Começa a ser um exercício
deprimente caminhar ao longo do bairro e verificar a quantidade de espaços
transformados, vazios, ou simplesmente desaparecidos, aqueles espaços que
estávamos habituados a ver todos os dias, a cumprimentar na passada atrasada a
caminho da escola, do trabalho, da escola dos filhos. Era suposto as memórias
morrerem depois de nós…ou era ao contrário? O café que sempre ali esteve deixou
de estar, fechou para obras, mudou de gerência, por motivo de doença, vai-se
transformar noutra coisa qualquer como uma florista ou num restaurante a puxar
ao fino, esse ridículo devaneio de classe média descontente com a sua pele.
Será tudo e mais alguma coisa menos o café da minha adolescência acidentada,
dos amigos, das motas à porta, dos desatinos com o dono. O cinema onde comecei
a ver filmes transformou-se num condomínio de luxo, as memórias, as aventuras,
os desenhos animados, o primeiro “Bambi”, o interminável filme da segunda
guerra mundial. Todas as imagens reduzidas a nada, todas as memórias
desaparecidas antes do meu desaparecimento oficial. Ali ao fim da rua era a
oficina do pai do “Jimbra”, todos os carros de todos os nossos pais
estacionavam ali, uma, duas vezes por ano. A mudança do óleo era pretexto para
convívio, algazarra, brincadeira. Agora é um supermercado anão cheio de
promoções e senhoras gordas com carrinhos metálicos a passar tangentes à
prateleira dos artigos de higiene. Nunca mais vi o “Jimbra”, dizem que foi
viver para a África do Sul há muitos anos, que está gordo que nem um texugo,
cheio de filhos. O irmão dele morreu há três anos. Um dia de manhã acordou e
voltou a dormir, deixou de ser antes de comer as torradas e o café com leite
com a mulher dele. Só me consigo lembrar dele com um bibe aos quadradinhos azuis
e brancos a catar burriés do nariz e a colar na parede do recreio. O “Jimbra”
não apareceu no funeral, talvez porque as viagens são muito caras, talvez
porque não se conseguiu baldar no trabalho. E assim nos vamos desfazendo no pó
do tempo, desaparecendo todos um pouco todos os dias até sermos nada. Um nada
gigantesco que atravessa a existência como o pelotão de ciclistas na Volta a
Portugal numa estrada esquecida no calor do Alentejo. De repente o ruído das
cigarras torna-se maior, as rodas pedaleiras emitem um som característico de
boneco de corda e a populaça vibra. Passam os ciclistas, os mais destacados
primeiro, o pelotão compacto depois e é como se uma corrente de ar com
correntes atravessasse a planície. Depois
o som vai descendo até ficarem só as cigarras e o campo em silêncio debaixo do
Sol. Primeiro passamos nós, depois as memórias, que se vão apagando como se um
vassoura varresse os restos ao longo de um corredor, ou de uma estrada. Não
deviam ser as memórias as primeiras a tornar-se em nada, devíamos ser nós. Nós
e o Nada desde o primeiro dia, luta eterna e inglória, triunfos e derrotas
sempre inscritos nas terras do efémero, nos lugares de “coisa nenhuma”. Resta a
escola primária, a igreja, acredito que são edifícios mais difíceis de reciclar
na voragem do tempo. Restam os amigos e a comunhão das memórias. Um dia não
estaremos cá definitivamente, nem nós nem qualquer indício de nós, qualquer
memória, nem sinal de rasto. E, por algum motivo, por alguma razão que a
própria razão não consegue identificar, uma gargalhada nasce nas entranhas,
entra na sala sem se fazer convidada. A estupidez, o absurdo, as paredes do
vazio fabricam-se com as pedras da liberdade. De tão estúpida ser a nossa
condição a vontade de rir sobrepõe-se a tudo. A naturalidade da aceitação não é
mais que o desprezo total por esta sentença condenatória que despejaram sobre a
cabeça desde o dia em que nascemos. Há que rir pois, de toda esta encenação, de
toda esta ópera bufa, pela simples razão que também ela vai desaparecer, tornar-se
em nada como nós. E amar os outros que como nós foram condenados a existir.
Amá-los sem tréguas nem condições, ajudar a carregar as pedras deste para o
outro lado, para que o riso seja ainda maior, para que a gargalhada se torne
ainda mais agradável. Porque o Messias, já todos o sabemos, só vai chegar no
dia a seguir ao último dia. Por isso saibamo-nos transformar no Messias que
somos todos e cada um e tentemos dar algum sentido a um plano que se apresenta
sem sentido nenhum. Tornemo-nos nas cigarras que continuam o seu canto depois
da passagem do pelotão dos ciclistas.
Artur
3 comentários:
Arrepiaste-me. Abraço.
À medida que se nos embrenhamos no texto imaginam-se uns dedos que vogam deprimentemente por um teclado.
Helder...obrigado.
António, período de aquecimento para o próximo trabalho de fundo. Desenferrujamento e sim, "dedos que vogam sobre o teclado em bailados deprimentes". Sem duvida.
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