quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

RECORDAÇÕES


(Fachada do Templo de Abu Simbel no Egipto)

Há épocas da nossa vida que podemos reduzir em duas ou três frases curtas e outras que davam para encher romances extensos, tipo Tolstoi, que o interesse nunca esmoreceria. Quando chega o Natal o carteiro da existência deixa impreterivelmente um enorme pacote de recordações à nossa porta, pacote esse que vai aumentando todos os anos. A vantagem de envelhecer é precisamente a da alegria que há em recolher esse pacote e tirar de lá só aquilo que nos apetece. Como se fossem fotografias velhas recuperadas nas limpezas de uma divisão esquecida da casa. Este ano apetece-me falar do Natal de 74.
Nesse ano, eu e os meus amigos tínhamos 12 anos de idade e vivíamos todos dentro de um colégio interno centenário onde, por exemplo, já tinha estudado o meu avô. Em Abril desse ano tinha sido a Revolução. Lá fora o ambiente fervia em incerteza e alegria. O futuro do país era uma incógnita que tropeçava em tentativas de golpes de estado, manifestações, greves, extremismos, prisões, exílios, etc. Dentro do colégio no entanto, a vida mantinha-se inalterada. Os corredores centenários de pedra dos claustros mantinham-se intimidantes, prontos a dar-nos um “calduço” se os atravessássemos a correr, a mata espreguiçava-se ao ritmo do Inverno, vestida de folhas secas, balouçando a sua melodia ao vento no alto dos eucaliptos, o campo de futebol coleccionava piscinas de lama e gravilha ficando impraticável para qualquer actividade desportiva pelo menos até meio do segundo período, os professores continuavam as suas actividades. E entre estes dois mundos vivíamos nós, comentando efusivamente as actividades da revolução como se falássemos de uma série da televisão, continuando a vida daquela casa centenária como que tripulando uma máquina do tempo.
Independentemente de viver em pleno Renascimento na corte dos Medici, ou nas ruas de Paris no momento em que reis sobem ao cadafalso, quando se tem 12 anos há coisas muito mais importantes a fazer como estabelecer amizades que irão durar uma vida inteira , perceber o manual da procriação, definir os primeiros interesses de conhecimento, ouvir aquela música fantástica da banda cujo nome tivemos dificuldade em pronunciar das primeiras vezes que quisemos dizer a outro.
O Zé, o Alexandre, o António e eu voluntariámo-nos para o departamento de Arqueologia no nosso espaço de actividades extra-curriculares, orientado pelo nosso eterno Prof. De História, um entusiasta das coisas mais insignificantes que nunca nos deixava de prender a atenção. Das futuras eternas grandes amizades passámos a visitar duas vezes por semana uma “casa” cheia de surpresas. Fotografias sobre Pompeia, as expedições arqueológicas ao Vale dos Reis no Egipto, as pirâmides dos Maias, as manifestações do Paleolítico superior no nosso território, antas e cromeleques, tudo era fascinante. Foi nessa altura que li o meu primeiro livro até ao fim. Era sobre todas estas expedições arqueológicas e intitulava-se “Deuses, Túmulos e Sábios”.
Pouco antes das férias de Natal a minha avó resolveu dar-me uma prenda antecipada. Nessas férias iríamos os dois até Londres a casa da minha tia que já lá vivia há uns anos. O meu primo tinha nascido em Agosto desse ano e ainda não conhecia o meu tio Frank (um homem tão extraordinário que justifica um post inteiro só para ele).
E assim foi. Em época de grandes mudanças e sob um clima de incrível agitação no nosso país, eu tinha 12 anos, tinha descoberto a Arqueologia, vivia num mundo antigo fora do mundo e descobria um mundo novo num país estrangeiro onde voltei muitas vezes. Em alturas mais negras da minha vida, aquele fim do primeiro período do ano lectivo de 74/75 saltava da estante da memória e instalava-se no meu Presente sem que fizesse nenhum esforço para isso. Hoje percebo que tinha sido feliz sem o saber. Tinha conquistado um lugar dentro de mim que nunca mais abandonei.

Artur

5 comentários:

Anónimo disse...

Vim descobrir-te por aqui, e é logo esta a 1ª história que leio! Lembro-me de tudo, do professor , de vocês e até desse livro que vos apaixonou! Bom que é recordar.
Cristina Murteira

Vitor disse...

Venho por este meio informar que já me encontro disponível para receber prendas de natal. Evita as filas e as correrias no acto da entrega, aceito cheques visados, dinheiro vivo, roupa de marca, telemóveis topo de gama. Até vivendas de luxo…
Despeço-me aguardando o teu presente. Como deves estar teso como eu, aceito do coração, um simples sorriso...e foi um prazer ler-te o ano que finda.

Boas festas

A.Teixeira disse...

Excelente texto, delicioso de tanto respingar nostalgia.

É um dos Mistérios da Vida, tal como o facto de nunca se encontrar o local da Terra onde nasce um arco-íris, esta nossa impossibilidade de perceber no próprio momento que se está a ser feliz…

Artur Guilherme Carvalho disse...

Cristina,
A sintonia e as coincidências são duas peças de roupa que vestem o mistério da Vida. Gostei muito que aparecesses por aqui. Volta sempre e deixa comentário. Bjs.
Vitor,
Se tivesse, não hesitaria em te dar pelo menos um dos artigos da lista que enumeraste. Mas por aqui o que abunda são palavras, histórias e imagens...e são todas tuas. 1 abraço e Boas Festas
António,
É difícil ver o filme com isenção, quando um dos actores eras tu. Mas o mais fascinante desta história com quase 40 anos é que ainda cá andamos, lembramos e vamos falando um com o outro a arrastar as arteroses. Feliz Natal antes que isto comece a descambar para a lágrima.

Unknown disse...

Gostei bastante do relato que fez Artur, recordando a infância e constato que foi presenteado nos comentários, com 2 presentes de Natal, pelo menos. A Cristina que teve oportunidade de testemunhar o que disse e que ao fim de tanto tempo aparece e o Vitor que fez parte de outros momentos da sua vida. Apesar de atrasada, desejo que tenha passado um Bom Natal, junto de quem gosta e na simplicidade do que tiver desejado.