quarta-feira, 31 de maio de 2017

DIA MUNDIAL DO TRIPULANTE DE CABINE - O GLAMOUR E A POIA

Entre tantas travessias do oceano que separa a Europa das Américas, há sempre algumas que se tornam peculiares porque quando para o homem é uma situação rotineira, as circunstâncias das convergências universais logo o desarmam pela coisa inesperada, que ao sê-lo obrigam-no o repensar que ao cabo de três décadas em velocidade Warp e em materializações e desmaterializações nas margens de cada continente, afinal... ainda não viu tudo.

Farto de jornais e revistas que nada acrescentam, vi a PIL'ali à mão (PIL - Passenger Information List). Não resisti ao apelo do momento e decidi ir em demanda de nomes peculiares. Sucesso. Apontei-os.
Mal sabia eu nesse momento que pouco depois estaria a engendrar a ligação da poia com os nomes apontados para me rir um bocado.

Para já, nomes. Nomes de gente real, saídos da cabeça de irreais baptizantes registados numa única lista qualquer:
Tercília, Careta, Tumbeiro, Cezana, Joanadarc, Santa Ivanir, Deusa Cypriano, Clelder, Zamprogno, Eslania, Zileide, Zeneide, Glaucia, Heimlich, del Puppo, Auzenir, Poli, Mori, Maranganhe, Paccou, Malizia, Mariuza Uliana, são alguns dos nomes de companheiros só desta viagem que pretendo registar para se algum dia quiser baptizar alguma personagem que a imaginação possa parir.

(Parindo)
Depois as situações. 
Podia começar pelo Gustavo que quer ser Gustava porque nasceu no corpo errado. Talvez uma das transformações mais bem conseguidas que eu vi, denunciado pela voz de cana rachada...  mas não. Remeto-me antes para as situações particulares que obrigam por exemplo a desmontar do enorme glamour das viagens aéreas para conseguir ir até ao chão da casa de banho resgatar uma poia tão solitária, redondinha e bem feita, que até faz suspeitar de algum canídeo à solta que confrontado com a própria impossibilidade de chegar com o rabinho à sanita, se rende à força da sua natureza e delicadamente a depõe no chão, mesmo defronte dela. Agora que penso nisso, há uma probabilidade esmagadoramente maior de o canídeo ou canídea ser portador de um dos nomes que mencionei, por exemplo 'del Puppo', ou saído do Paccou, que a possibilidade de eu ganhar o Euromilhões e assim por breves segundos, deixar de existir neste plano enquanto apanho 'poops' do chão de uma casa de banho de uma nave voadora. Nem a Santa Ivanir, e muito menos a Deusa Cypriano me valeram nesta hora de aflição e apneia, na qual não me lembro por ter deixado de existir nesses breves segundos, se terei feito alguma Careta ou se algum Careta me a terá deixado. O que é certo é que foi uma Malizia da parte de quem fez tal trabalho e por isso mereceria um pena idêntica à sofrida pela Joanadarc. Julgo que a Mariuza estará inocente, já que foi feita entre o Brasil e Portugal... suspeitos mesmo será a dupla Poli e Mori, que nos remete para dois operacionais da Mafia calabresa. Ou Maranganhe que deve ser primo afastado do Gungunhana. Tumbeiro, pode ser nome de bobo zombeteiro, sempre à espera de pregar uma peça. Já as Tercília, Eslania, Zileide, Zeneide, Glaucia e Auzenir, deixam-me uma dúvida maior quanto à sua culpabilidade. Tal como a Cezana, que deve ser artista pintora e o que estava no chão, pela forma como estava, era mais da área de escultura, não evidenciando sequer ter sido pintada à pistola. Muito menos o resultado de uma manobra de Heimlich, a algum engasgado que a expelisse pela bocarra.
E para finalizar, Zamprogno as mãos no lume que Clelder está inocente, enquanto me divirto a ver os convidados a entrar na casa de banho descalços, como sempre acontece em todos os voos. Não será contudo, aquele que estendendo os pés para além do seu domínio durante as nove horas de duração da travessia, manteve as bases esticadas mas devidamente calçadas em território alheio.
Viva a poia!
E a poia a quem a deixou.

30 de Maio de 2017

Hélder Martins




sábado, 6 de maio de 2017

ATÉ LOGO TIA



Tanto quanto sei, continuo à espera que venhas do trabalho ao fim da tarde encostado ao parapeito da varanda que é maior que eu, para irmos dar uma voltinha antes do jantar. Se estivermos no Verão sei que poderei contar com um gelado na pastelaria, se estivermos no início do mês até pode acontecer que me compres um carrinho de miniatura na papelaria. Sei que quando chegares, apesar de cansada ou desiludida com o namorado o teu rosto estará sempre desenhado com um sorriso e uma palavra amigável para me dar. Por isso quando a tarde começa a chegar ao fim corro para a varanda e encosto-me ao parapeito que é maior que eu a espreitar para o fim da rua à espera de te ver chegar. E conversaremos sobre tudo e nada como velhos amigos a caminho da pastelaria e depois a caminho do jardim enquanto saboreamos um gelado.
Tanto quanto sei não me lembro de ter conhecido alguém mais generoso do que tu, mesmo quando era malcriado ou proferia frases irresponsáveis que percebia logo a seguir que te deixavam triste. Triste como eu fiquei quando te foste embora começar uma nova vida noutras paragens, triste como quando me lembro de ti depois de partires outra vez. Da primeira vez cheguei a abrir as tuas gavetas e a meter a cabeça lá dentro para cheirar os restos da tua presença. Agora restam-me as lembranças de uma vida, a história de nós os dois que começa lá atrás, muito atrás quando usava calções e andava sempre esfolado nos joelhos. A vida continuou, a vida continua sempre. As pessoas que amamos nunca chegam verdadeiramente a morrer, arranjam um lugar na mesinha da sala no meio das fotografias dos outros que foram antes. É onde tu moras agora. Doce, meiga, tolerante e bonita como sempre foste. Com as barbatanas que te ajudavam a nadar na praia que eu depois herdei, com os melhores natais da minha vida em tua casa em Inglaterra com o meu tio e o meu primo. Com aquela tarde na baixa londrina em que um adolescente desastrado como eu só fez asneiras, só disse disparates perante o teu ar tranquilo e compreensivo. Consegui despejar uma Coca Cola por cima de mim e encher um cachorro quente com mostarda de Dijon que não conhecia até deitar fumo das orelhas, tropeçar numa velha “bifa” no metro que ia caindo ao chão. Ter treze anos é tão estúpido e tão solitário que se não houver ninguém que nos vigie pode-se rapidamente precipitar numa tragédia. Mas não foi assim porque estavas lá tu. Foste mais uma vez a garantia, a tolerância, o conselho amigável que me dizia: “não é grave se falhares…de vez em quando acontece…”; “ parece que é o fim do mundo mas amanhã o mundo continua…e tu também”. Queria dizer-te tanta coisa, agradecer-te, segurar outra vez as tuas mãos nas minhas, abraçar-te quase até ao sufoco. Para que saibas que não me esqueço de ti nem da longa caminhada que fizemos ao longo de uma vida inteira. Para que saibas que te agradeço profundamente a permanente disponibilidade, a delicada mão sempre estendida para uma festa, uma ajuda, a mão que tantas vezes me lavou o rabo. Não me esqueço, nunca o vou fazer. Não me esqueço que terminei o meu primeiro romance em tua casa num Verão acidentado, onde depois de muita maluqueira, muita confusão, muitos “anos 80” decidi apanhar o primeiro autocarro em Victoria Station e bater-te à porta. Lá estavas tu e o tio e o Chris e os dois gatos (o Snowy e o Smokey), lá estavam vocês todos em forma de família e porto de abrigo, albergue exclusivo, lá estavas tu e o teu sorriso. Não me esqueço. Fiquei a dormir no teu quarto para poder “trabalhar melhor”. Ganhei peso com o teu empadão, ganhei cor, voltei à vida. Não me esqueço. Como qualquer miúdo de calções e joelhos esfolados à espera da água oxigenada e do penso rápido encostado a um parapeito de uma varanda maior que eu.
Tanto quanto sei as pessoas têm que morrer, é o problema de se estar vivo. Mas as histórias, os caminhos que as pessoas fazem juntas, os natais, a porta sempre aberta, tudo isso fica vivo de forma permanente. Como aquela mesinha ao canto da sala onde caminhas para a água com as barbatanas debaixo do braço. Um dia sei que acabarei por ir parar lá. E quando isso acontecer vou correr atrás de ti de calções e joelhos esfolados para que passes a água oxigenada e coles o penso rápido. E, quem sabe, pode ser que depois consigamos ir à pastelaria comprar um gelado e passear até ao jardim. Eu sei que tu vais voltar a aparecer por trás da esquina. Muitos beijinhos tia Paula.



Artur