sábado, 27 de abril de 2013

ANÁLISE GERACIONAL





É sempre um exercício arriscado quando se aborda a problemática geracional contemporânea, os conflitos e os contributos para um dado momento histórico. Especialmente porque tendemos sempre a caír nessa armadilha de Narciso que acaba por só encontrar virtudes na nossa e defeitos em todas as outras. Tendo perfeita consciência de correr esse risco, quero que saibam também que me estou nas tintas para isso e que prosseguirei assim mesmo numa análise pessoal dos factos e das evidências. Mas acabemos com este paleio de intenções, generalidades e frases feitas e passemos ao que realmente importa.

Para começar poderia dizer que um bom critério de avaliação de uma geração passa inquestionávelmente pela forma como ela se relacionou com dois agentes fundamentais ao longo do tempo em que viveu. Primeiro a comunidade em que se inseriu, e segundo, a geração dos seus filhos. Por aqui teremos uma abordagem minimamente sólida com critérios materiais que produzirão efeitos concretos. Se é certo que todas as gerações construiram ou ajudaram a construir a História, vale a pena avaliar de que forma se desenvolveu esse processo. Os exemplos variam e podem começar na Idade Média, no tempo da construção das catedrais. Ora, tratando-se de empreitadas que demoravam por vezes décadas a terminar, seria necessário duas e três gerações para a sua construção. A primeira empenhava todo o seu esforço e todo o seu tempo na feitura de uma obra que só os seus netos conseguiriam ver concluída. Mas há outros exemplos como o de uma geração que se entrega à resistência e combate a um invasor para a sobrevivência da comunidade e garantia do seu futuro, ou a descoberta científica ou tecnológica que permitiria a melhoria das condições de vida no futuro. Um critério linear de observação e avaliação do papel de uma geração é aquele que se prende com o resultado do seu trabalho para com o futuro de uma comunidade, bem como a generosidade ou o egoísmo para com as gerações mais novas. Sendo generosos e solidários para com os mais novos, os mais antigos estão a preservar tanto a evolução como a garantia de um futuro para a comunidade. Se pelo contrário, uma geração mais velha se apropria do esforço dos mais novos para satisfazer os seus interesses de grupo, colocando-os ao seu dispôr sem lhes estender a mão, então além de estar aberto o conflito acaba por estar em perigo a própria comunidade. Se uma tribo sacrifica ou negligencia os interesses e o bem estar dos mais novos, então essa tribo arrisca-se a desaparecer e a sua extinção é mais do que previsível senão merecida. Muitas vezes as gerações mais velhas, uma vez instaladas, esquecem rapidamente que a sua duração nesta vida é limitada e que caminham sobre a terra por empréstimo como inquilinos e nunca como proprietários. Nem a terra nem a comunidade são propriedade de ninguém mas antes uma perpetuação de movimento onde cada geração faz uma parte do trabalho geral.

Posto isto voltemos ao nosso país, voltemos ao drama destes dias que correm em que nos arriscamos a deixar de ter um país. Salvaguardando todas as excepções que houver que salvaguardar generalizemos sobre a maioria por ser essa a facção relevante do rasto deixado nos corredores do tempo. Antes do 25 de Abril havia um país em guerra, as gerações no poder sacrificavam uma juventude inteira nessa guerra cujos objectivos e ganhos colectivos eram mais do que discutíveis. No 25 de Abril essa mesma geração rebelou-se, “virou a mesa” do regime político e instalou um novo sistema. Sistema esse que dura há quase 40 anos e onde a Democracia permitiu uma evolução em muitos níveis que nos fez recuperar muito do tempo perdido em praticamente todas as áreas do desenvolvimento civilizacional. Essa geração, além de mudar de regime, rapidamente se instalou no poder afastando inapelavelmente a outra, a que a queria sacrificar numa guerra. Até lhes chamavam o pessoal do “caga e tosse”, velhos e dispensáveis. Ora esse “caga e tosse” teria na altura cerca de 60/70 anos enquanto que a nova geração andaria pelos 30, 30 e poucos. E hoje, como é que se configura o quadro etário do poder político? Em grande parte, os que tinham 30 continuam por lá, só que agora têm a mesma idade dos antigos “caga e tosse”. E os de 50 anos para baixo? Dir-me –ão: estão agora a chegar ao poder. Pois estão e com desempenhos de arrepiante estupidez, ignorância e incompetência em geral. Vamos tentar ver porquê.

A geração de 30 anos no 25 de Abril, uma vez instalada tratou de montar um sistema extremamente rígido e eficaz, um edifício robusto que defendesse a sua posição. Assim se foi instalando em todas as àreas da sociedade não dando espaço nem pretextos para que outras gerações tentassem reclamar o seu lugar quando fosse chegada a hora. Erigindo filtros altamente apertados e sofirticadíssimos à entrada do poder e das salas de decisão (vulgo partidos), a única porta de entrada seria essa pequena saliência, esse estreito caminho sem o qual nada seria possível. E é desta maneira que se criaram as “jotas” ou juventudes partidárias, autênticos viveiros de ignorantes e incompetentes, fábricas de “yes men” cuja única função era dizer que sim a quem estava em cima, não questionar nem pôr em causa. Assim se preservou a geração anterior no poder e assim assistimos a esta parada de inúteis que hoje se colocam à frente dos principais partidos do espectro político. Quem não entrasse neste jogo, quem pensasse pela sua própria cabeça, quem questionasse o estado das coisas, era arrumado na gaveta do anonimato. Faça um esforço e observe algumas bancadas da Assembleia da República. Há-de reparar que, por vezes encontra deputados de 60 e 70 anos. Outras vezes jovens de 30, 30 e tal anos. Mas de 40 e 50, muito poucos e, nalguns casos (Partido Comunista), nenhum.

Haverá muitas outras razões para termos chegado a este quadro dramático e desesperante que quase destrói Portugal de vez, mas foi sem dúvida e mais uma vez o egoísmo e a ganância de uma geração mais velha que muito contribuiu para que este estado de coisas fosse possível. Como a própria História indica, de vez em quando uma nova geração cansada de ser utilizada e negligenciada pelo sistema, toma o futuro nas suas mãos e deita esse sistema abaixo. Que seja depressa é o que eu mais desejo.



Artur

quarta-feira, 24 de abril de 2013

23 de ABRIL DE 2013

Aviso da Redação:

Este texto deveria ter sido publicado ontem, Dia Mundial do Livro, circunstância que se pode deduzir a partir do título e da temática. Motivos imponderáveis, e não dispiciendos, motivaram o adiamento da sua publicação para hoje, dia 24, que, como explicou suficientemente um dos mais talentosos comediantes da nossa praça, é o dia que se segue ao dia 23.






São bem conhecidos os documentários, ou filmes-ensaio, que Alain Resnais realizou no princípio da sua carreira: "Van Gogh", "Gauguin", "Guernica", "Le Chant du Styrène", "Les Statues Meurent Aussi", etc., constituindo-se como exemplos supremos de cinematografia abstractizante, no mesmo sentido em que se diz que a última fase da obra de Cézanne pode ser caracterizada como abstrações em torno de natureza mortas ou de paisagens. Seguindo essa mesma linha a um nível puramente formal, o filme "Toute La Mémoire du Monde" pertence a um outro universo: o das instituições que se filmam adoptando um discurso sobre a técnica e a modernidade que argumenta em torno de um dos desafios cruciais da humanidade: organizar a sua memória. 
Estamos em 1959 e a Bibliteca Nacional de França é conduzida de acordo com uma política de modernização, de extensão de edifícios e de exposições que procuram romper com a imagem poeirenta do imenso imóvel da Rue Richelieu. Resnais permanece sensível a esta ruptura, antecipando muito do que virá depois e que constitui a realidade actual. Como se verá adiante. O filme constitui-se a partir de longos planos-sequência através dos cavernosos corredores da Biblioteca, sendo acompanhados por um comentário céptico: juntos - texto e imagem- imaginam a BNF como uma paisagem não-humana, proibitiva, um local onde o Homem tenta "aprisionar" o conhecimento, num esforço colossal de transpôr os limites da sua própria memória; esse esforço torna-se uma ilusão, um não-sentido e apenas nos actos de seleção individual - um leitor que escolhe um texto específico - existe esperança de que essa massa imensa de conhecimento indiferenciado possa ser redimida, na medida em que o leitor faz um uso discriminado de uma memória colectiva nacional em prol de um propósito individual construtivo. Confuso ? Nem tanto. Quem vir o filme (disponível numa edição DVD da Costa do Castelo que reúne diversas obras documentais do cineasta), perceberá que estamos perante uma visão utópica de uma memória universal que apela a um fantástico desejo: a extensão da sala de leitura ao tamanho do Mundo, ou a antecipação precoce da realidade das redes electrónicas e da utopia contemporânea da biblioteca universal on-line, reforçando a absoluta necessidade dessa memória colectiva, o carácter precioso das edições banais, os leitores como pequenas células que trabalham no seu próprio domínio em favor de um grande desígnio, o grande segredo escondido no fundo de todos os livros - quer dizer, a felicidade, ou a capacidade de nos ensinar a falhar melhor.

RICHIE HAVENS

                                                                       1941 - 2013

segunda-feira, 22 de abril de 2013

COLÉGIO MILITAR SEMPRE

 
Um estabelecimento de ensino, um método pedagógico, uma instituição centenária avaliam-se através dos seus resultados, dos exemplos dados em adultos pelos seus antigos alunos, e, em última análise, pela mais valia trazida por essa instituição à comunidade em que se insere, bem como pelo protagonismo decisivo desenhado no seu processo histórico.
Gostaria de começar esta crónica dizendo que serei absolutamente parcial na defesa dos interesses e da manutenção do Colégio Militar enquanto instituição centenária e de referência incontornável no futuro da portugalidade e dos portugueses. Porquê? Porque assumo com orgulho, honra e dignidade a educação que lá recebi durante seis anos, porque faço parte de uma família muito grande onde nos cumprimentamos sem nunca nos termos visto, porque falamos com os do Passado como se falássemos com os nossos irmãos/avós, e, sobretudo porque entendo que, muito mais além da simples sobrevivência de uma instituição está em causa o “inconsciente colectivo”, a soberania nacional, a dignidade cívica de todo um povo, o povo português. Ao longo da vida tenho guardado para mim a maior parte dos aspectos da minha relação com o Colégio por uma questão de pudor, de ausência de interesse para os de fora deste espírito, para preservar interpretações erróneas de auto-promoção e gabarolice, porque nesta família sempre falaram mais alto os actos do que as demonstrações de intenções, os ensaios de grandezas, os discursos e as palavras do vazio. Hoje decidi quebrar esse silêncio porque é muito grave aquilo que se está a preparar, um processo antigo feito de avanços e recuos que até agora não conseguiu atingir o seu objectivo final. Ao decidir fundir o também centenário Instituto de Odivelas com o Colégio Militar, transformando-o de seguida num externato por razões financeiras e de maximização de recursos, aquilo que não é dito, aquilo que se está a preparar é a extinção pura e simples de ambas as instituições. Começando pela descaracterização, passando pela racionalidade financeira e pela maximização dos recursos, pretende-se desfazer a identidade, banalizar a sua missão, anular a sua importância e, finalmente desferir o golpe final decretando a desnecessidade bem como o fim da sua existência. Seguir-se-á um projecto de condomínios de luxo em áreas apetecíveis da cidade para benefício dos bolsos daqueles para quem nunca há tempos de crise. Haverá com certeza renovações a fazer, mudanças, adaptações. Mas feitas de uma maneira adequada, envolvendo as partes interessadas, trocando opiniões diferentes. O que não pode acontecer é fazer a análise da situação com uma calculadora, uma folha de Excel e o olhar posto na evidência nebulosa dos tempos em que vivemos.
Mas o previsível desmantelamento e extinção de instituições de ensino com resultados sobejamente dados, como o IO e o CM, é muito mais do que uma simples teimosia burocrática, uma luta entre diferentes grupos de interesse na sociedade. Ele faz parte de um plano muito maior, de uma assustadora vontade de aniquilamento do próprio país em troca de uma colónia de escravos sujeitos aos caprichos e ao apetite das grandes corporações internacionais. Senão, vejamos. Em nome da crise financeira e da falta de dinheiro tudo é passível de destruir, anular, aniquilar. Primeiro os direitos do trabalho para facilitar a mão-de-obra barata, o lucro fácil e o empobrecimento. Os grandes empréstimos da troika condicionados a um sem fim de prerrogativas sem as quais o dinheiro não virá, atacam e interferem directamente na soberania nacional. Somos hoje um protectorado de um grupo de rostos anónimos de pura especulação financeira que nos enviam os seus funcionários para confirmar se estão a ser cumpridas as suas directivas. Todo o discurso político dominante está centrado no corte, no deitar abaixo e nunca, sublinho, NUNCA, no desenvolvimento, na criação de riqueza ou no emprego. A isto chama-se a preparação das condições ideais para a construção de uma colónia de escravos ao serviço dos interesses exteriores. No último ano deste Governo, (que esperemos que morra antes) vão surgir “milagrosamente” investimentos daqui e dali a troco de mão-de-obra barata. Será a resposta a três anos de crise, antes das eleições. Em desespero e com fome as pessoas aceitarão tudo o que vier. Muitos acreditarão nas capacidades deste governo e voltaram a elegê-los. Entretanto ficou para trás a soberania, a cidadania, o progresso e o desenvolvimento de um país inteiro. Estes tecnocratas que nos governam são seres amorais, mercenários sem referência, sem povo e sem pátria. Move-os o interesse pessoal, a ganância e o lucro, obedecem apenas a quem lhes pagar melhor. Para terminar todo este processo em beleza é necessário terminar com os sectores da sociedade que ainda poderiam oferecer alguma resistência. As Forças Armadas, sendo o elemento mais importante dessa atitude vão sendo gradualmente enfraquecidas sempre com a cantiga do “não há dinheiro”. Menos verbas, menos efectivos, menos actuação, menos influência. O IO e o CM, instituições militarizadas de cunho patriótico são escolas onde os valores da soberania e da defesa dos interesses nacionais se ensinam nos jovens. Uma coisa relaciona-se com outra. Outras instituições estarão na linha da frente da resistência a este (deplorável) estado de coisas.  Mas as Forças Armadas são sem dúvida decisivas.
Ao pretender extinguir o Colégio Militar o que vai acontecer é que dois séculos de História vão ser pura e simplesmente deitados para o lixo, um importante reduto da “consciência colectiva” será apagado e por fim, várias gerações de portugueses perderão uma oportunidade única de desenvolvimento e aperfeiçoamento tanto no seu desempenho individual como no enriquecimento da comunidade. Apelo a todos para a “resistência”, para a defesa da soberania e, consequentemente, para a sobrevivência do nosso povo enquanto entidade colectiva. Viva o Instituto de Odivelas, viva o Colégio Militar… VIVA PORTUGAL.
 
Artur Guilherme Carvalho
 
 
 

quinta-feira, 18 de abril de 2013

ILUSÃO MATRICIAL



Vou dizer-te muito baixinho ao ouvido. Mal sentirás o sopro das palavras, mas ouve:

Imagina que tudo o que conheces não passa de uma elaborada ilusão.
Imagina que nada do que te foi ensinado desde que nasceste, nada do que viste, nada do que ouviste, nada de tudo corresponde à realidade.
Imagina que todos os conceitos que te são intrínsecos, os que fazem parte de ti, pelos quais foste educado e para os quais te foste construindo, fazem parte de uma realidade artificial formatadora da tua mentalidade.
Imagina que aceitas valores e ages de acordo com parâmetros preconcebidos que servem desígnios limitadores das tuas capacidades.
Imagina que inconscientemente estás condicionado para ver as coisas que alguém quer que vejas e não outras.
Imagina que tudo o que te rodeia é um cenário montado para te manter num registo pretendido.
Imagina que aqueles valores mais sagrados que te foram incutidos durante o teu crescimento, a história universal que aprendeste, os objectivos que te deram, apenas servem para te encarcerar numa crença que te desvia da essência da vida.
Imagina que vives uma mentira que de tantas vezes repetida se torna real, e nunca te atreves a questioná-la, a deter-te por um momento, a fechares os olhos e pensar se há algo mais além daquilo que te é apresentado no filme da tua vida. Se calhar já deste por ti a pensar que houve alguma coisa que não fazia sentido, mas depressa afastaste essa ideia.
Imagina que à medida que a película se vai desenrolando da bobine do que há-de vir para se enrolar na do que já passou, vais reparando em pequenos flashes no canto do ecrã que te vão despertando a curiosidade sobre o seu significado. Pequenos sinais, dos quais a princípio não tinhas sequer consciência pela sua fugacidade mas a partir do primeiro momento em que reparaste, forçam em ti o irreprimível desejo de saber o que são, qual o seu significado e para que servem.
Imagina que decides começar por procurar alguém que já tenha reparado neles. Descobres que sim, há outros que como tu, também viram esses sinais mas não falam sobre isso. Apesar de conscientes, uns resistem e até renegam essa revelação, outros não querem falar dela, outros ainda falam de forma velada.
Imagina que existe uma realidade para a qual não estás preparado. Nem tu nem ninguém. Algo que suspeitas que existe mas nem deves mencionar. Nem tu nem ninguém.
Imagina que a sua simples abordagem provoca o choque nos outros, por um lado porque não querem ser resgatados à sua doce artificializada realidade, por outro porque essa mensagem os assusta.
Imagina que afinal tens o choque de descobrir aos poucos os buracos e as fissuras de um cenário que te permitem ver para além dele. Para o outro lado. Para o lado de lá.
Imagina que com uma dor lancinante a que te vais lentamente habituando, provocada pela observação da claridade ofuscante, agora espreitas pelos buracos do fundo escuro que servia de paisagem à tua existência, vês todo um mundo novo e que te dá uma perspectiva radicalmente diferente de tudo aquilo em que acreditavas.
Imagina que do lado de lá do pano escuro vês os mecanismos outrora escondidos, ocultos, que fazem funcionar mecanicamente, roboticamente, tudo e todos.
Imagina que ao mesmo tempo que absorves essa revelação, acabas por conhecer na penumbra, outros que também estão a espreitar essa revelação. São uns que afinal já conhecias mas consideravas demasiado estranhos.
Imagina que agora queres fazer parte desse grupo amordaçado por um sistema informativo, ele próprio prisioneiro dos conceitos e dos tais mecanismos desvendados dessa virtualidade alienadora.
Imagina que te sentes impelido a acordar os outros mas eles te consideram aberrantemente estranho e por isso repudiam-te. Recusam ser arrancados por loucos, a um doce torpor que lhes ameniza a vida mas que secretamente os agrilhoa a um pensamento limitado, aceitador e conivente com coisas que antes até julgavas normais e lógicas.
Imagina que agora que começaste a vislumbrar toda uma nova existência, a anterior parece-te absurdamente escravizante, colocando os outros num estado de catarse generalizada, num sonho colectivo que afinal apenas lhes permite sobreviver, transformados em autómatos incapazes de duvidar do caminho que lhes é dado para percorrer.
Imagina que à medida que o filme chega para lá do meio, consegues libertar-te e que já tens a certeza que a realidade que viveste até aí não passa de um embuste montado por uma produção de meia- dúzia de seres vampíricos, cada um especializado numa área e que te iludiam que a Justiça funcionava, a educação te preparava para os desafios que escolherias, a indústria farmacêutica e os hospitais serviam para salvar vidas, a polícia e as forças armadas eram instrumentos pacificadores, a agricultura produzia alimentos saudáveis, a história escrita por quem a ganhou mostrava que os bons acabam sempre por vencer os outros, enfim que até vivias em Democracia porque podias votar em quem querias que governasse os teus destinos e os dos teus.

Agora imagina que tudo o que eu te disse até agora é a pura verdade.

Imagina o que farias.

Queres despertar? Ou ainda dormes?

Devo falar mais alto? Quando acordares?



Hélder

terça-feira, 16 de abril de 2013

CARLOS SELVAGEM


 

 


Carlos Tavares de Andrade Afonso dos Santos (1890 – 1973) ficou conhecido para as artes e letras pelo seu pseudónimo literário (Carlos Selvagem), alcunha recebida no Colégio Militar onde fez os seus estudos do ensino secundário entre 1901 e 1907. Destacou-se como militar, jornalista, escritor, autor dramático e historiador.

  Formado em Cavalaria pela Escola do Exército (actual Academia Militar), esteve  no Norte de Moçambique durante a Primeira Guerra Mundial. Da memória desse tempo publicará “Tropa de África” (1919).
 
 

Através de concurso público é escolhido para escrever o compêndio a utilizar nas escolas militares, produzindo para esse fim a obra “Portugal Militar – Compêndio de História Militar e Naval de Portugal desde as origens do Estado Portucalense até ao fim da Dinastia de Bragança” (1931), obra de referência ainda hoje utilizada.

No capítulo literário destaca-se pelas obras de trama histórico, de pendor nacionalista. Uma escrita marcadamente poética, original, onde o conteúdo ideológico e a crítica social se combinam com grande coerência. Das suas obras podemos destacar a nível literário os contos infantis “Picapau – Bonecos Falantes” e o romance “Espada de Fogo”. A nível dramatúrgico vamos encontrar peças de grande repercussão na sociedade portuguesa de então como “Entre Giestas”, “Ninho de Águias”, “Telmo o Aventureiro” e “Dulcineia ou a última aventura de D. Quixote”. Trabalhou diversas vezes com a dupla Amélia Rey Colaço – Robles Monteiro, cabeça de uma das mais importantes companhias teatrais do séc. XX, sendo a sua obra considerada das mais representativas da dramaturgia desse mesmo tempo. De uma forma geral, tanto a vida como a obra de Carlos Selvagem ficam indelevelmente marcados por dois valores fundamentais, dois eixos sobre os quais tudo assenta. São eles a “Moral” e a “Coerência”(*).

Muito mais relevante do que à partida se poderia pensar, a obra de Carlos Selvagem é um importantíssimo instrumento de análise do seu tempo na medida em que se debruça sobre temas incontornáveis tanto da sociedade como da política numa perspectiva equilibrada entre a pedagogia e a formação.

   Enquanto estudioso e defensor do Império Colonial destaca-se a importância a nível histórico da interculturalidade, que questiona alguns dos fundamentos da política colonial do Estado Novo (*). Em termos teatrais, as suas peças representam um quadro emocional agitado, conflituante e revoltado combinado com a actualidade política e económica. As intrigas do quotidiano são reflexos dessa mesma sociedade onde têm lugar. A crónica de costumes não surge de geração espontânea, tem uma razão de ser, é proveniente de um determinado estado de coisas.

Na parte literária, mais diversificada, reconhece-se o testemunho humano em seres comuns, que nem sempre são referências históricas nem pertencentes a elites com ideal moral, como acontece na obra historiográfica (*). As suas personagens, seja qual for o espaço em que se enquadram, traçam rumos marcados tanto pela sorte como pelas consequências dos seus actos. O que se destaca sempre é por um lado a dimensão humanista e por outro, um sistema de valores privilegiados (*).
 
 
 

Em termos políticos, Carlos Selvagem, apesar de nacionalista, tinha as suas divergências com o Estado Novo, culminando nos acontecimentos de Abril de 1947, a primeira tentativa para derrubar Salazar a seguir à II Guerra Mundial. Sob o comando do Almirante Mendes Cabeçadas, o coronel Carlos Santos acaba por integrar um movimento revoltoso que foi baptizado de “Junta de Libertação Nacional” com o objectivo de “repor o espírito inicial democrático do Golpe de 28 de Maio de 1926”. Acabou por ser preso.

 

Artur

 

 

 

(*) “O Olhar de Carlos Selvagem sobre Portugal d’aquém-mar e de além-mar “

 

Jorge, Helena dos Anjos Reis

 

Tese de Doutoramento em Literatura na especialidade de Língua Portuguesa

 

Universidade Aberta

 

2005 (?)

quinta-feira, 11 de abril de 2013

CARTA AO HÉLDER



Caro Hélder:

Nós por cá todos bem...

1. Como deves calcular, não poderia deixar sem resposta a tua carta, sobretudo no que ela tem de rigor, profundidade e clareza. Nem sequer quanto aos factos que enuncias, embora a minha resposta/postal não coincida exactamente com o tema principal da tua missiva. De qualquer modo, espero alargar o horizonte imediato das tuas e das minhas reflexões, almejando procurar compreender melhor tudo o que está em causa. Aqui vai.

2. Referes um texto meu, escrito em 2011, numa altura em que me indignava quotidianamente com as falácias e as frases estúpidas que os novos governantes iam debitando a um ritmo alucinante, revelador de um frenesim moralista, regenerador, moralizante e tudo o mais que aqui coubesse de absurdo. Era vê-los proclamarem-se como os Messias que vinham "pôr ordem na casa", "salvar o povo português dos seus maus hábitos", "recolocar Portugal no caminho do desenvolvimento e das finanças públicas sãs", etc., etc.. Quão depressa ruíram essas pias intenções, sumamente atiradas para o caixote do lixo da História quando se percebeu que estes novos evangelizadores, imbuídos de espírito castigador e tomados por um frenético afã de morigeradores de costumes, eram só uma máscara e que enfermavam dos mesmos vícios que nos conduziram à situação actual: amiguismo, defesa dos interesses privados à custa dos bens públicos, incompetência técnica e política, compadrio e generalizada corrupção. São eles próprios que conferem substância ao modo como Roland Barthes certa vez definiu a estupidez  - A estupidez é a euforia do lugar - e como eles estavam eufóricos com o seu lugar. Ingenuamente, pensava na altura que era possível combater com as palavras, não com as minhas em particular, mas com as de todos nós, e que as palavras eram as armas que, conjuntamente com o voto, nos permitiam fazer exigências ao sistema, modificá-lo, exigir-lhe respostas, de certo modo torná-lo mais conforme às nossas aspirações. Compreendo hoje, tardiamente embora, que "armas" e "combate" pertencem ao domínio da violência, e que esta não se expressa, é muda: começa onde a palavra acaba, faz-se ouvir quando a palavra silencia. A não ser que recorramos à violência, não temos outro modo de fazer vingar as nossas posições; nem pelo voto, nem pela abstenção do mesmo. Hoje, o que me deixa estarrecido de pavor e de nojo é ver que esta gente vai espraiando uma visão messiânica e redentora do seu próprio papel : tendo desistido de renegerar os costumes, veêm-se a si mesmos como salvadores da Pátria (talvez o ridículo pin que usam na lapela contribua para forjar essa ilusão) e estão dispostos a fazer tudo para assegurarem o lugar que julgam ocupar na História. Um lugar que, diga-se em abono da verdade, só as mais delirantes fantasias podem assegurar a estes devotos do onanismo.

3. A lei que invocas e que concerne à atribuição ao partido mais votados dos votos brancos e nulos resulta de um sistema em pânico que procura apenas assegurar a sua sobrevivência, à custa de uma manobra horripilante. No limite, significa a nulidade desse tipo de votos como "votos de protesto", subvertendo a natureza mesma da intenção com que foram expressos. Significa que o único voto de protesto válido é a abstenção total. Concordarás que é uma triste conclusão. Por outro lado, lembrei-me de uma antiga máxima filosófica grega que postulava "os homens são sempre melhores do que as leis que produzem". Esta máxima, cuja validade e universalidade são inegáveis, conhece, no entanto, uma excepção: Portugal e os seus legisladores e políticos, cuja mediocridade tem um correlato directo nas leis que produzem. Aliás, os gregos estavam muito longe de serem ingénuos e, no fundo, o que eles queriam dizer é que por muito más que as leis sejam, por muito iníquas que se revelem, e por muito eficazes que sejam os aparelhos repressivos que as implementam, há sempre alguma coisa na natureza dos homens que os faz resistir e dizer não, sabotar e contrariar a iniquidade das leis. Excepto em Portugal.

4. Passemos a coisas sérias. Hannah Arendt dizia algures que a compreensão do fenómeno político era uma tarefa para toda uma vida. Se bem a entendo, só a morte conclui essa tarefa, pelo que se torna verdadeira a máxima latina segundo a qual "só os mortos são felizes". A nossa única saída é seguir as recomendações de Michel Foucault: "não amar o poder; libertar a acção política de todas as formas de paranóia utilitária e totalizante; não exigir da política que ela restabeleça os direitos do indivíduo tal como a Filosofia os definiu - o indíviduo é o produto do poder -; o que é necessário é "desindividualizar" pela multiplicação e deslocamento dos diversos agenciamentos; o grupo não deve ser o laço orgânico que une os indíviduos hierarquizados, mas uma constante geradora de "desindividualização", etc., tal como lembrei no texto "Capitalismo e Esquizoanálise".

5. Uma última reflexão. Relembro a extraordinária actualidade do pensamento dos existencialistas franceses - Malraux e Camus por um lado, e Sartre e Merleau-Ponty por outro - que colocaram a reflexão política no cerne do seu pensamento, constituindo um caso único na história do pensamento filosófico, considerando que o essencial não era descobrir soluções filosóficas para as incertezas políticas. Pelo contrário, viam a política como uma via de resolução das incertezas filosóficas que, no seu entendimento, não podem ser resolvidas ou sequer devidamente formuladas em termos puramente filosóficos. É por isso que Sartre nunca cumpriu, nem voltou a mencionar a promessa com que concluía "L'être et le néant": enunciar uma filosofia moral. Em vez disso, escreveu peças de teatro, romances e fundou uma revista. Já nos anos 20 Malraux tinha declarado: "Descobrimos sempre o horror em nós próprios...Felizmente podemos agir". Nas tristes circunstâncias actuais, a verdadeira acção, nomeamente começar qualquer coisa de novo, ou de inédito, ou de relevante para o nosso futuro, só parece possível no âmbito das revoluções. Portando, a revolução desempenha o papel outrora desempenhado pela vida eterna; a revolução salva aqueles que a fazem. Mas, as revoluções já não parecem possíveis. O votante de hoje passa da indignação à tristeza e desta não sai. A sua passividade, que é tanto constituída de medo como de uma espécie de sensatez que falta aos que o governam, é bem o símbolo de um estado de coisas sem solução. Malraux e sobretudo Camus insistiram na revolta sem sistema histórico nem definição rigorosa dos fins e dos meios, ou seja: no homem revoltado. Trata-se de uma diferença considerável: o que importa não é que o mundo presente tenha entrado em crise e que o caos se tenha instalado com o seu arraial de devastação: é a natureza humana que é enquanto tal "absurda", pondo como põe problemas insolúveis a um ser dotado de razão. Quem o não compreender, julgo eu, continuará a atribuir importância a estes epifenómenos que são os nossos políticos, dotando-os de uma relevância que a sua condição de fantoches não autoriza.

Um grande abraço

Arnaldo


CRÓNICA DE UMA GUERRA POR DECLARAR


Vivemos tempos estranhos numa dramática conjuntura de autêntico genocídio civilizacional e humanista conduzido por entidades sem rosto que se posicionaram lentamente atrás dos poderes de decisão para executar a sua agenda. Desprezando-se diariamente todos os mecanismos de equilíbrio, todas as salvaguardas de compromisso e todas as protecções da injustiça, o Estado de Direito vai sendo subvertido, a civilização progressivamente destruída e os valores eclipsados. Temos de um lado a Democracia, a Liberdade, a ideologia, os valores e as regras que as salvaguardam, e por outro os “mercados”, a “competitividade”, a ratio económica. Aos poucos a Lei vai-se esquecendo, torneando, eliminando lentamente em nome de valores vagos e abstractos onde entidades sem rosto vão impondo o ritmo dos seus lucros. Dois exemplos evidentes: 1 – A Lei de delimitação dos mandatos autárquicos. Um tribunal decide que determinada situação é impeditiva (um autarca candidatar-se a mais do que três mandatos), interpreta a norma. A decisão do tribunal é soberana. Mas será mesmo? A reacção de alguns implicados nesta categoria é esclarecedora. Desprezando o papel do tribunal atiram-se a recursos, minimizam, ignoram, quase escarnecem da sua interpretação.

2 – O Acórdão do Tribunal Constitucional. Declarada por este Órgão de Soberania a inconstitucionalidade de algumas normas da Lei do Orçamento de Estado para este ano a reacção de quem já tinha sido advertido no ano anterior e que nada fez para o corrigir é sintomática. O TC anda a impedir o progresso, não tem em linha de conta os compromissos assumidos internacionalmente, em relação aos quais não teve qualquer responsabilidade. Em suma: A Constituição, os órgãos de soberania e a Lei em geral andam a emperrar o processo, a atrapalhar a agenda. Mas a agenda de quem? Precisamente a de quem não tem rosto e se faz representar por tecnocratas sem espinha nem valores que a tudo obedecem. Se a Lei está no caminho desta agenda, então anule-se essa Lei e faça-se outra.

   Quem diz o exercício do poder político diz quase tudo de uma maneira geral. Deixou de haver o binómio esquerda/direita, deixou de haver posições ideológicas. Neste momento ou se está com o poder financeiro ou contra ele. E quem não está com ele fica irremediavelmente fora de tudo, não passa da porta do edifício do poder político. Instituições, empresas, particulares, de repente quase tudo ficou nas mãos dos bancos e da especulação financeira sem rosto através dos compromissos de empréstimos. Todos caíram numa ratoeira, num círculo vicioso de dívidas, de dependência destas entidades que, além de “disponibilizarem” os montantes emprestados não se submetem a nenhuma possibilidade de risco, de prejuízo. Como tal, além do financiamento, decidem também da vida dos seus agentes financiados. Explicam como vão ter que viver, infiltram elementos seus nos seus conselhos de administração, apropriam-se aos poucos de tudo o que mexe. Quem não se adequar à sua agenda será pura e simplesmente eliminado do sistema por asfixia financeira. Quem tem o poder financeiro neste momento é que determina a vida.

Por isso é fantástico ouvir frases como aquela já antiga que declama a morte da História condenando-a a uma inutilidade global. Nada interessa que ajude a pensar, que processe qualquer tipo de entendimento da vida comum. Só o lucro interessa. Mas o lucro destas corporações invisíveis, intocáveis.

Está declarado pois, o estado de guerra entre estes seres sem rosto e o resto da Humanidade. E a expressão “estado de guerra” não é nenhum exagero se pensarmos que, no cômputo final, milhares e milhares de pessoas vão acabar por perder a vida, pura e simplesmente desaparecer. Uma situação desproporcionada se tivermos em conta que a própria classe política está do outro lado, contra a população. O seu passaporte para a manutenção na actividade depende em exclusivo da prossecução da agenda do poder financeiro. Ou se joga à bola com eles ou não há jogo.

O futuro deste estado de coisas é imprevisível embora a explosão seja inevitável. Antes disso a Humanidade (em risco de genocídio, nunca é demais dizê-lo) tem apenas uma única vantagem. A da proporção do número. São de facto muito mais as ovelhas neste momento do que os cães, os pastores e os lobos. O rebanho até aqui desorientado, assustado e alienado ainda não se apercebeu bem, de uma forma colectiva, que o seu destino é o matadouro, aconteça o que acontecer. Quando finalmente atingir essa etapa da consciência, então nessa altura dar-se-á a explosão. Resta saber é se chegará a tempo.

 

Artur

  

 

segunda-feira, 8 de abril de 2013

TRAMP THE DIRT DOWN

I saw a newspaper picture from the political campaign
A woman was kissing a child, who was obviously in pain
She spills with compassion, as that young childs
Face in her hands she grips
Can you imagine all that greed and avarice
Coming down on that childs lips

Well I hope I don't die too soon
I pray the lord my soul to save
Oh I'll be a good boy, Im trying so hard to behave
Because there's one thing I know, I'd like to live
Long enough to savour
That's when they finally put you in the ground
Ill stand on your grave and tramp the dirt down

When england was the whore of the world
Margeret was her madam
And the future looked as bright and as clear as
The black tarmacadam
Well I hope that she sleeps well at night, isnt
Haunted by every tiny detail
Cos when she held that lovely face in her hands
All she thought of was betrayal

And now the cynical ones say that it all ends the same in the long run
Try telling that to the desperate father who just squeezed the life from his only son
And how it's only voices in your head and dreams you never dreamt
Try telling him the subtle difference between justice and contempt
Try telling me she isn't angry with this pitiful discontent
When they flaunt it in your face as you line up for punishment
And then expect you to say thank you straighten up, look proud and pleased
Because youve only got the symptoms, you haven't got the whole disease
Just like a schoolboy, whose heads like a tin-can
Filled up with dreams then poured down the drain
Try telling that to the boys on both sides, being blown to bits or beaten and maimed
Who takes all the glory and none of the shame

Well I hope you live long now, I pray the lord your soul to keep
I think I'll be going before we fold our arms and start to weep
I never thought for a moment that human life could be so cheap
Cos when they finally put you in the ground
They'll stand there laughing and tramp the dirt down

Elvis Costello

sábado, 6 de abril de 2013

CARTA AO ARNALDO


Caro Arnaldo,

Espero que tudo esteja bem contigo e os teus, que nós por cá vamos indo.

Não sei se te lembras de uns comentários que eu fiz ao teu excelente e infelizmente actualíssimo texto “Á Minuins e Understands” publicado a 3 de Outubro de 2011, cerca de um ano e meio antes de nos virmos a conhecer pessoalmente. Um texto onde falaste do desbragamento alarve de quem de nós se governa desgovernadamente. Da alarvice e da falta de respeito a que todos somos sujeitos por criaturas medíocres, cujas pulhices parecem continuar a ficar irremediavelmente impunes. Isto é apenas uma generalização pessoal ao assunto concreto do teu texto que abordava o facto de a dirigente do MAMAOT (Ministério da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território) Assunção Cristas, ter anunciado à Nação a urgência do aumento do tarifário da água.

Num primeiro comentário, procurava eu justificar esse estado de coisas pelo alheamento das pessoas relativamente ao acto de votar, chocado pela leviandade ou falta de consciência política com que o acto fundamental e legitimador da Democracia era tomado pela generalidade da população. Pela escolha inalterada dos suspeitos do costume, pela brutal abstenção, pelos votos brancos e nulos, levando a que o descontentamento, alheamento e desinteresse contribuíssem para o perpetuar de um sistema pervertido. Para mim nada disto ajudava a resolver a urgência de uma melhoria efectiva na vida dos portugueses, trocando-se uma ida à praia, à bola, ao petisco, pelo acto supremo da vida de um povo a viver em democracia – votar. Acrescia a isto ainda a minha indignação a que quem se alheava deste acto, ainda se insurgir e achar que tinha o direito de reclamar dos (des)governantes.

Pois muito educadamente, agradeceste tu o meu comentário, adiantando que a responsabilidade tanto recai sobre quem escolhe como por quem é escolhido, e que a ausência da escolha por si também é uma escolha - a de quem não se revê nas pessoas, nos partidos ou na situação que é apresentada.

Voltei ainda a responder ao teu comentário anterior esgrimindo o argumento de que o “jogo democrático” tem regras e o voto é a mais importante, pelo simples facto de apenas os votos expressos estarem representados na Assembleia da República. Aí, a abstenção, os votos brancos e os votos nulos não têm representatividade. Não deixam lugares vazios, embora continue a pensar que deveria ser assim mesmo. Os partidos deveriam estar representados na Assembleia de acordo com a percentagem da população total de eleitores. Abstenção, brancos e nulos incluídos. Só assim, quem quer ser eleito, se esforçaria por mostrar um desempenho digno e merecedor de tal lugar, lugar esse que deveria ser merecedor do maior respeito. Infelizmente está à vista de quem quer ver, o que vai na casa que deveria representar a vontade de um Povo. Lobbies, jogos de interesses, pouca vergonha. Adiantei ainda que eu não me abstinha, não votava em branco, e o meu voto ia sempre para algum partido. Aquele que no momento me pareceria o menos mau, no entanto a única forma de ter voz, de rumar contra a maré, apesar de não me rever em nenhum partido há mais de 20 anos. Infelizmente seria assim o sistema e seria com essas regras que teríamos de jogar até que houvesse uma revolução profunda de mentalidades, uma nova Filosofia, um sistema revolucionário mais justo, enfim, uma utopia para já.

É hoje com alguma satisfação que verifico que onde antes se falava de coisas mais levianas, se fala cada vez mais do estado das coisas. De alguma forma, da frustração generalizada a que este estado das coisas tem vindo a chegar, como se a espiral de asfixia económica e de desbragamento não tivesse fim, tocando tudo e todos. Reparei ao longo de várias conversas recentes que eu incluído partia de pressupostos tidos como certos, escritos algures. A expressão “está escrito” prolifera como se quem a profere realmente a tivesse lido. Infelizmente na maioria das vezes o que “está escrito” foi simplesmente ouvido a alguém ou é fruto das opiniões de quem as emite.

Há seis meses e depois de ter reflectido nas minhas crenças em relação ao instrumento mais importante da Democracia, achei que era altura de ler preto no branco as regras do jogo que julgava estarem bem sabidas e decidi procurá-las. Comecei por pesquisar na internet mas por alguma razão que achei estranha, não encontrei nenhuma resposta que me satisfizesse. Decidi enviar um e-mail para a Comissão Nacional de Eleições que me desfizesse concretamente a dúvida da consequência e destino dos votos brancos e dos votos nulos. Esperei e continuo à espera dessa resposta mas foi através do grupo “QUESELIXEVOTAR” no Facebook que obtive finalmente a resposta que um organismo (CNE) cujo funcionamento só é possível através do dinheiro obtido através dos impostos dos contribuintes portugueses não deu ainda até este momento.

Neste grupo, tem-se a explicação e fácil acesso à compreensão do verdadeiro mecanismo partidocrático, uma excrescência, um cancro da Democracia que há anos tem vindo a degenerar rapidamente e a minar o melhor sistema político conhecido.

Resumida e especificamente, o voto dos portugueses não é igual ao dos outros europeus. Os portugueses em vez de votarem no seu candidato, votam em listas de nomes fechadas e bloqueadas cuja ordem de atribuição de lugares já foi decidida pelos próprios “políticos”. Os que estão no topo das listas são vencedores antecipados por estarem nos “lugares elegíveis”, fruto não da capacidade individual, mas de outros critérios, onde a ideologia filosófica ou política são aquilo que menos importa, explicando assim a fraca capacidade intelectual da grande maioria dos seus intervenientes por contraposição à seriedade e sólida formação cívica. Falo de relvas e outras espécies daninhas que vegetam nos corredores do poder sufocando o fruto bom, não dando espaço algum ao crescimento e progresso. A mediocridade instala-se assim por via de um instrumento pervertido, não reformável por dentro por estar na mão do bandido. Como diziam os estivadores à porta da Assembleia da República na manifestação de 15 de Setembro último, “Os ladrões estão lá dentro! A polícia está cá fora!”

Não é por isso expectável que uma alteração à Constituição Portuguesa resulte em algo positivo. Nem tão pouco é desejável que tal aconteça. Já basta aquilo que os que dizem representar o povo por lá fazem, debitando leis a torto e a direito, rendilhando um sistema jurídico e judicial cheio de nós cegos que de tão rendilhado e de tantos “buracos”, permite a fuga para a frente daqueles que tendo-as feito, lhes conhecem as fraquezas intencionalmente pré-fabricadas, disso se aproveitando impune e desavergonhadamente na mais pura e exemplar corrupção.

O cerne do problema não está nas leis da Transparência, não está no financiamento dos partidos nem num sistema judicial paralítico, tudo inquinado pela política e pelas leis que são produzidas onde a corrupção grassa. O cerne do problema está no próprio sistema eleitoral que não confere qualquer escrutínio sobre os políticos. Portugal é um país que não permite que o eleitor escolha o seu candidato por causa das listas fechadas e dos respectivos lugares elegíveis previamente selecionados por interesses eticamente baixos mas mais influentes. Ou seja no fundo, o voto em Portugal decide nada. Nada! Em Portugal as eleições são decididas pelos partidos semanas antes de estas terem lugar.

A isto acresce ainda os factores dos eleitores fantasma por causa das listas desactualizadas, dos votos não terem o mesmo valor em todas as regiões de Portugal, variando a sua relevância e influência no resultado de acordo com o distrito onde está a urna onde foi depositado, da falta de consciência política da população portuguesa, manietada e formatada por uma informação inexacta para dizer o mínimo.

Tudo isto expus caro Arnaldo, para te pedir desculpa pelo meu segundo comentário na minha insistência no voto. Assim, e voltando à tua resposta ao meu primeiro comentário ao teu texto, eu não me revejo nas pessoas, nos partidos ou na situação que é apresentada.

E depois de saber finalmente através do grupo mencionado atrás que os votos em branco e os votos nulos revertem a favor do partido mais votado nessa eleição, com tudo o que isso implica (voto e respectivo dinheiro para o partido beneficiado) por causa de uma alteração à lei eleitoral do ano de 2005, vou-me abster de votar pela primeira vez na vida.

Talvez quando os desacreditados neste sistema se derem conta da farsa que vivem e começarem a ser uma maioria esmagadora impossível de ignorar, se possa pensar em aspirar a algo maior.

Sim Arnaldo, por estarmos numa partidocracia e não numa efectiva Democracia, a abstenção é uma escolha.

Grande abraço.

Hélder

terça-feira, 2 de abril de 2013

ALMOUROL

Através do discreto rumor das águas vamo-nos aproximando enquanto mergulhamos nesse outro mundo feito de magia e lendas antigas. A ilha fica cercada num anel de água que mantém inimigos à distância. Aqui estará o banquete à espera, as cantigas flutuando sobre o alaúde, as trovas de amor impossível gemidas na vibração, nos recados de um espírito a outro. Regresso a casa, descanso e sonho em galope á solta pelas terras da imaginação em busca do lugar que nunca me esqueceu...

Artur

segunda-feira, 1 de abril de 2013

O RISO E O NADA


 
Começa a ser um exercício deprimente caminhar ao longo do bairro e verificar a quantidade de espaços transformados, vazios, ou simplesmente desaparecidos, aqueles espaços que estávamos habituados a ver todos os dias, a cumprimentar na passada atrasada a caminho da escola, do trabalho, da escola dos filhos. Era suposto as memórias morrerem depois de nós…ou era ao contrário? O café que sempre ali esteve deixou de estar, fechou para obras, mudou de gerência, por motivo de doença, vai-se transformar noutra coisa qualquer como uma florista ou num restaurante a puxar ao fino, esse ridículo devaneio de classe média descontente com a sua pele. Será tudo e mais alguma coisa menos o café da minha adolescência acidentada, dos amigos, das motas à porta, dos desatinos com o dono. O cinema onde comecei a ver filmes transformou-se num condomínio de luxo, as memórias, as aventuras, os desenhos animados, o primeiro “Bambi”, o interminável filme da segunda guerra mundial. Todas as imagens reduzidas a nada, todas as memórias desaparecidas antes do meu desaparecimento oficial. Ali ao fim da rua era a oficina do pai do “Jimbra”, todos os carros de todos os nossos pais estacionavam ali, uma, duas vezes por ano. A mudança do óleo era pretexto para convívio, algazarra, brincadeira. Agora é um supermercado anão cheio de promoções e senhoras gordas com carrinhos metálicos a passar tangentes à prateleira dos artigos de higiene. Nunca mais vi o “Jimbra”, dizem que foi viver para a África do Sul há muitos anos, que está gordo que nem um texugo, cheio de filhos. O irmão dele morreu há três anos. Um dia de manhã acordou e voltou a dormir, deixou de ser antes de comer as torradas e o café com leite com a mulher dele. Só me consigo lembrar dele com um bibe aos quadradinhos azuis e brancos a catar burriés do nariz e a colar na parede do recreio. O “Jimbra” não apareceu no funeral, talvez porque as viagens são muito caras, talvez porque não se conseguiu baldar no trabalho. E assim nos vamos desfazendo no pó do tempo, desaparecendo todos um pouco todos os dias até sermos nada. Um nada gigantesco que atravessa a existência como o pelotão de ciclistas na Volta a Portugal numa estrada esquecida no calor do Alentejo. De repente o ruído das cigarras torna-se maior, as rodas pedaleiras emitem um som característico de boneco de corda e a populaça vibra. Passam os ciclistas, os mais destacados primeiro, o pelotão compacto depois e é como se uma corrente de ar com correntes  atravessasse a planície. Depois o som vai descendo até ficarem só as cigarras e o campo em silêncio debaixo do Sol. Primeiro passamos nós, depois as memórias, que se vão apagando como se um vassoura varresse os restos ao longo de um corredor, ou de uma estrada. Não deviam ser as memórias as primeiras a tornar-se em nada, devíamos ser nós. Nós e o Nada desde o primeiro dia, luta eterna e inglória, triunfos e derrotas sempre inscritos nas terras do efémero, nos lugares de “coisa nenhuma”. Resta a escola primária, a igreja, acredito que são edifícios mais difíceis de reciclar na voragem do tempo. Restam os amigos e a comunhão das memórias. Um dia não estaremos cá definitivamente, nem nós nem qualquer indício de nós, qualquer memória, nem sinal de rasto. E, por algum motivo, por alguma razão que a própria razão não consegue identificar, uma gargalhada nasce nas entranhas, entra na sala sem se fazer convidada. A estupidez, o absurdo, as paredes do vazio fabricam-se com as pedras da liberdade. De tão estúpida ser a nossa condição a vontade de rir sobrepõe-se a tudo. A naturalidade da aceitação não é mais que o desprezo total por esta sentença condenatória que despejaram sobre a cabeça desde o dia em que nascemos. Há que rir pois, de toda esta encenação, de toda esta ópera bufa, pela simples razão que também ela vai desaparecer, tornar-se em nada como nós. E amar os outros que como nós foram condenados a existir. Amá-los sem tréguas nem condições, ajudar a carregar as pedras deste para o outro lado, para que o riso seja ainda maior, para que a gargalhada se torne ainda mais agradável. Porque o Messias, já todos o sabemos, só vai chegar no dia a seguir ao último dia. Por isso saibamo-nos transformar no Messias que somos todos e cada um e tentemos dar algum sentido a um plano que se apresenta sem sentido nenhum. Tornemo-nos nas cigarras que continuam o seu canto depois da passagem do pelotão dos ciclistas.

 

Artur