Este texto deveria ter sido publicado ontem, Dia Mundial do Livro, circunstância que se pode deduzir a partir do título e da temática. Motivos imponderáveis, e não dispiciendos, motivaram o adiamento da sua publicação para hoje, dia 24, que, como explicou suficientemente um dos mais talentosos comediantes da nossa praça, é o dia que se segue ao dia 23.
São bem conhecidos os documentários, ou filmes-ensaio, que Alain Resnais realizou no princípio da sua carreira: "Van Gogh", "Gauguin", "Guernica", "Le Chant du Styrène", "Les Statues Meurent Aussi", etc., constituindo-se como exemplos supremos de cinematografia abstractizante, no mesmo sentido em que se diz que a última fase da obra de Cézanne pode ser caracterizada como abstrações em torno de natureza mortas ou de paisagens. Seguindo essa mesma linha a um nível puramente formal, o filme "Toute La Mémoire du Monde" pertence a um outro universo: o das instituições que se filmam adoptando um discurso sobre a técnica e a modernidade que argumenta em torno de um dos desafios cruciais da humanidade: organizar a sua memória.
Estamos em 1959 e a Bibliteca Nacional de França é conduzida de acordo com uma política de modernização, de extensão de edifícios e de exposições que procuram romper com a imagem poeirenta do imenso imóvel da Rue Richelieu. Resnais permanece sensível a esta ruptura, antecipando muito do que virá depois e que constitui a realidade actual. Como se verá adiante. O filme constitui-se a partir de longos planos-sequência através dos cavernosos corredores da Biblioteca, sendo acompanhados por um comentário céptico: juntos - texto e imagem- imaginam a BNF como uma paisagem não-humana, proibitiva, um local onde o Homem tenta "aprisionar" o conhecimento, num esforço colossal de transpôr os limites da sua própria memória; esse esforço torna-se uma ilusão, um não-sentido e apenas nos actos de seleção individual - um leitor que escolhe um texto específico - existe esperança de que essa massa imensa de conhecimento indiferenciado possa ser redimida, na medida em que o leitor faz um uso discriminado de uma memória colectiva nacional em prol de um propósito individual construtivo. Confuso ? Nem tanto. Quem vir o filme (disponível numa edição DVD da Costa do Castelo que reúne diversas obras documentais do cineasta), perceberá que estamos perante uma visão utópica de uma memória universal que apela a um fantástico desejo: a extensão da sala de leitura ao tamanho do Mundo, ou a antecipação precoce da realidade das redes electrónicas e da utopia contemporânea da biblioteca universal on-line, reforçando a absoluta necessidade dessa memória colectiva, o carácter precioso das edições banais, os leitores como pequenas células que trabalham no seu próprio domínio em favor de um grande desígnio, o grande segredo escondido no fundo de todos os livros - quer dizer, a felicidade, ou a capacidade de nos ensinar a falhar melhor.
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