda. Um dia tudo isto não será mais do que…qualquer coisa. Qualquer coisa entre a memória e o prazer, a meditação e o nada. Um dia tudo isto será qualquer coisa, qualquer coisa como um filme guardado nos arquivos de uma cinemateca qualquer, terá existência real mesmo que ninguém saiba que existe. Estará enrolado numa caixa metálica circular e identificado com uma etiqueta. Um título outonal, o filme de um gajo, a sala de um gajo, as fotografias e os livros, enquanto o Sol se deita lentamente. Uma mulher nova a preto e branco, um filósofo antigo sentado na estante com as pernas a abanar

- A continuidade? Uma chachada…

A despejar o cachimbo distraído sobre a cabeça dos soldados de chumbo,

- A memória, a continuação, o presente…uma valente chachada.

o peixe ridículo a reclamar que quer voltar para casa, o antepassado farfalhudo desconfiado a esticar o olhar sobre uma garrafa de whisky, o meu tio sem bigode numa cama do hospital a arfar para uma máquina, um soldado mais atrevido para o filósofo

- E se fosses cagar a puta da tua mãe ?

Um dia tudo será um nada que será qualquer coisa, qualquer coisa que se apaga lentamente ao sabor do sono do Sol, como a sombra que vai crescendo no tapete enquanto apaga os últimos raios de uma tarde de Outono. Assim se apaga o cigarro, os livros, os soldados de chumbo, as fotografias dos que já foram, as fotografias do que já fomos, as memórias. Assim se enrola um filme antes de o acondicionar cuidadosamente numa lata circular, colocar uma etiqueta de identidade e arrumar numa arrecadação de uma cinemateca qualquer, esperando que um dia alguém o encontre numa tarde de Outono. Que alguém o encontre e resolva pôr a tocar num ecran mudo por baixo de uma estante. Que alguém acenda um cigarro e fique ali simplesmente a olhar, enquanto o Sol se vai deitando devagar e a sombra cresce sobre a luz do tapete.

 

Artur

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

THE MAN THEY LOVE TO HATE

Dizia o Coronel Vasco Lourenço : "Eles não podem ser tão estúpidos que não percebam que estão a destruir o país".


Podem, podem. Provavelmente, o Vasco Lourenço não imagina a que abismos podem conduzir a estupidez e a imbecilidade humanas. Não concebe, talvez, a que Himalaias de estupidez pode ascender esta mistura explosiva de arrogância, ignorância, maldade, ganância, incompetência, selvajaria e poder. Ignora, porventura, a definição que Roland Barthes deu de estupidez:

"A estupidez é a euforia do lugar"

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

DESENCONTROS

"Às vezes sentimo-nos desamparados sem saber que desamparados sempre, outra pessoa na sala desamparada também, sorrimos-lhe, sorri-nos de volta e embora pensemos que sim os sorrisos não se cruzam, as palavras não se encontram, dispersam-se antes de chegarem, que palavras seriam, a mão que pega na nossa mão é um nós que toca, os móveis viram-se de costas, as jarras, embora ali, ausentes, os objectos que julgamos conhecer perguntam
Quem és tu?"

António Lobo Antunes in "Não é Meia- Noite Quem Quer"