segunda-feira, 19 de novembro de 2012

GUILT TRIP


Na primeira audição julguei estar de volta ao tempo de "Darkness On The Edge of Town". A segunda, fez-me lembrar "Nebraska" ou "The River". Só à terceira percebi que em "Wrecking Ball" Bruce Springsteen disse adeus ao rock n' roll e deu as boas vindas a Woody Guthrie e ao Bob Dylan dos anos 60. Bruce Springsteen está muito zangado, diria mesmo que a zanga se transformou em cólera perante uma América devastada pela crise económica e pelos aprendizes de feiticeiro da finança. Sem ter perdido a ligação que o une à América profunda e à classe operária que a sustém, Springsteen alimenta-se das raízes dessa cólera e da tradição da canção de protesto para procurar responder à pergunta formulada no primeiro hino (We Take Care Of Our Own") . Tomamos conta de nós próprios e daqueles que nos rodeiam ? A resposta de Springsteen é claramente negativa, tal como fica demonstrado nas canções seguintes, sobretudo em "Jack Of All Trades" (the hurricane blows / brings the hard rain / when the blue sky breakes / it feels the world's gonna change / and we'll start caring for each other / like jesus said we might) canção na qual, depois desta breve mensagem de esperança e de mútuo conforto, a raiva surge de novo e em cheio (the banker man grows fat / working man grows thin (...) if I had me a gun, I'd find the bastards and shoot'em on sight).
O tom geral do disco é como a sua música : sombrio, marcial, grave, solene, uma espécie de country-folk musculado, enérgico que, por vezes, se tinge com laivos de Gospel e hip-hop.
A canção que dá título ao álbum refere-se à demolição do estádio dos Giants e à máquina de demolição (wrecking ball) que o destruiu, numa viagem nostálgica a um local de referência na vida do músico: na infância era lá que via jogar os seus ídolos desportivos; foi aí que deu alguns dos seus monumentais concertos (I was raised outta steel / here in the swamps of Jersey / some misty years ago / through the mud and the beer / the blood and the cheers / I've seen champions come and go (...)so raise up your glasses / and let me hear your voices call /'cause tonight all the dead are here / so bring on your wrecking ball) e essa imagem funciona como uma poderosa metáfora da crise que assola o país e o Mundo. Pesadamente simbólica this depression é o grito ferido de um homem que nunca se sentiu so down, so lost, so low. Springsteen, ele mesmo, parece estar em excelente forma. Mas esgota-se nos vazadouros desta América tão deprimida, à qual um laço visceral parece ainda uni-lo e que se manifesta na imensa energia que passa por aqui. Muitas vezes, como disse no início, o fantasma desse outro álbum de crise que foi Darkness On The Edge of Town perpassa por aqui. Springsteen também não o esqueceu, mas tenta olhar em frente e fazer o seu trabalho. Meio-pregador, meio-boxeur. Indestrutível.
Essa tenacidade nasce num quase filme por onde desfilam as sombras dos casais em busca do dinheiro fácil, dos operários que perderam tudo e sonham com a morte dos canalhas, os banqueiros que engordam e da gente comum que aperta o cinto, biblicamente resistentes como a Mãe Jod em "As Vinhas da Ira" de John Ford (nós somos o povo, não podem destruir-nos), imagens servidas por uma música que entronca nas mais profundas raízes americanas, nas gaitas de foles irlandesas, nos gospel-choirs, loops electrónicos e o espírito das Seeger Sessions.
E, depois da raiva, vem o conforto, a esperança, a busca de redenção. O gospel e as imagens bíblicas insinuam-se em Land of Hope And Dreams, talvez a mais bela canção do disco (big wheels roll through fields / were sunlight streams / meet me in a land of hope and dreams / well, I will provide for you and I'll stand by your side (...) leave behind your sorrows / let this day be the last / tomorrow there'll be sunshine / and all this darkness past) e prolongam o apelo humanista de People Get Ready. Sob um tom de folk céltico, We Are Alive apela ao espírito vivo das vítimas da violência americana através da história, sejam eles grevistas, negros em luta pelos direitos cívicos ou imigrantes clandestinos. Esta canção, poderosa nota de esperança e de espírito de resistência poderia ser a epítome deste disco poderoso, talentoso, enraivecido e, simultaneamente, comovido e fraternal. A vaga de indignação que varre o mundo encontra aqui os seus ecos e as suas ressonâncias na voz de um compositor que está de regresso, depois de alguns pontos baixos e actos falhados, mas que regressa sempre e que, desta vez, regressa com um discurso político sem concessões, duro e directo, uma pistola apontada às mentes e corações dos seus compatriotas e das pessoas que em todo o Mundo reconhecem a dimensão da tragédia e querem encontrar a sabedoria que lhes permita fazer-lhe frente. Bruce Springsteen regressou. Desta vez no papel do herói.

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