segunda-feira, 1 de abril de 2013

O RISO E O NADA


 
Começa a ser um exercício deprimente caminhar ao longo do bairro e verificar a quantidade de espaços transformados, vazios, ou simplesmente desaparecidos, aqueles espaços que estávamos habituados a ver todos os dias, a cumprimentar na passada atrasada a caminho da escola, do trabalho, da escola dos filhos. Era suposto as memórias morrerem depois de nós…ou era ao contrário? O café que sempre ali esteve deixou de estar, fechou para obras, mudou de gerência, por motivo de doença, vai-se transformar noutra coisa qualquer como uma florista ou num restaurante a puxar ao fino, esse ridículo devaneio de classe média descontente com a sua pele. Será tudo e mais alguma coisa menos o café da minha adolescência acidentada, dos amigos, das motas à porta, dos desatinos com o dono. O cinema onde comecei a ver filmes transformou-se num condomínio de luxo, as memórias, as aventuras, os desenhos animados, o primeiro “Bambi”, o interminável filme da segunda guerra mundial. Todas as imagens reduzidas a nada, todas as memórias desaparecidas antes do meu desaparecimento oficial. Ali ao fim da rua era a oficina do pai do “Jimbra”, todos os carros de todos os nossos pais estacionavam ali, uma, duas vezes por ano. A mudança do óleo era pretexto para convívio, algazarra, brincadeira. Agora é um supermercado anão cheio de promoções e senhoras gordas com carrinhos metálicos a passar tangentes à prateleira dos artigos de higiene. Nunca mais vi o “Jimbra”, dizem que foi viver para a África do Sul há muitos anos, que está gordo que nem um texugo, cheio de filhos. O irmão dele morreu há três anos. Um dia de manhã acordou e voltou a dormir, deixou de ser antes de comer as torradas e o café com leite com a mulher dele. Só me consigo lembrar dele com um bibe aos quadradinhos azuis e brancos a catar burriés do nariz e a colar na parede do recreio. O “Jimbra” não apareceu no funeral, talvez porque as viagens são muito caras, talvez porque não se conseguiu baldar no trabalho. E assim nos vamos desfazendo no pó do tempo, desaparecendo todos um pouco todos os dias até sermos nada. Um nada gigantesco que atravessa a existência como o pelotão de ciclistas na Volta a Portugal numa estrada esquecida no calor do Alentejo. De repente o ruído das cigarras torna-se maior, as rodas pedaleiras emitem um som característico de boneco de corda e a populaça vibra. Passam os ciclistas, os mais destacados primeiro, o pelotão compacto depois e é como se uma corrente de ar com correntes  atravessasse a planície. Depois o som vai descendo até ficarem só as cigarras e o campo em silêncio debaixo do Sol. Primeiro passamos nós, depois as memórias, que se vão apagando como se um vassoura varresse os restos ao longo de um corredor, ou de uma estrada. Não deviam ser as memórias as primeiras a tornar-se em nada, devíamos ser nós. Nós e o Nada desde o primeiro dia, luta eterna e inglória, triunfos e derrotas sempre inscritos nas terras do efémero, nos lugares de “coisa nenhuma”. Resta a escola primária, a igreja, acredito que são edifícios mais difíceis de reciclar na voragem do tempo. Restam os amigos e a comunhão das memórias. Um dia não estaremos cá definitivamente, nem nós nem qualquer indício de nós, qualquer memória, nem sinal de rasto. E, por algum motivo, por alguma razão que a própria razão não consegue identificar, uma gargalhada nasce nas entranhas, entra na sala sem se fazer convidada. A estupidez, o absurdo, as paredes do vazio fabricam-se com as pedras da liberdade. De tão estúpida ser a nossa condição a vontade de rir sobrepõe-se a tudo. A naturalidade da aceitação não é mais que o desprezo total por esta sentença condenatória que despejaram sobre a cabeça desde o dia em que nascemos. Há que rir pois, de toda esta encenação, de toda esta ópera bufa, pela simples razão que também ela vai desaparecer, tornar-se em nada como nós. E amar os outros que como nós foram condenados a existir. Amá-los sem tréguas nem condições, ajudar a carregar as pedras deste para o outro lado, para que o riso seja ainda maior, para que a gargalhada se torne ainda mais agradável. Porque o Messias, já todos o sabemos, só vai chegar no dia a seguir ao último dia. Por isso saibamo-nos transformar no Messias que somos todos e cada um e tentemos dar algum sentido a um plano que se apresenta sem sentido nenhum. Tornemo-nos nas cigarras que continuam o seu canto depois da passagem do pelotão dos ciclistas.

 

Artur

3 comentários:

Hélder disse...

Arrepiaste-me. Abraço.

A.Teixeira disse...

À medida que se nos embrenhamos no texto imaginam-se uns dedos que vogam deprimentemente por um teclado.

Artur Guilherme Carvalho disse...

Helder...obrigado.
António, período de aquecimento para o próximo trabalho de fundo. Desenferrujamento e sim, "dedos que vogam sobre o teclado em bailados deprimentes". Sem duvida.