sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

O PRIMEIRO DIA

É sempre uma brisa nova, um ar desconhecido desenhado na esperança de melhor tempo. O primeiro dia do resto das nossas vidas, uma eternidade de repetições, uma realidade que nunca muda, porque nada muda, porque o Tempo tem o seu tempo de mudar, um tempo e um “porquê” que não nos pertence.
Amanhã é sempre o primeiro dia do resto das nossas vidas mas o tempo que mais pesa é sempre aquele que recorda, aquele que vai pescar momentos de felicidade. O tempo que interessa é o tempo que já não temos, aquele que se recorda com palavras e gestos lentos de apreciador.
O Tempo meus amigos, essa entidade que não existe, é tão real como o futuro que está para chegar, como as esperanças que nos alimentam para não terminar antes do tempo.
Existimos nós e algumas memórias que fintam as mágoas dos dias sem sentido. O Tempo somos nós. Todos os “amanhãs” são o primeiro dia do resto das nossas vidas… até ao último dia.
Artur

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

FELIZ NATAL


...são os votos sinceros deste blog para todos os seus leitores, ouvintes,espectadores, utilizadores, críticos, anónimos, antónimos, heterónimos, homónimos, estudantes, reformados, discriminados e consumidores em geral. Pelo menos esta noite vamos fingir que nada se passa a não ser o Inverno na rua e a família à mesa, risos e tranquilidade.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

RECORDAÇÕES


(Fachada do Templo de Abu Simbel no Egipto)

Há épocas da nossa vida que podemos reduzir em duas ou três frases curtas e outras que davam para encher romances extensos, tipo Tolstoi, que o interesse nunca esmoreceria. Quando chega o Natal o carteiro da existência deixa impreterivelmente um enorme pacote de recordações à nossa porta, pacote esse que vai aumentando todos os anos. A vantagem de envelhecer é precisamente a da alegria que há em recolher esse pacote e tirar de lá só aquilo que nos apetece. Como se fossem fotografias velhas recuperadas nas limpezas de uma divisão esquecida da casa. Este ano apetece-me falar do Natal de 74.
Nesse ano, eu e os meus amigos tínhamos 12 anos de idade e vivíamos todos dentro de um colégio interno centenário onde, por exemplo, já tinha estudado o meu avô. Em Abril desse ano tinha sido a Revolução. Lá fora o ambiente fervia em incerteza e alegria. O futuro do país era uma incógnita que tropeçava em tentativas de golpes de estado, manifestações, greves, extremismos, prisões, exílios, etc. Dentro do colégio no entanto, a vida mantinha-se inalterada. Os corredores centenários de pedra dos claustros mantinham-se intimidantes, prontos a dar-nos um “calduço” se os atravessássemos a correr, a mata espreguiçava-se ao ritmo do Inverno, vestida de folhas secas, balouçando a sua melodia ao vento no alto dos eucaliptos, o campo de futebol coleccionava piscinas de lama e gravilha ficando impraticável para qualquer actividade desportiva pelo menos até meio do segundo período, os professores continuavam as suas actividades. E entre estes dois mundos vivíamos nós, comentando efusivamente as actividades da revolução como se falássemos de uma série da televisão, continuando a vida daquela casa centenária como que tripulando uma máquina do tempo.
Independentemente de viver em pleno Renascimento na corte dos Medici, ou nas ruas de Paris no momento em que reis sobem ao cadafalso, quando se tem 12 anos há coisas muito mais importantes a fazer como estabelecer amizades que irão durar uma vida inteira , perceber o manual da procriação, definir os primeiros interesses de conhecimento, ouvir aquela música fantástica da banda cujo nome tivemos dificuldade em pronunciar das primeiras vezes que quisemos dizer a outro.
O Zé, o Alexandre, o António e eu voluntariámo-nos para o departamento de Arqueologia no nosso espaço de actividades extra-curriculares, orientado pelo nosso eterno Prof. De História, um entusiasta das coisas mais insignificantes que nunca nos deixava de prender a atenção. Das futuras eternas grandes amizades passámos a visitar duas vezes por semana uma “casa” cheia de surpresas. Fotografias sobre Pompeia, as expedições arqueológicas ao Vale dos Reis no Egipto, as pirâmides dos Maias, as manifestações do Paleolítico superior no nosso território, antas e cromeleques, tudo era fascinante. Foi nessa altura que li o meu primeiro livro até ao fim. Era sobre todas estas expedições arqueológicas e intitulava-se “Deuses, Túmulos e Sábios”.
Pouco antes das férias de Natal a minha avó resolveu dar-me uma prenda antecipada. Nessas férias iríamos os dois até Londres a casa da minha tia que já lá vivia há uns anos. O meu primo tinha nascido em Agosto desse ano e ainda não conhecia o meu tio Frank (um homem tão extraordinário que justifica um post inteiro só para ele).
E assim foi. Em época de grandes mudanças e sob um clima de incrível agitação no nosso país, eu tinha 12 anos, tinha descoberto a Arqueologia, vivia num mundo antigo fora do mundo e descobria um mundo novo num país estrangeiro onde voltei muitas vezes. Em alturas mais negras da minha vida, aquele fim do primeiro período do ano lectivo de 74/75 saltava da estante da memória e instalava-se no meu Presente sem que fizesse nenhum esforço para isso. Hoje percebo que tinha sido feliz sem o saber. Tinha conquistado um lugar dentro de mim que nunca mais abandonei.

Artur

NÃO SABEMOS NADA

Não há nada melhor do que começar um texto com uma tirada redundante, uma frase bombástica que poderia incorporar um diálogo de um filme. Uma coisa tipo: “ Morte? Que sabem vocês sobre a morte?”… e depois aplicá-la ao contexto daquilo sobre o que estamos a escrever nesse momento. Por exemplo: “Felicidade? Que raio sabemos nós sobre a felicidade?”
Que raio sabemos nós sobre o que quer que seja, receptores passivos da informação industrial, da”massificação” cultural, condenados a uma algazarra ensurdecedora que não é mais do que um jogo onde são sempre os mesmos que acabam a perder? Que sabemos nós, afinal?
Sabemos o que vivemos, sabemos as pessoas que conhecemos, sabemos coleccionar memórias e seleccionar aquelas que mais nos interessam no momento. Que raio sabemos nós sobre a felicidade se não a conseguiríamos identificar nem que ela se sentasse em cima da nossa cara?
“O Paraíso não é um lugar mas um breve momento que conquistamos dentro de nós.” Esta frase foi escrita pelo Mia Couto e é daquelas frases que encerra em poucas palavras quase toda a sabedoria da existência. Não sabemos nem nunca saberemos o que será a felicidade. Só a memória e o significado interior é que, em conjunto, nos podem dizer se fomos alguma vez felizes… Deste modo, fica aberto o caminho para uma história de Natal, para um tempo em que alguém foi feliz embora na altura não o soubesse.

Artur

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

ADEUS JOÃO


Todos acabamos por embarcar para o ultimo voo, para aquele de onde não há regresso. O destino, à semelhança de todos os voos que fazemos, é sempre uma incógnita. Uma incógnita de meteorologia, agitação social, tipo de passageiros, doenças à nossa espera, avarias, prolongamento de estadias, colegas que ainda não conhecemos. Toda a nossa vida de tripulantes é feita dessa incerteza que nos rouba alguns dos melhores e dos piores momentos da vida…porque estamos sempre em algum lugar fora dela. Agarramo-nos então ao pouco que nos resta, a essa tábua de salvação para manter a sanidade mental ou baixar a febre tropical ou simplesmente trocar dois dedos de conversa que nos ajudam a compreender que ainda estamos vivos apesar de pairar fora da vida. Conheci-te nessas circunstâncias. Um Natal em Bangcoque, uma peça da escola do primeiro filho em Johanesburgo, um AVC do meu pai em Cabo Verde, o casamento de um amigo em Luanda... escolhe um. Perdidos em paisagens estranhas e gentes desconhecidas, valem-nos os colegas, que rapidamente se tornam amigos, quase parentes. Contigo voltei à vida em conversa amena, entre dois ou três copos num bar anónimo de um hotel qualquer. Sempre que nos encontrávamos falávamos de tudo e de nada, como fazem os amigos, ao longo destes vinte e tal anos. Dávamo-nos bem, conseguíamos compreender “o outro” embora com vinte anos de diferença a marcar as nossas idades. Partiste agora e eu não me consegui despedir.
Antes assim. Quem chegar primeiro ao balcão anónimo do hotel desconhecido pede uma cerveja para o outro. Não estou triste porque sei que haveremos de nos voltar a ver. Hoje sou eu que demoro mais tempo a chegar ao bar anónimo. Mas conforta-me saber que tu já lá estás com uma cerveja em cima do balcão à minha espera. Até já João
Artur

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

NUMA CIDADE QUALQUER

Um hotel, um aeroporto e um autocarro entre eles. Uma cidade escura à meia-noite após um dia de chuva. Podia ser o princípio de um filme. Scorcese molhava as ruas de Nova Iorque quando filmava de noite para melhor captar os brilhos da iluminação artificial. No meu caso, o princípio do filme é apenas uma sessão contínua numa cidade qualquer, digamos, Belo Horizonte. Ruas e ruas desertas, taipais de lojas corridos, uma luz teimosa a um canto e um homem solitário à porta a falar e a gesticular para o vazio. Uma bicicleta parada a uns metros dele.
Uma conversa de e-mail trocada com a minha mãe em Melbourne, fora de horas, desfasada de simultâneo, entre diferenças horárias e computadores sonâmbulos, tempos mortos que insistem em falar. Tive um bisavô que viveu e morreu por estas paragens. Isso até sabia vagamente, muito por alto. O que não sabia era que se tratava de um plantador de café. Contou o meu avô que desembarcou nos finais dos anos 40 com a mãe e os irmãos no Rio de Janeiro e demorou três dias a chegar à fazenda do pai dele. Daí um tio-avô em S. Paulo e uma descendência que nunca conheci. O meu avô parou por aqui mas seguiu para a Austrália. O pai dele era uma espécie de Indiana Jones, pistola de um lado e chicote do outro, chapéu de feltro, a dureza típica de quem vive da terra. Uma boa história para tentar um dia destes.
Um homem é feito de histórias. Perdão…Um homem é “construído” por histórias. O seu rasto é um livro que muitos ou poucos conseguem ler. Mesmo as que se inventam pertencem sempre a alguém.
Uma cidade escura que se prepara para dormir, uma rua deserta de lojas fechadas, um homem que fala sozinho a poucos metros de uma bicicleta. Comunicações interrompidas que ainda assim conseguem falar, um livro que se lê em folhas dispersas pelo vento a caminho de um aeroporto. As histórias desconhecidas que escreveram o nosso DNA, o sentido cada vez mais difícil de encontrar numa cidade escura, numa rua qualquer. Há sempre um homem que fala sozinho dentro de nós…
Artur