Não, não somos o melhor povo do mundo, como dizia o colossal galhofeiro das Finanças, rindo-se na cara e gozando à fartazana com aqueles a quem vai destroçando as vidas, pondo a sua enorme (in)competência ao serviço dos interesses instalados, dos credores e dos seus patrões alemães. Um verdadeiro inimigo do Povo, para retomar o título de um exemplar filme de George Schaefer. Também não somos - como pretende a folgazona da Jonet - uma cambada que passa a vida a comer bifes e a assistir a concertos de rock. Somos só uma comunidade a quem a modernidade assenta mal: apesar dos milhões de telemóveis, da Internet, do Facebook e de todas as parvoíces congéneres, ainda somos os mesmos rústicos com um leve verniz de civilização, de má qualidade, mal aplicado e pronto a estalar à primeira intempérie. As estradas que fizémos à conta dos fundos europeus só serviram para melhor e mais rapidamente espalharmos lixo pelas bermas (ou despejar entulhos provenientes das obras das casas mais feias e inabitáveis do mundo ocidental). Ainda somos os mesmos, com terra debaixo das unhas, escarradela pronta e certeira, sem respeito pelos espaços públicos, sem apreço pela beleza, dentes estragados e sorrisos maliciosos. Ainda somos o pessoal da taberna (travestida de cafetaria), da carvoaria (disfarçada de mercearia fina), dos centros comerciais que fazem as vezes dos locais de lazer que não sabemos aproveitar ou que não temos dinheiro para frequentar. Desbravamos o nosso pequeno mundo de telemóvel nas unhas. Desbravámos o imenso mundo com os os olhos abertos de terror. Somos simultaneamente o povo do Quinto Império do Padre António Vieira, destinado a cumprir a profecia bíblica e a governar a orbe através do Rei de Portugal, governante do Império Cristão Universal (a mais delirante utopia messiânica que alguma vez foi imaginada) e o povo de Camilo Castelo Branco: capazes de sacudir o jugo das grandes potências e de nos submetermos a um tiranete medíocre e provinciano; capazes de derrubar um francês do cavalo, degolá-lo e a seguir palitar descontraidamente os dentes; de racharmos a cabeça do vizinho com uma sachola por causa de um fio de água e irmos depois à Missa Pascal e à desobriga perante o Senhor Cristo; capazes de sobreviver e resistir no meio do caos, permanentemente desconfiados do que vem "do alto" e "dos grandes", sabendo de antemão que daí só virão a expoliação, o confisco e os abusos; roubaram-nos a eternidade; deixassem que vogássemos ao sabor das correntes do tempo, intactos e pobres, carentes e enredados nas nossas pequenas e grandes fatalidades, amargurados ou felizes, inconscientes e imersos nas nossas ilusões e nos nossos sonhos de grandeza postiços e falsos como as jóias que os actores exibem no teatro. A única pena que tenho é essa : que não possamos entregar-nos sossegadamente ao estado de espírito que melhor nos caracteriza (não, não é a fatalidade expressa no Fado) e que melhor nos convém: o tédio. Incapazes de sentimentos nobres como a melancolia e a nostalgia (próprios das civilizações superiores), proponho que substituamos a nossa Constituição pelo "Livro do Desassossego" e que passemos o resto das nossas vidas numa sobreloja da Rua dos Douradores como espectadores impávidos e serenos do espectáculo do Mundo. É isso que nós somos: ternos, eternos e lambuzados de amoras.
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