Caro Hélder:
Nós por cá todos bem...
1. Como deves calcular, não poderia deixar sem resposta a tua carta, sobretudo no que ela tem de rigor, profundidade e clareza. Nem sequer quanto aos factos que enuncias, embora a minha resposta/postal não coincida exactamente com o tema principal da tua missiva. De qualquer modo, espero alargar o horizonte imediato das tuas e das minhas reflexões, almejando procurar compreender melhor tudo o que está em causa. Aqui vai.
2. Referes um texto meu, escrito em 2011, numa altura em que me indignava quotidianamente com as falácias e as frases estúpidas que os novos governantes iam debitando a um ritmo alucinante, revelador de um frenesim moralista, regenerador, moralizante e tudo o mais que aqui coubesse de absurdo. Era vê-los proclamarem-se como os Messias que vinham "pôr ordem na casa", "salvar o povo português dos seus maus hábitos", "recolocar Portugal no caminho do desenvolvimento e das finanças públicas sãs", etc., etc.. Quão depressa ruíram essas pias intenções, sumamente atiradas para o caixote do lixo da História quando se percebeu que estes novos evangelizadores, imbuídos de espírito castigador e tomados por um frenético afã de morigeradores de costumes, eram só uma máscara e que enfermavam dos mesmos vícios que nos conduziram à situação actual: amiguismo, defesa dos interesses privados à custa dos bens públicos, incompetência técnica e política, compadrio e generalizada corrupção. São eles próprios que conferem substância ao modo como Roland Barthes certa vez definiu a estupidez - A estupidez é a euforia do lugar - e como eles estavam eufóricos com o seu lugar. Ingenuamente, pensava na altura que era possível combater com as palavras, não com as minhas em particular, mas com as de todos nós, e que as palavras eram as armas que, conjuntamente com o voto, nos permitiam fazer exigências ao sistema, modificá-lo, exigir-lhe respostas, de certo modo torná-lo mais conforme às nossas aspirações. Compreendo hoje, tardiamente embora, que "armas" e "combate" pertencem ao domínio da violência, e que esta não se expressa, é muda: começa onde a palavra acaba, faz-se ouvir quando a palavra silencia. A não ser que recorramos à violência, não temos outro modo de fazer vingar as nossas posições; nem pelo voto, nem pela abstenção do mesmo. Hoje, o que me deixa estarrecido de pavor e de nojo é ver que esta gente vai espraiando uma visão messiânica e redentora do seu próprio papel : tendo desistido de renegerar os costumes, veêm-se a si mesmos como salvadores da Pátria (talvez o ridículo pin que usam na lapela contribua para forjar essa ilusão) e estão dispostos a fazer tudo para assegurarem o lugar que julgam ocupar na História. Um lugar que, diga-se em abono da verdade, só as mais delirantes fantasias podem assegurar a estes devotos do onanismo.
3. A lei que invocas e que concerne à atribuição ao partido mais votados dos votos brancos e nulos resulta de um sistema em pânico que procura apenas assegurar a sua sobrevivência, à custa de uma manobra horripilante. No limite, significa a nulidade desse tipo de votos como "votos de protesto", subvertendo a natureza mesma da intenção com que foram expressos. Significa que o único voto de protesto válido é a abstenção total. Concordarás que é uma triste conclusão. Por outro lado, lembrei-me de uma antiga máxima filosófica grega que postulava "os homens são sempre melhores do que as leis que produzem". Esta máxima, cuja validade e universalidade são inegáveis, conhece, no entanto, uma excepção: Portugal e os seus legisladores e políticos, cuja mediocridade tem um correlato directo nas leis que produzem. Aliás, os gregos estavam muito longe de serem ingénuos e, no fundo, o que eles queriam dizer é que por muito más que as leis sejam, por muito iníquas que se revelem, e por muito eficazes que sejam os aparelhos repressivos que as implementam, há sempre alguma coisa na natureza dos homens que os faz resistir e dizer não, sabotar e contrariar a iniquidade das leis. Excepto em Portugal.
4. Passemos a coisas sérias. Hannah Arendt dizia algures que a compreensão do fenómeno político era uma tarefa para toda uma vida. Se bem a entendo, só a morte conclui essa tarefa, pelo que se torna verdadeira a máxima latina segundo a qual "só os mortos são felizes". A nossa única saída é seguir as recomendações de Michel Foucault: "não amar o poder; libertar a acção política de todas as formas de paranóia utilitária e totalizante; não exigir da política que ela restabeleça os direitos do indivíduo tal como a Filosofia os definiu - o indíviduo é o produto do poder -; o que é necessário é "desindividualizar" pela multiplicação e deslocamento dos diversos agenciamentos; o grupo não deve ser o laço orgânico que une os indíviduos hierarquizados, mas uma constante geradora de "desindividualização", etc., tal como lembrei no texto "Capitalismo e Esquizoanálise".
5. Uma última reflexão. Relembro a extraordinária actualidade do pensamento dos existencialistas franceses - Malraux e Camus por um lado, e Sartre e Merleau-Ponty por outro - que colocaram a reflexão política no cerne do seu pensamento, constituindo um caso único na história do pensamento filosófico, considerando que o essencial não era descobrir soluções filosóficas para as incertezas políticas. Pelo contrário, viam a política como uma via de resolução das incertezas filosóficas que, no seu entendimento, não podem ser resolvidas ou sequer devidamente formuladas em termos puramente filosóficos. É por isso que Sartre nunca cumpriu, nem voltou a mencionar a promessa com que concluía "L'être et le néant": enunciar uma filosofia moral. Em vez disso, escreveu peças de teatro, romances e fundou uma revista. Já nos anos 20 Malraux tinha declarado: "Descobrimos sempre o horror em nós próprios...Felizmente podemos agir". Nas tristes circunstâncias actuais, a verdadeira acção, nomeamente começar qualquer coisa de novo, ou de inédito, ou de relevante para o nosso futuro, só parece possível no âmbito das revoluções. Portando, a revolução desempenha o papel outrora desempenhado pela vida eterna; a revolução salva aqueles que a fazem. Mas, as revoluções já não parecem possíveis. O votante de hoje passa da indignação à tristeza e desta não sai. A sua passividade, que é tanto constituída de medo como de uma espécie de sensatez que falta aos que o governam, é bem o símbolo de um estado de coisas sem solução. Malraux e sobretudo Camus insistiram na revolta sem sistema histórico nem definição rigorosa dos fins e dos meios, ou seja: no homem revoltado. Trata-se de uma diferença considerável: o que importa não é que o mundo presente tenha entrado em crise e que o caos se tenha instalado com o seu arraial de devastação: é a natureza humana que é enquanto tal "absurda", pondo como põe problemas insolúveis a um ser dotado de razão. Quem o não compreender, julgo eu, continuará a atribuir importância a estes epifenómenos que são os nossos políticos, dotando-os de uma relevância que a sua condição de fantoches não autoriza.
Um grande abraço
Arnaldo
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