terça-feira, 28 de agosto de 2012

ENTÃO E SE..?

Às vezes vou tranquilo a passear o cão pelo paredão a caminho da praia, quando, volta na volta, lá está ela, junto ao mar, cabelos soltos ao vento, internada nos seus pensamentos, olhos postos no horizonte. Outras vezes calha cruzarmo-nos no caminho, cumprimentamos uns “bons dias” muito formais e tudo fica na mesma. Registo a sua presença sem parar, mas não deixo de seguir caminho a pentear uma pergunta inútil. E como seria, como teria sido se ..? Aquelas perguntas que nunca se conseguem responder porque já atingiram o limite, o tempo útil de receber uma resposta. Há quê? Talvez vinte anos atrás, talvez mais, lembro-me de nos termos cruzado com um reservatório muito maior de expectativas no bolso. Possibilidades, desenvolvimentos. Ela não percebeu, eu tinha pressa, ou, se calhar, tinha medo e não avançou, ou não soube ler os meus avanços que, à falta de correspondência se começaram a tornar grosseiros e foram obrigados a retirar. Ou se calhar foi o medo que me mandou embora e é ainda hoje ele que me faz estremecer com a imagem da silhueta dela a caminhar ao longo do pontão. E o que é que isso interessa, mastigar imagens e possibilidades, inventar destinos que nunca aconteceram, tremer de medo ou ansiedade atrasados? O que é que isso interessa?

O meu avô morreu muito novo, nunca o conheci mas, por esquinas do destino acabei por ser educado pela mulher dele. Cresci na casa dele, entre recordações, histórias, livros e memórias dele. Aprendi a conhecê-lo nas palavras da minha avó, nos gostos literários com que decorava a sua biblioteca, os apartes e as notas que escrevia nas margens, nas fotografias. Nunca o vi e no entanto conheci tão bem aquele homem. E não deixo de me interrogar, como teria sido se..? Se o tivesse conhecido materialmente. Seria ele aquele homem o que as suas memórias me foram permitindo construir? E o que é que isso interessa? Onde é que esta especulação nos pode levar senão a lugar nenhum? Precisamente, a lado nenhum é para onde a vida nos leva, dia após dia, ano após ano. Fingimos que não é assim, cantamos umas cantiguinhas da treta uns aos outros, mas estamos apenas a disfarçar o enorme NADA que tudo isto representa. Por isso passamos tanto tempo a remoer o que não foi, o que poderia ter sido, o eterno “então e se…?”

Nunca conheci o meu avô, mas em compensação conheci uma data de tipos, uns mais cretinos que outros, todos excelentes pedagogos, todos excelentes conselheiros. Todos sabiam exactamente como eu devia viver a minha vida. Pena era que a vida deles fosse um caos que eles não controlavam. Vi campeões partir à mesma velocidade que chegavam, heróis invencíveis, craques disto e daquilo. Poucos tinham o olhar vazio da coragem na hora do perigo. Poucos tinham a vibração do amor na hora de decidir sobre os outros, no momento de arrepiar caminho e deixar o ego para trás.

Nunca fui amante daquela mulher…fui de outras. Umas melhores, outras piores. Aprendi a encontrar portos de abrigo, a ver as coisas com óculos diferentes, a relativizar a estupidez dos dias. Mães e amantes, enfermeiras e bruxas, bimbas e senhoras. Os seus corpos foram os melhores livros onde aprendi a vida e a morte. Poucas tinham o olhar vazio no momento do grito final, poucas hesitavam na hora de decidir, de deixar cair uma teimosia, de terminar uma discussão. Todas encantadoras, campeãs do outro lado da vida que só elas ensinam. Com os ocupantes do caminho da minha existência não houve “ses” mas certezas. Certezas do que realmente aconteceu, e me enriqueceu de lições e experiência. Para esse terreno não posso enviar um “então e se..?” porque tenho todas as respostas. A acção especulativa serve apenas para distrair da morte, para entreter enquanto não pensamos nela.

Nunca fui amante daquela mulher mas não deixo de estremecer quando ocasionalmente a encontro ali no pontão a passear, a contemplar o mar. E julgo que também ela estremece quando percebe que vou a passar. Também ela se interroga “então e se..?”

Hoje voltei a vê-la a caminho da praia. Deixei o cão com o meu irmão e fui nadar, aproveitando o mar agitado. Acho que ela não me viu. Nem quando passei a correr pelo pontão, nem quando meti uma moeda debaixo da língua momentos antes de me atirar ao mar e me pôr a nadar sem destino.  Daqui a pouco vamos nos encontrar. Hoje não haverá “ses”, hoje não venho jantar.



Artur

domingo, 26 de agosto de 2012

sábado, 11 de agosto de 2012

PUSSY RIOT - PUNK'S NOT DEAD


Estou com elas. Estou com elas contra a farsa da política, estou com elas contra a hipocrisia da igreja, estou com elas porque são novas e pensam, e têm atitude, e provocam, e destapam a fralda invisível do rei que vai nu para que os outros possam ver também. Estou com elas contra um julgamento estalinista que quer apenas certificar-se que as torneiras da expressão estão bem fechadas e assim continuarão a estar. Estou com elas porque não fecho todos os espaços por onde ainda é possível vislumbrar alguma esperança sobre os dias negros que vivemos. Estou com elas pela coragem, pela personalidade e pelo direito que todos temos neste planeta a viver com dignidade e em paz, sem sermos roubados, humilhados e condenados à morte por meia dúzia de palhaços escondidos atrás da legalidade da sua ganância infinita. Uns palhaços que contratam outros palhaços para fingir que ganham eleições para fingir que estão legitimados para nos regular e dizer quando e onde e como deve ser a nossa vida. Estou com elas porque a sua coragem pode levá-las a passar algum tempo na prisão. Estou com elas em qualquer movimento que as apoie, em qualquer grupo disposto a enfrentar este absurdo estado das coisas que mais não é do que um genocídio organizado e planeado contra a Humanidade sem ter que recorrer a uma guerra como no passado. Enfim...estou com elas porque o Punk nunca morre. Beijo- vos, Valquírias do tempo moderno.

Artur

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

(AN) DANÇAS ANÓNIMAS


Parece que o sonho desapareceu para os recantos da memória e só sobram as saudades, as frases de "naquele tempo é que era...". As pernas já não correm com a velocidade pretendida, o fôlego pára mais vezes para recuperar, o tempo foge-me entre os dedos. Mas a ALMA voa entre todos os tempos, fura os portais de todas as dimensões, rebenta com todos os velocímetros. Fomos vida e VIDA continuaremos a ser, nas palavras, nos acordes, nos que foram mais cedo, nos que caminham ao nosso lado. Morrer é apenas voltar a estar vivo com mais intensidade, com as memórias do caminho, com os amigos, com concertos que foram verdadeiras manifestações religiosas. Aqui, os que ninguém conhece levantam os braços ao céu e dançam, e continuam a dançar os rituais do amor, da amizade e da eternidade...

terça-feira, 7 de agosto de 2012

BREAKFAST ON PLUTO



Neil Jordan
Irlanda, Reino Unido, 2005

Sendo um filme à partida estranho e invulgar, BREAKFAST ON PLUTO cativa-nos desde a primeira imagem, deixando um rasto de riso incómodo, uma trágica propensão para a caricatura. O percurso de Patrick pelas esquinas mais violentas e negras do tempo é essencialmente uma lição de amor e persistência de um contra todos, ou contra tudo, em nome da individualidade.
Tudo começa na pequena aldeia de Tyrellin, próximo da fronteira da Irlanda do Norte, no ano de 1940, quando Patrick é abandonado pela mãe à porta da sede da paróquia e recolhido pelo padre Liam. Adoptado por uma família de acolhimento, Patrick cedo se transforma num incómodo permanente, seja pelo ostensivo comportamento de um rapaz que se quer transformar numa mulher, seja pela revelação de ter sido concebido pelo padre e pela governanta. Patrick rapidamente se transforma em Patrícia e depois em “Kitten”, pouco antes de fugir de casa e apanhar boleia de uma banda de rock, envolvendo-se com o vocalista. Billy instala “Kitten” numa roullotte isolada perto do mar, que era ao mesmo tempo esconderijo de armas do IRA. Irwin, um dos seus amigos, com grande contestação da namorada Charlie, junta-se ao exército de libertação. Quando um carro armadilhado vitima o seu outro amigo, Lawrence, “Kitten” decide pegar nas armas escondidas e atirá-las ao mar. Quando o IRA percebe o que aconteceu só não o executa porque o julga completamente maluco da cabeça. Kitten parte então para Londres, em fuga dos ares pesados da luta armada e em busca da sua mãe.
Segue-se um périplo acidentado de encontros e desencontros, desde um relacionamento amoroso com um mágico que sempre soube que Kitten era um homem, até ao reencontro com a mãe sem no entanto lhe dizer quem era, passando por uma casa de “peep show” onde o pai/padre o visita e convida para vir morar com ele na Irlanda.
Baseado no romance com o mesmo título de Pat Mc Cabe, a adaptação para filme sofreu várias alterações. Jordan e Mc Cabe começam por tirar o nome “Pussy” e substituir por “Kitten” em relação ao protagonista. Por outro lado, enquanto que no livro o protagonista se envolve em múltiplas cenas de sexo explícito tanto com homens como com mulheres, tendo mesmo com alguns estabelecido relações de longa duração, no filme não vemos sequer “Kitten” a dar um beijo na boca em ninguém. A opção formal foi a de privilegiar o poder de sugestão. Kitten não é mostrada abertamente em contactos sexuais, apenas se dá a entender que assim é, ou se supõe, transformando o personagem num ser ainda mais frágil e mais ingénuo do ponto de vista da sua perversidade.
A cena junto ao mar com o mágico Bertie é apontada por muitos como uma alusão ao filme anterior do mesmo realizador, THE CRYING GAME, que também envolvia a transexualidade num dos personagens. Se em THE CRYING GAME, o homem se apaixona por uma mulher que é afinal um híbrido (transexual) com o espanto e a reacção violenta que se segue, em BREAKFAST ON PLUTO, quando Kitten confessa a Bertie que não é uma mulher, a resposta é: “Eu já sabia.” O beijo que ele se preparava para lhe dar fica como que suspenso, interrompido perante a confissão.
Mais ingénuo, menos perverso, e mais frágil, Kitten acaba por atravessar o seu tempo numa luta desesperada contra o mundo, empenhado em sobreviver e, principalmente, em manter viva e activa a sua identidade. E é neste ponto que o filme consegue alcançar a sua força máxima expressiva. Dando-nos uma lição sobre a diferença, a procura do amor e a relativizar a importância da maior parte das coisas que nos acontecem na vida. Mesmo as grandes tragédias devem ser relativizadas à medida da nossa sensibilidade, à medida da nossa capacidade para não escondermos quem somos nem nos desviarmos daquilo que queremos. Só assim poderemos continuar vivos…

Artur