segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

O que é um monstro ?

A palavra "monstro" deriva do verbo latino "monstrare" e aplicava-se a todos aqueles que mostravam, exibiam as suas deformidades ou deficiências físicas, provocando a piedade, a comiseração  e a compaixão da comunidade a que pertenciam. Não é assim o monstro na nossa triste contemporaneidade : o monstro moderno exibe-se perante o país numa pretensa "mensagem de Natal", que mais não é do que uma manobra da mais vil e abjecta propaganda, que se arrasta por infindável meia-hora de mau português,  mentiras, fraudes, servidas por um discurso vazio, ôco, redondo e, repito, infindável. Não é por se apresentar bem penteadinho, com um fato de bom corte, a voz bem colocada e a serenidade estampada no rosto que o monstro deixa de o ser. Não exibe, antes esconde o aleijão moral de que enferma, a profunda ausência de ética e de pensamento que fica camuflada e soterrada sob essas toneladas de imbecilidades que pontuam o discurso. No fundo, qual é a mensagem (se é que há alguma ) ? Poderia resumi-la assim:

"É verdade que o preço que pagaram foi pesado e continuará a sê-lo. A vida que vos peço que levais parecerá inumana, calamitosa, indigna. Mas mudai um momento de perspectiva. Deixai esse ponto de vista estritamente pessoal, egoísta, piegas, limitado e considerai o do mundo mirabolante que vos prometo à chegada. Abandonai o vosso ponto de vista e aceitai o desta grande utopia que eu vos proponho e em nome da qual vos peço que aceitais o arbítrio, a devastação, as humilhações e as indignidades. Vereis então que tudo isso faz parte de um plano de conjunto. Compreendereis então que esta devastação, esta carnificina, talvez participem de uma ordem superior. Parecia-vos cruel, insensato ? Pois bem, não é ! Isso possuía um sentido, estava inscrito na ordem das coisas. Eu, que estou aqui para vos guiar, há muito o compreendi e compreendi porque sou persistente onde vocês são preguiçosos e lamechas; racional e superiormente culto, onde vós sois ignorantes e emotivos. Descartes no disse: "a distribuição dos males e dos bens parece-vos inequitável ? Mudai antes de desejos, em vez de quererdes mudar a ordem do mundo"; "adoptai uma visão sinóptica sobre a desigual distribuição dos bens e dos males " (Platão); "adoptai o ponto de vista da Substância, do necessário desenrolar dos seus modos" (Espinosa); "adoptai o ponto de vista de Deus, mónada suprema e entendimento perfeito, geometral, de todas as perspectivas" (Leibniz). Em suma, mudai de perspectiva, mais uma vez, e logo vereis como toda essa poeira de pequenos sofrimentos, todos esses males, todas essas desordens, eram apenas o outro aspecto, a outra face, ou o caminho mais longo, mas o mais seguro, para a chegada do Espírito Santo (não, o do banco, o outro). "Quando se escreverá finalmente alguma coisa do ponto de vista de uma piada superior, isto é, segundo a visão do Bom Deus, lá em cima", perguntava Flaubert, de modo zombeteiro. Pois bem, aqui está, sou eu que o digo, eu passos coelho, que me tornei o dissipador das nuvens negras e anuncio o céu azul e as águas límpidas para todos aqueles que acreditam em mim. " Foi esta a mensagem de Natal e foi o monstro que a disse. E disse mais: é assim que, inspirando-se nos meus protocolos, se escreverão em breve as grandes páginas da sujeição - até, e inclusive, as máquinas totalitárias, no alto da escala do despotismo e, em baixo, impossível de serem confundidos com elas, mas partilhando contudo este traço, essas máquinas ultraliberais que, afinal de contas também ordenam: mudai de perspectiva ! aderi ao ponto de vista da inevitável globalização ! aceitai o da harmonização espontânea efectuada pela mão invisível do mercado mundial ! e vereis como a vossa vida desfeita, humilhada, perdida, participa também num plano cuja fórmula secreta está nas mãos desses novos hegelianos que são os senhores de Wall Street, os fundos de pensões californianos, a Merkel, os mercados, os credores, os meus senhores e donos e eu, passos coelho, a sua voz, o mensageiro enviado para vos trazer a Boa Nova. Acreditai, arrependei-vos e sereis salvos por mim.

P.S. - Graças a Deus, não sou católico :


quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

UMA CEIA DE FANTASMAS



Uma noite de Natal pode ter mil e uma aplicações, desde uma simples mudança no estado de espírito até servir de espaço para um romance inteiro. A noite de Natal é sempre essa mistura de recordações e de personagens que fomos e somos e ainda a tímida chama de um futuro que se deseja de esperança. No tempo que vivemos assemelha-se a uma ceia de fantasmas ou de formas que desaparecem um pouco todos os dias. A mesa encolhe do lado da realidade viva e alarga-se na parte das memórias, do grupo dos que já marcharam. Tudo isso faz sentido, sempre fez. Chama-se “a ordem natural das coisas” e rapidamente percebemos isso a partir da primeira morte. O que não faz sentido nenhum é o desaparecer da sala de jantar, da casa, da caixa de memórias, o que não faz sentido é desaparecer a dinâmica da renovação, pura e simplesmente ver extinta essa “ordem natural das coisas”. O que não faz sentido é ver morrer Portugal. Viver num lugar onde os velhos escolhem todos os dias se hão-de comer ou comprar remédios, os jovens são obrigados a partir para fora se quiserem ter direito a uma vida, e em todos é construído um sentimento de culpa por simplesmente querer viver, como num sofisticado campo de concentração, numa reserva sem recursos. Viver num lugar sem identidade, sem memória e sem língua materna é viver em lugar nenhum, é não ter nenhum canto a que se possa chamar seu. Por isso esta noite é maior o espaço para os fantasmas se sentarem à mesa do que o da realidade viva. Em breve toda a mesa será ocupada na exclusividade por fantasmas. Em nome das razões mais estúpidas, mais mentecaptas e mais esquizofrénicas que podemos imaginar anula-se uma cultura, extermina-se um povo, encerra-se um país. Em nome da “competitividade” funda-se uma colónia de escravos, em nome do “crescimento” extermina-se um terço da população, em nome dos “orçamentos equilibrados” coloca-se uma pedra em cima de uma nação. Quando toda a mesa estiver ocupada por fantasmas espero não estar cá para ver. Custa-me muito fazer parte do ultimo capítulo da longa história da realidade onde nasci. E custa-me ainda mais por saber que o meu esforço foi inútil, incompleto, não serviu para nada.
Um bando de psicopatas continua a decidir o destino de milhões. Umas vezes transformando esse destino em destino nenhum, outras dando a escolher em que árvore é que o enforcado quer a corda.
Mas quem não se defende, quem não reage, quem nada faz a não ser ter medo não merece o chão que pisa nem o ar que respira. A extinção é o seu destino. Assim se cumpre a “ordem natural das coisas”. Tenham um Feliz Natal.


Artur

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

BOAS FESTAS



                                       Este blog deseja a todos os seus leitores um Feliz Natal.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

ALTAMONT - PROVAVELMENTE O MELHOR SITE DE MUSICA DE TODOS OS TEMPOS

Os melhores discos de 2014

Por

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Mais um ano chega ao fim e cá estamos, uma vez mais, para vos dar a nossa lista dos 25 melhores de 2014.
Não tendo sido um ano tão forte em nomes como sucedeu no ano transacto onde parece que todas as bandas fortes da actualidade resolveram lançar discos, caso dos Arcade Fire, The National, The Strokes, Arctic Monkeys, Devendra Banhart, Vampire Weekend, entre outros, foi, igualmente, um ano rico em lançamentos, sobretudo a nível nacional que teve em 2014 o momento mais forte desde os anos 80, tal foi a quantidade (e qualidade) de lançamentos de discos e concertos de bandas lusas.
Este ano temos três discos nacionais no nosso Top25 e todos muito bem colocados. É um orgulho ver que a música nacional está outra vez a dar cartas e que há muita qualidade pronta para aparecer. É só terem tempo de antena.
Tal como no ano passado, para este Top25 tivemos o seguinte critério: Cada um dos elementos do Altamont votou no seu Top10 individual sendo que as pontuações seguiam a lógica da Formula 1. O primeiro classificado tem 25 pontos, o segundo 18, tendo o terceiro 15 e assim sucessivamente, premiando, desta forma, os discos mais importantes a nível pessoal.
Dos mais de 100 discos votados, estes são os nossos 25 melhores:
25. Tv On The Radio – Seeds

Ao quinto disco os TV On The Radio souberam encontrar perfeitamente o seu espaço no meio de tantas bandas que se vão perdendo no tom ao longo do caminho. Seeds não fica atrás dos melhores momentos da banda, como Dear Science (2008) ou Return to Cookie Mountain (2006). E se o disco de 2011, Nine Types of Light, passou razoavelmente despercebido este Seeds é representativo daquilo que os TV On The Radio são capazes de fazer.As mudanças de registo entre os loops e o electrónico para um registo mais rock introduzem alguma inconsistência mas não retiram valor ao disco. Não é de estranhar, devido à recente morte do baixista Geral Smith, que o álbum acabe por ser um tributo, mais expresso em «Ride» mas sobretudo em «Trouble». A fechar, «Seeds» dá um tom mais alegre, quase de renovação, deixando no ar uma sensação boa, de um disco completo e positivo – se não soubéssemos as circunstâncias não o adivinharíamos.
24. Sharon Van Etten – Are We There

O novo trabalho de Sharon Van Etten é para ouvir com atenção. Dedicar-lhe uma hora, sem distracções, saborear o piano e a voz sussurrada e grave. Are We There, o quarto disco da norte-americana que nos últimos anos se afirmou como uma das mais acarinhadas vozes do folk alternativo, é o que nos traz uma maior produção. É cheio, completo, apaixonado e imensamente triste.
Sharon Van Etten mantém neste disco o seu estilo confessional, mas sem perder contacto com as influências mais alternativas do seu estilo. Alguns dos instrumentos usados, aliás, são os mesmos que foram tocados por Patti Smith ou John Lennon. No entanto letras e voz sobrepõem-se a quase tudo o resto. É por isso que este Are We There tem de ser ouvido com cuidado, com atenção. Uma audição mais superficial torna o disco demasiado melancólico e a roçar o aborrecido, o que é um destino menos digno para o trabalho que Van Etten aqui nos deixa.
23. Tinariwen – Emmar

Emmaar é rock do deserto e blues misterioso. Mas isto não é blues clássico, porque quem afirmar não sentir a aura africana dos Tinariwen estará a mentir – das palavras proferidas em Tamasheq (a linguagem utilizada pelos Tinariwen) até à percussão que, envolvida nas guitarras, nos faz sonhar num território longínquo, não-ocidental, imenso como o deserto do Sahara.
Entre momentos mais contidos e nostálgicos, e outros mais afirmativos e pujantes, estes Tinariwen oferecem-nos em Emmaar uma música que, por mais que falemos em blues, soa absolutamente única e inovadora. Rock do deserto, pois claro.
22. St. Vincent – St. Vincent

A rodela de policarbonato de St. Vincent intitulada St. Vincent entrou na gaveta mágica e começou a tocar. De início, tudo na mesma.«Digital Witness» e «Birth In Reverse» são, indiscutivelmente, boas canções. E como são boas, acabam por fermentar, tornando-se, aos poucos, melhores ainda. Isso foi importante para um desconfiado. Fomos também encontrando, ao longo do disco, aquilo que parecem ser ecos (distantes, é certo) de Kate Bush, por exemplo. Outra coisa que nos pareceu óbvia é que este disco soa a um produto mais acabado, mais polido, o que sempre ajuda a cimentar a qualidade do material, sem que no entanto se descambe num cenário mais popular, o que a acontecer seria trágico. Por outras palavras, parece-nos que St. Vincent deixou de lado uma ideia que pode ser irritante (e no caso vertente era, seguramente), que é a de fazer música espertinha, para entendidos, para os intelectualmente pós modernos, se é que nos fazemos entender.
21. The Growlers – The Growlers

Os Growlers são uma banda diferente. Não procuram estrelato nem grandes alaridos. Pelo contrário, preferem arrastar-se entre as garrafas cheias e vazias de álcool, solução que encontram para tantos dos seus problemas mas talvez mais que isso, por opção própria, de quem gosta de fugir às responsabilidades. Talvez seja por isso que estejam já há bastante tempo em digressão, longe de casa. A banda liderada por Brooks Nielsen e Matt Taylor não parece ser obcecada pela perfeição, pelos arranjos excessivos em que nada é deixado ao acaso. Os Growlers, pelo menos, neste disco mais maduro e polido, continuam a ser aquela banda do «tá-se bem», que apenas está ali a tocar a sua cena. É um álbum no qual podemos ouvir umas pequenas incursões pelo reggae como em «Going Gets Tough» mas onde o sempre falado e presente psych impera.
20. BadBadNotGood – III

Uma sonoridade soturna, que vem de qualquer sítio onde está sempre chuva e está sempre nublado e os candeeiros da rua iluminam um caminho de alcatrão. É qualquer coisa como isto que se vê quando fechamos os olhos e ouvimos BadBadNotGood. Este trio canadiano lançou o seu primeiro álbum de originais, III, este ano que agora acaba, depois de uma série de EP’s e singles que foram vendo a luz do dia. Fala-se de uma sonoridade profundamente jazzística onde não falta percussão, sopro (fantástica intervenção em «Confessions») e cordas, mas que não descura uma contemporaneidade gritante: tudo isto é ligado à corrente por uns laivos electrónicos que deixam a água na boca. Excelente estreia esta, onde podemos afirmar que se existisse definição de chill num dicionário ou enciclopédia de música, este álbum era a foto da entrada, da capa e da contracapa.
19. Aphex Twin – Syro

Treze anos após drukQs*, Aphex Twin vem por fim à seca de que a música electrónica tem vindo a padecer nos últimos anos, trazendo consigo não só o novo Syro, como também muito mais material que acumulou nestes anos de paragem. Syro não é portanto mais um oásis, mas sim, espera-se, o início de um processo de «des-desertificação». Em Syro perpetuam-se algumas características de trabalhos anteriores e abandonam-se outras. Numa análise mais imediata, parece haver uma ligeira inclinação para o seu som mais ambiente, embora sem nunca largar aqueles beats ácidos que tão bem emprega, sendo talvez a música «CIRCLONT14 [152.97]» o melhor exemplo disto. Este equilíbrio (ambienttechno) ligeiramente desequilibrado faz com que, ao ouvir Syro, tanto sejamos transportados para uma rave cheia de putos a dançar com ecstasy no sangue a fazer de combustível, como para um passeio ao luar, por ruas vazias numa noite fria. É após uma hipnotizadora hora da melhor música electrónica dos últimos tempos que nos apercebemos dessa verdadeira beleza interior de Syro. E que maravilhosa descoberta é essa…

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

PRAIA DAS MAÇÃS NO INVERNO




                                                Imagem retirada de colares.sapo.blogs.pt

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

COMPREENDO



                        “Há quem diga que eu não vi…há quem pense que eu fugi”

                                    Tara Perdida






Antes de mais nada quero-te dizer que compreendo. Antes que seja tarde e quando já não me conseguires ouvir. Compreendo que não queiras jogar mais cartas para cima da mesa, não porque já não as tenhas mas porque se te acabou a vontade de jogar. Compreendo que todos temos um limite de ser espancados pela realidade, todos temos uma linha a partir da qual existe o direito de escolher. Acabar, pôr uma pedra em cima de tudo, esgotar todos os sentidos, fechar todas as portas e largar a casa a caminho de casa. Tempos houve em que não consegui compreender. Entramos num jogo de resistência sem saber as regras, enchemos um cenário de loucura desconhecendo o filme, sofremos um pouco todos os dias sem nunca perceber para que é que serve o sofrimento. O Miguel pendurado de uma seringa dentro de um carro embaciado em frente ao rio, o Luís a engatar magalas desenfreado nas casas de banho das estações de metro. A expressão serena de um e o brilho cada vez mais pequeno nos olhos do outro. Não compreendi que desligaram, que acharam o absurdo maior do que a sua capacidade de resistência, o “porquê” de manter um cenário que lhes trazia mais sofrimento do que outra coisa. Não compreendi e sofri a sua passagem para as outras terras, para aquelas paragens onde todos acabaremos por nos encontrar. Fizesse eu o que fizesse, nada resultaria que os desviasse de uma escolha previamente elaborada. Quiseram assim. E não compreendi na altura que éramos e somos todos reflexos uns dos outros, que se sofremos a vertigem do fim é apenas porque perdemos partes do Ser que é apenas um. É preciso crescer, viver, envelhecer. É preciso percorrer um longo caminho até atingir uma relação equilibrada com a frustração, o desapontamento e a dor. Hoje, passados todos estes anos vejo em ti o sorriso do Miguel e o brilho dos olhos vivos do Luís. Vejo em ti a minha cara e o meu sorriso numa tarde de Sol. Estamos todos lá. Não posso correr atrás de ti, não posso fazer nada a não ser deixar-te ir, respeitar a tua escolha. Amo muito a tua presença e a tua mão na minha mas não me posso esquecer do teu sofrimento que além de extremamente pesado te mortifica ao longo do caminho. Podia ser eu e de certa maneira sou. E faria exactamente como tu uma vez atingidos os meus limites. E sei que respeitarias a minha escolha. Por isso te compreendo, por isso respeito a tua atitude de ir desligando os botões um a seguir ao outro. Desta vez já não vou sofrer. Desta vez ficarei apenas brevemente triste de te ver partir…mas compreendo. As partes da mesma unidade não partem todas ao mesmo tempo. No entanto acabam sempre por se encontrar do outro lado. Acabam sempre por formar a unidade. És linda e sempre o foste tal como te amo e sempre te amei. Antes que deixes de me ouvir quero que saibas tudo isto. Quero-te dizer que compreendo.  

   Artur
 r

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

ORIENT EXPRESS




"Coisas que dão prazer : encontrar um grande número de contos que não lemos antes. Ou adquirir o segundo volume de um conto de cujo primeiro volume gostámos. Mas muitas vezes é uma desilusão."

"Na Primavera, a madrugada - quando lentamente a orla da montanha se tinge de vermelho, e nuvens  de púrpura-crisântemo vagueiam no céu. No Verão, a noite - noites de luar, é claro, mas também o escuro da Lua, é muito belo quando os pirilampos dançam por todo o lado num voo labírintico. E também é maravilhoso ver um ou dois desses insectos voarem através do escuro, brilhando suavemente. A chuva a cair numa noite de Verão também causa prazer. No Outono, o cair da tarde - o sol abrasador mergulha muito próximo da orla da montanha, e até mesmo os corvos, a três e quatro, apressando-se a chegar aos seus abrigos, são uma visão comovente. E, quando o sol desapareceu, como se torna inexprimível escutar o vento na escuridão crescente, e a canção dos insectos de Outono. No Inverno, a madrugada - se a neve cai, é claro, é sumamente agradável, mas também é perfeito se houve gelo branco e puro, ou se apenas estiver muito frio, e as pessoas se apressam a acender as lareiras. Mas é desagradável, à medida que o dia decorre e o ar se torna mais quente, como o fogo da lareira vai morrendo até se tornar cinza fria"

" É bonito o modo como as gotas de água gotejam tão grossas sobre as plantas do jardim depois de uma noite de chuva no nono mês, quando o sol da manhã brilha fresco e estonteante sobre elas. Onde a chuva se agarra ás teias de aranha penduradas numa vedação ou nos beirais, forma belas cordas e comoventes cordas de gotas que são como pérolas brancas. Também gosto do modo como, quando o sol brilha alto, os arbustos de trevos, todos dobrados ao peso das gotas, vertem o orvalho, e um dos ramos subitamente se levanta embora nenhuma mão lhe tenha tocado. E também acho fascinante que coisas como estas não deliciem outras pessoas."

"Nada é mais maravilhoso que a simpatia - num homem claro, mas também numa mulher. Pode ser só uma nota passageira, pode não ser nada de profundamente sentido, mas ouvir alguém dizer de uma situação triste "Que tristeza para ela", ou de uma circunstância tocante para alguém "Pergunto-me como se sentirá", torna-te mais alegre do que ouvi-lo dizer face a face. Desejo sempre encontrar um modo de tornar essa pessoa sabedora da sua resposta simpatética. Não te sentes particularmente surpreendido e comovido, é claro, no caso de alguém em quem podes confiar que sinta contigo ou te visite nessas ocasiões. Mas se alguém inesperado responde à narrativa dos teus desgostos com palavras reconfortantes, isso enche-te de prazer. É algo tão simples de fazer, mas tão raro..."

Sei Shonagon "The Pillow Book", Penquin Books, 2006

1. "Makura No Soshi" (O Livro de Cabeceira, Sei Shonagon, 1002)

É um livro de observações e apontamentos escritos por Sei Shonagon durante o tempo em que foi dama de companhia da Imperatriz Consorte Teishi no século XI, na vigência da era japonesa Heian. Os estudiosos calculam que tenha sido terminado no ano 1002. A escritora nele incluiu uma grande variedade de listas, pensamentos pessoais, descrições de acontecimentos importantes, poesia e comentários sobre os seus contemporâneos. Segundo Meredith McKinney, tradutora da versão inglesa que estou a seguir (Penguin Books, 2006), o livro foi composto maioritariamente em caracteres hiragana, e muitos dos seus contos foram escritos numa forma literária graciosa, particularidade que a tradutora soube conservar, tanto quanto me é dado perceber. Toca-me particularmente o sofisticado sentido poético da autora e o modo como funde essa sosfisticação com uma peculiar intuição para a singularidade das coisas, já que, se compararmos a sentimentalidade do "mono no aware" (o pathos dos entes) tal como a encontramos nos "Contos de Genji", a mesma beleza do mundo vem a ser revelada através do uso do conceito "okashi" (belo, agradável,prazenteiro) nesta peça. Começando com a exaustividade da "coleção de coisas similares" e o modo como é representada tanto para vermes como para flores ou árvores, "coisas horríveis" e "coisas de beleza", as deambulações de Sei Shonagon observam a natureza da vida quotidiana e as quatros estações do ano, descrevendo em aforismos longos "as suas memórias" (o seu diário), que olha para a sociedade da corte imperial que rodeia a Imperatriz Teishi, a quem serviu, com um inusitado sentido crítico. Mas, aquilo que mais me toca neste livro, mais ainda do que a sofisticação que evidencia e a perenidade intemporal da beleza das palavras e das coisas que retrata e descreve, é ouvir essa voz que vem de tão longe e se faz escutar como se falasse hoje. Imagino que traduzir este livro tenha sido também traduzir a voz e a presença da sua autora como no dia em que escreveu as palavras que chegam até nós. Tal significa voltar a apresentar aos nossos olhos o mundo vivido então, tão longínquo e tão próximo como são todas as coisas humanas. Por outro lado, verifico a sua surpreendente modernidade : parece ter sido escrito como um fluxo, já que muitas vezes se assemelha à corrente de um rio, similar às modernas correntes de consciência e, tal como a corrente do rio, imparável. Contém a intimidade típica e a impulsividade de um diário, e a sua voz é a voz do diário - insconcientemente dirigindo-se a um Outro familiar que é e não é uma versão de si própria. A forma directa e íntima dessa voz, a ausência de uma auto-absorção diarística, e a assumpção de que o prazer de que fala será compreendido e partilhado por um "tu" não-especificado, conduz a obra em direção a uma espécie de conversação com o leitor. Curiosamente, o livro não procura ser literário : Sei Shonagon encara-nos de frente através dos séculos, assumindo a familiaridade consigo e com o seu mundo, compelindo-nos a convergir emocional e intelectualmente com a indescritível beleza e profundidade da sua intuição.




2. "The Pillow Book" (O Livro de Cabeceira, Peter Greenaway, 1996)


Pintados a negro sobre os seios, os grafismos japoneses tornam-se vermelhos-sangue sobre o ventre de uma bela asiática. Este "travelling" aproximado do filme "O Livro de Cabeceira", de Peter Greenaway, desce até às coxas dissimuladas pela mão púdica da mulher pintada como uma ninfa renascentista. O modelo deste quadro vivo pretende ser Sei Shonagon, a tal dama da corte imperial de Quioto, de vestido estreito e longo. Mas essa inocente cronista teria dificuldade em reconhecer-se no espelho sulfuroso que lhe é mostrado por uma discípula moderna, revisitada por Greenaway. Para além do culto apaixonado votado a essa escritora do ano 1000, a infância japonesa de Nagiko é inscrita sob o signo de um duplo patrocínio : o pai calígrafo que, em cada aniversário da filha, traça amorosos mitogramas na face e na nuca da criança; e o editor dos escritos paternais, uma espécie de chefe de clã dispondo, a seu bel-prazer, do pai e da filha. Marcada pelo passado, Nagiko, que se tornou modelo em Hong Kong, só encontra prazer com aqueles que desenham belos grafismos no seu corpo. Até ao dia em que um inglês lhe oferece o corpo para que seja ela a inscrever os seus próprios textos.. Os seus amantes tornam-se então os suportes vivos de uma singular saga literária. Depois de revisitar a tragédia de Romeu e Julieta e de enviar ao editor treze livros, escritos no corpo de outros tantos amantes, o último dos quais comporta a morte desse tirânico rival, o filme arquiva-se como a soma de um bibliófilo esclarecido. Nem crónica sobre a Ásia actual, nem teatro de uma patologia criminal, "O Livro de Cabeceira" abre-se a uma meditação sobre a fugacidade da existência e da arte, esse sentimento do efémero que é nos nossos dias avivado pela perda do suporte-papel que implicam as novas tecnologias de comunicação e constitui um fecundo desmentido da propalada morte do texto escrito. Aos olhos de Greenaway, o mitograma chinês ou japonês demonstra que é possível uma síntese entre a figura e o escrito, a palavra reclamando o seu estatuto de espelho do mundo, como signo polissémico. Mais ainda: anunciando um vocabulário plástico enfim autónomo para o cinema, Greenway parecia anunciar em 1996, cem anos depois dos filmes dos irmãos Lumière, que o cinema ainda não tinha começado. Como é possível não se deixar deslumbrar por esse écran no écran, cuja técnica sincroniza mais legivelmente o passado e o futuro : essa face da heroína criança, decorada pelo pincel do pai, incrusta-se sobre o corpo de adulto que o seu amante pinta vinte anos mais tarde. Como esse deus cem vezes invocado por Greenaway que "pinta os olhos, os lábios e o sexo" e, se a criatura lhe agrada, consente em assinar a sua obra.



terça-feira, 25 de novembro de 2014

O PRESO Nº 44

Certo dia, um pai passeava com o seu petiz pelo Jardim Zoológico.Pararam frente à jaula das hienas. O pequeno perguntou ao progenitor : - Pai, que animal é este ? O pai, didáctico e informado, esclareceu - Este animal, meu filho, chama-se hiena e provém das savanas africanas. Alimenta-se de carcaças de outros animais e dos seus excrementos, tem relações sexuais uma vez por ano. Ah, e ri-se muito... Deslumbrado com a sabedoria do pai, o pequeno não deixou de retorquir :  - Mas pai, se a hiena come a merda dos outros animais e só fode uma vez por ano, ri-se de quê !?


Lembrei-me desta história perante a visão pornográfica do modo como os gajos e as tipas de direita se têm regozijado com a prisão de José Sócrates, como se eles próprios fossem virgens impolutas, como se não estivessem atascados até aos imundos pescoços no lamaçal que ajudaram a criar, como se não estivessem implicados em todos os esquemas de aldrabices, vigarices, trafulhices e roubalheiro com que têm espoliado o país, deixando à míngua o povo português que condenaram à pobreza e à desilusão, deliberadamente. É como se estas hienas não viessem a percorrer um caminho que vão semeando de merda e que convém percorrer com andas, como se esta canzoada famélica não viesse um dia também ela a arder no Inferno da sua própria decrepitude, e a escorregar no seu próprio vómito para o caixote do lixo da História. Como se estes traidores à Pátria, que se babam agora de prazer, não viessem também eles um dia a serem chamados a prestar contas pelos crimes que praticaram (eles mesmos ou por interpostos chacais). Como se estes novos e velhos impotentes não fossem eles mesmos, todos eles, o Preso nº 44.

sábado, 22 de novembro de 2014

HORIZONTE



Podia ser uma nave espacial a vogar pelo espaço da consciência colectiva…podia ser o depósito da frota onde se encontram a memória e a identidade…podia chamar-se “Resistência”. E felizmente a “Resistência” está de volta cumprindo o seu papel, entre revisões de canções antigas e novas propostas, reforçando a imprevisibilidade do futuro. Com “Horizonte” alinham-se onze temas compostos por uma equipa de onze elementos, músicos profissionais com trajectos individuais e agendas preenchidas que ocasionalmente se conseguem encontrar e trabalhar em conjunto. Momentos únicos num projecto único no panorama musical e cultural do país. “Resistência” é o seu espírito e nunca um conceito foi tão apropriado como este.
Podia ser uma banda de uma geração centrada sobre si própria e a sua história, instalada na obra dos seus elementos e na sua notoriedade. Em vez disso o projecto estabelece pontes com passado, na medida em que assinalando a influência trovadoresca (a expressão do acústico, a madeira das guitarras, a importância das palavras) e recuperando autores mais antigos (José Afonso), consegue cativar e convencer as novas gerações que não hesitam em encher auditórios e vibrar com as músicas feitas quando ainda não eram nascidas.
Num tempo em que linguagem, identidade, sociedade, democracia, inconsciente colectivo, individualidade, humanismo e liberdade são conceitos vagos empurrados para uma linguagem subversiva quase proibida, a resistência mantém essa chama que arde na imensa escuridão. Canta-nos canções de Liberdade, ensina-nos que tudo é possível quando damos as mãos, conta-nos histórias de amor. As canções de Rádio Macau, Xutos e Pontapés, Delfins, Madredeus e Banda Cósmica, Tim ou Pedro Ayres, são os elementos dessa pálida aguarela onde uma carrinha antiga segue na estrada a caminho do horizonte.
A sonoridade única é a habitual composta por seis guitarras, um baixo, uma bateria, percussões e voz.
Assistir a um concerto desta banda é uma experiência única e inesquecível. Todos o devíamos fazer pelo menos uma vez.


Artur 



quarta-feira, 19 de novembro de 2014

CARTA

Exmo. Sr. Dr. Paulo Portas, ilustríssimo Presidente do CDS-PP e Vice-Primeiro Ministro da Nação de Portugal:


Ouso dirigir-me a V. Exa. na qualidade de militante deste nosso pequeno-grande partido, nesta hora de grande responsabilidade histórica para todos os centristas brilhantemente  capitaneados pela figura de grande estadista e timoneiro que V. Exa., Dr. Paulo Portas tem sabido como ninguém interpretar. Grande é o fardo de salvar o nosso Portugal, mas, como se costuma dizer, "quando a tormenta é grande é que os grandes capitães se revelam". Não é por acaso que esta minha prosa está cheia de alusões a temas marítimos: todos conhecemos as preferências de V. Exa. por assuntos do mar, de submarinos, navios avulsos e marinheiros, essa nobre estirpe descendente dos grandes navegadores de antanho. V. Exa. é daqueles que, quando vê um cacilheiro, se põe logo a imaginar navegações para a Índia, o Extremo Oriente, os Brasis, as Austrálias, prova de uma grandeza de alma que o nosso Portugal, o Mundo, o Universo e até mesmo a Europa lhe reconhece, bastando para tal cruzar o olhar com a sua fulgurante figura, com os seus olhos de águia e porte de leão, com o dedo em riste com que ameaça socialistas e comunas, símbolo moderno da espada com que Afonso de Albuquerque amedrontava cafres e fazia vergar de medo indianos e árabes. Enfim, um grande estadista, um Mouzinho de Albuquerque dos tempos modernos.
Mas, note bem V. Exa., não foi para lhe enaltercer as virtudes - sobejamente conhecidas de todos e por todos proclamadas e celebradas - que lhe escrevo; antes me dirijo a V. Exa. para lhe dar conta da profunda inquietude que avassala meu coração centrista e da abissal angústia que me não deixa dormir e cujas causas passo a expôr: Depois da genial performance do Dr. Pires de Lima no Parlamento, onde revelou os seus dotes de comediante, capazes de embaçar os consabidos talentos histriónicos de um Vasco Santana, de um António Silva e, vá lá, de um Herman José (com o pequeno incómodo de este último não ser dos nossos), os esquerdelhos e os escribas do reviralho têm-se vindo a aliviar de aleivosias e maledicência a granel, cobrindo de pilhérias e objurgatórias o genial cómico e brilhante ministro (não esqueçamos que foi ele o autor do "milagre económico") : que é ridículo, que não se respeita a si próprio, que é patético, que não devia abusar do produto que produzia antes de ser chamado a "milagrar" a economia portuguesa (uma conhecida marca de cerveja que agora não me ocorre); chamam-lhe o Pires de Tremoços, dizem que perdeu a tineta, entre outros dislates indignos de serem aqui reproduzidos. Mas, como se costuma dizer, "os cães passam e a caravana ladra", ou qualquer coisa do género. O mais grave de tudo, aquilo que sinceramente ofende, magoa e humilha, é essa gentalha esquerdista e fedorenta andar a dizer que o Ministro Pires é contra "taxas" e "taxinhas" do António Costa em Lisboa, mas nada tem contra os "tachos" e "tachinhos" com que a actual maioria (a nossa, pois claro) tem colonizado e vampirizado o aparelho de estado, enchendo-o de bois  boys e tipas incompetentes, rapazolas e rapariguinhas acabados de desmamar e arrancados à pressa às actividades lúdicas das juventudes partidárias e colocados em altos cargos, com vencimentos que triplicam aqueles que são auferidos por pessoas qualificadas, competentes e com décadas de serviço ao Estado. Isto, rosna esta gente medonha, ao mesmo tempo que se despedem enviam para a requalificação dezenas de milhares de funcionários públicos. Não compreendem, não querem compreender esta brilhante estratégia de redução de desemprego levada a cabo por este governo, e que visa sobretudo combater a alta taxa de desemprego jovem, flagelo de uma geração de jovens promissores, altamente qualificados e dignos militantes dessas escolas de excelsas qualidades e elevadas virtudes que são as jotinhas (principalmente a nossa JC). Para finalizar, queria ainda referir o lapso cometido pelo milagreiro ao referir o banho que o ex-Ministro Manuel Pinho teria tomado com a actriz francesa Catherine Deneuve (o santo Pires de Lima enganou-se: não foi com Catherine Deneuve que o Pinho se banhou, mas com aquele trangalhadanças campeão olímpico de natação). Toda a gente sabe que a Madame Deneuve, símbolo internacional de elegância, beleza e talento (capaz de rivalizar com o nosso Pires de Tremoços Lima, porra, até eu me engano) é um fetiche particular do nosso CDS-PP (a Catherine Deneuve é nossa, não é de Moscovo, como diziamos nos negros tempos do PREC), mas, qualquer referência a essa actriz é logo motivo para novas aleivosias e insinuações maldizentes. A evitar, portanto.


Subscrevo-me com a devida vénia

JACINTO LEITE CAPELO REGO

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

SE NÃO AGORA, QUANDO?




(à memória de Primo Levi )

Vim para aqui em pequeno com os meus pais e os meus irmãos. Deram-nos uma extensão de terra onde poderíamos ficar a viver e uma linha, um perímetro que não podíamos ultrapassar. Todos os anos aparece cá uma delegação do Presidente, ou chefe da tribo dos brancos. Sentam-se numa mesa e registam quantos somos, quantos morreram e apontam tudo nuns papéis. Antes de se irem embora garantem que não voltarão a encurtar esta extensão de terra onde nos deixam habitar. E todos os anos nos retiram um bocado mais. Tenho filhos no colo e adormeço à noite a ouvir as barrigas da fome, os cânticos dos guerreiros embriagados, os gemidos dos doentes. Em cada ano que passa aumenta um ano de fome e miséria em nós. Fora da reserva os colonos e os animais embriagam-se da vida que desaparece do lado de cá. Os mais velhos envergonharam-se com a derrota e assinaram a capitulação. Nem querem ouvir falar em guerra. Mas se rapidamente não se começar outra guerra vamos desaparecer todos até não sermos nenhum e a reserva não passar de um terreno vazio varrido pelo vento. Não sei se consigo continuar a ver o meu povo a morrer um pouco todos os dias sem fazer qualquer coisa. Antes morrer defendendo a vida do que viver na antecâmara da morte.
O barco é uma canoa gigante onde nos amontoaram uns por cima dos outros em prateleiras de madeira enquanto atravessamos o grande lago. Os cheiros misturaram-se num só, um permanente sentido de morte que nos vai abafando a raiva. Ás vezes vêm-nos buscar. Os insurgentes ao princípio, depois os doentes e por fim todos os mais fracos. Já não lhes servem para nada e aliviam o peso na canoa gigante. Sabemos, aqueles que tiverem a sorte de chegar ao fim desta viagem, que seremos vendidos, que nos levarão para outros lugares como escravos. Mal me consigo mexer nesta prisão de madeira entalado entre outros dois corpos que respiram envergonhados. Ontem deitaram mais um  borda fora. Ouvi o corpo dele a bater na água. Os gritos terminaram no mesmo instante. Depois, o silêncio. Aquele nunca mais volta a sofrer. Estranhamente começo a desconfiar que teve muito mais sorte do que eu.
Ninguém consegue explicar bem, muito menos compreender, a razão de tanto ódio. Começaram por nos alojar a todos no gueto, pouco depois de nos encerrarem as lojas, queimar os livros, obrigar a andar identificados com uma estrela de David na roupa. Sucederam-se as rusgas, as prisões, a algazarra e todas as línguas do ódio nos lamberam não escapando ninguém. Espancam velhos, matam crianças. Um grupo de homens não aceitou esta matança sem sentido e pegou em armas contra os alemães. A ferocidade deles aumentou em sucessivas vagas cada vez maiores de soldados e explosões. Já não há grandes dúvidas. O desequilíbrio de forças é absurdo. Temos que sair daqui de Varsóvia. Fugir para outro lugar e continuar a resistir. Porquê? Se calhar por estarmos vivos e querer continuar assim. Se calhar porque o que todos os homens desejam no fundo é viver em paz. Principalmente porque não há razão nenhuma para uma população inteira ser exterminada só porque uma outra parte dessa população assim o determinou. Um camarada de armas despede-se do pai na noite antes da partida. O velho, um rabi, não vê com bons olhos a opção do filho, não aceita a violência por mais que veja o seu povo a sucumbir às mãos dela. O filho pergunta-lhe: e quando estivermos todos mortos? Fará sentido alguma coisa?

    Se não for eu por mim, quem será por mim?
    E mesmo quando eu pensar em mim, que sou eu?
    E se não agora, quando?

Artur


DUAS NOTAS

Ou melhor, uma pergunta (já respondida no seu próprio enunciado) e um pedido:

1. Pode alguém ser um académico internacionalmente reconhecido e, em simultâneo, ser infinitamente estúpido ? Pode esse mesmo alguém lecionar em prestigiadas universidades europeias e contemporizar com falta de carácter, desonestidade intelectual, propaganda oca e vazia, cinismo rasteiro e vulgar, mendácia e grosseria ? Pode, sem dúvida que pode.

2. Sua Excelência, o Presidente da República, Professor Doutor Aníbal Cavaco Silva, acaba de condecorar com a Ordem do Infante o famoso Durão Barroso, criatura multiforme que passou de cherne a animalzinho de estimação da Angela Merkel, de mordomo de George W. Bush na Base das Lajes ao mais deprimente presidente da Comissão Europeia de que há memória. A coleira O colar fica-lhe a matar : é o corolário, a cereja no topo do bolo de uma carreira política lastimável. Por isso lhe imploro, Senhor Presidente da República: nunca, por nunca, me condecore. Por tudo quanto tem de mais sagrado (a saber, e por esta ordem: V. Exa, V. Exa, V.Exa, etc.), nunca me chame ao Palácio de Belém para me atrelar a esse jugo de comendas e condecorações que deslustram quem as recebe. Muito obrigado pela atenção.

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

OSTINATO RIGORE

Carta a Sua Excelência Professor Doutor Pedro Manuel Passos Coelho, Presidente do Conselho, Primeiro Ministro de Portugal:


Exmo Sr.


Tem vindo V. Exa. a vituperar veementemente os jornalistas - empregando a difícil relação com a língua materna e o desvario verbal que são suas imagens de marca - acusando-os de patéticos, negligentes, preguiçosos, com falta de estudo e de leitura e carregando-os de crimes e pecados que nem ao Diabo lembrariam. Ou, no dizer popular que V. Exa. tanto aprecia e profusamente utiliza ("para trás mija a burra" permanecerá sempre como o supremo exemplo do afinco com que V. Exa. tem recusado a elitista elegância e o snob aprumo da linguagem em favor da recuperação do linguajar popular, tão saboroso e expressivo) : tem-lhes zurzido nos lombos com afinco. E com toda a razão, acrescento eu que também não aprecio por aí além essa raça de víboras que insiste em denegrir a imagem de V. Exa. e do Governo que tão denodadamente tem servido o País e o tem feito progredir em todas as áreas (o desemprego, a miséria, a exclusão social, o empobrecimento geral, a decadência dos serviços públicos, o enriquecimento ilícito de boys, escritórios de advogados e amigalhaços, para só citar alguns exemplos, têm progredido a olhos vistos). Mas o pior, o péssimo, aquilo que confrange até às lágrimas, é a suprema ingratidão destes escribas: esqueceram rapidamente aqueles lautos almoços para os quais V. Exa. os convidava na altura em que estava desejoso de ir ao pote e lhes matava a fome, servindo na ementa desses famélicos doses massivas de mentiras, asneiras, bacoquices e parvoíces e à sobremesa e ao cafézinho mais umas quantas flores da sua excelsa retórica, e que a canalha já saciada espalhava por redações de jornais, bendizendo o magno e esmoler benfeitor. Na sua bondosa ingenuidade, V. Exa. considerava-os como apóstolos da Boa Nova e em troca recebe agora punhaladas nas costas. Como vê, a máxima crística "faz o bem e não olhes a quem" não tem aplicação universal. Se me permite o conselho, na próxima campanha eleitoral, quando se tratar de ir outra vez ao pote, coloque-se V. Exa. numa excelente tecnoforma e selecione, corte, eleja para os almocinhos lautos apenas aqueles que derem garantias de se manterem fiéis à palavra revelada por V. Exa. e capazes de compreenderem os benefícios da sua acção governativa. Todos os outros podem perecer à fome, ou podem alimentar-se das folhas dos pasquins em que as suas opiniões são vertidas. Além do mais, andam por aí outros escribas a insinuar que um Primeiro Ministro cujo governo conta com o Prof. Dr. Nuno Crato, com a Prof. Dra. Teixeira da Cruz, com o Prof. Dr. Aguiar Branco e com o ilustre Prof. Dr. Rui Machete, além de si mesmo, Prof. Dr. Pedro Manuel Passos Coelho, deveria ter muito cuidado quando chama incompetentes, preguiçosos e ignorantes aos outros. Ou, no linguajar popular que V. Exa. tanto aprecia e tanto tem promovido, deveria "meter a viola no saco". Isto. Exmo Sr., já não é só ingratidão; é aleivosia, maledicência pernóstica e daninha.
Apesar de tudo o que atrás fica dito, permita-me que discorde de V. Exa., uma vez sem exemplo, com toda a humildade e com a testa a roçar no chão que V. Exa. pisa. Não são os jornalistas que recusam continuar a publicar as esmagadoras verdades e pérolas de sabedoria (ou, no linguajar popular que V. Exa. alçou ao estatuto incomparável de discurso governativo, para eles tais verdades e tais perólas são como "manteiga em focinho de cão") que se revelam incompetentes, preguiçosos, patéticos e ignorantes. Não, somos todos nós, este povo que não se revolta, que não se levanta, que não vos agride, insulta e humilha diariamente e se deixa conduzir ao matadouro, bem comportado, manso, tolerante. Ignorante é este povo que não vos cospe em cima onde quer que apareçam e que não vos manda para a puta que vos pariu, assim, com todas as letras do linguajar popular que V. Exa. tanto tem enaltecido. Porque, como dizia um borrabotas chamado Victor Hugo (não, não é o jogador de hóquei, refiro-me a um escritor francês do século XIX, conhecido por ter escrito obras como "Os Miseráveis", "Le Père Goriot", entre outras, e por ter sido um grande humanista): "Entre um governo que faz o mal e o povo que o consente há uma certa cumplicidade vergonhosa".

Com os melhores cumprimentos, etc, etc.


Arnaldo Mesquita

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

A ULTIMA MAMADA

                                               
                                                         Paula Rêgo - 2013

domingo, 12 de outubro de 2014

PEDRO DE PEDRA


Uma das lendas que corre amiúde, nas bocas das gentes da Foz do Arelho, é a história do velho Pedro, pescador que com o passar dos anos se foi isolando da sua comunidade até um desfecho cruel.
Dizia o povo que tinha sido enfeitiçado por uma bela donzela que por ali passara e por quem ficara embeiçado.
Na aldeia notara-se o seu crescente acabrunhamento.
Nunca, nem em novo, tinha sido um homem muito expansivo.

Naquele dia, uma comitiva real que se deslocava pela praia, de passagem da vila do Baleal para o mosteiro de Alcobaça, levava uma jovem aia de doces olhos claros.
Terá este pequeno grupo pedido a Pedro para os levar à margem norte da Lagoa de Óbidos. Foi assim que a vista de Pedro pousou em Lucinda, dama de companhia de uma senhora da corte, por quem imediatamente se perdeu de amores.
Como era final do Outono, fazia frio e a noite caía rápida, viu Pedro a oportunidade de se acercar de Lucinda, se oferecesse abrigo aos forasteiros.
Era pequena a sua casa mas pouco mais havia em léguas a redor. Talvez nas Caldas da Rainha encontrassem aposentos mais condicentes com a posição da condessa, mas ainda levariam umas horas a chegar lá e o dia depressa dava lugar à noite.
Estavam todos a dormir e acercou-se Pedro de Lucinda, na esperança que esta jovem de outro meio reparasse em si. Falou-lhe com toda a sabedoria que tinha para falar com uma mulher. Apesar de o coração lhe chegar à boca, faltavam-lhe as palavras, e o saber e o jeito eram poucos. Percebia mais de pesca e de vociferar contra o mar revolto que por vezes lhe recusava o que ele queria. 
Lucinda, mais habituada a outro trato, impressionou-se com Pedro mas não da forma que ele esperava. Revoltado com a incompreensão da jovem, Pedro tornou-se cada vez mais brusco, como se com um mar tormentoso lidasse.
Ora Lucinda também era mais do que aparentava ser, e sabia defender-se melhor das investidas de Pedro, bem além que aquilo que ele poderia supor nos seus mais inimagináveis sonhos.
Eram tempos de brumas e magias, e Lucinda tinha aprendido algumas, deixando-o por momentos acercar-se mais próximo de si, e fazendo-o pensar que estava rendida, soprou-lhe baixinho umas palavras que ele não percebeu nem ouviu até ao fim, porque só no dia seguinte, já o sol ia alto e o grupo a horas de caminho, acordou perdido e atordoado e com um enorme vazio no coração.
Não se tinha esquecido dos profundos olhos claros de Lucinda onde se sentira afogar. Nem da sua conduta que agora à luz do dia o envergonhava. Sentia-se como alguém que tinha acabado de destruir atabalhoadamente o tesouro mais importante de toda a sua existência. A oportunidade, a única, de ser feliz. Irremediavelmente.
Não mais falaria Pedro, definhando na sua mágoa que lhe encovava os olhos, a cara e o corpo.
Meses passaram, anos passaram, tornando-se numa sombra do que fora.
A única coisa que crescia era o vazio no peito.
Cada vez mais rígido, apático ao que o rodeava, insensível a tudo, parecia estar a tornar-se numa pedra.


Um dia, inexplicavelmente, apareceu um rochedo no sítio onde ele vivia.
De Pedro nunca mais nada se soube.
Reparava quem o conhecera, num vislumbre do seu rosto no alto da pedra, e no enorme buraco no sítio onde deveria estar o seu coração.
O Penedo Furado na Foz do Arelho, sendo de arenito vai-se desfazendo, como se esboroa a vontade dos homens que se deixam vencer pelas vicissitudes da vida.
Pedro de pedra está lá para quem o quiser ver, até que se desmorone vergado aos ventos da passagem do Tempo, engolido pelo vazio que ele próprio criou.

Hélder

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

O PEDRO MANUEL


Por António Guerreiro
03/10/2014 - 03:23
·                                  
Observemos o nosso primeiro-ministro, para além da contingência do cargo que ocupa e das manigâncias ocultas do seu passado; observemos como ele se revelou desde o primeiro momento, para além dos gestos e dos discursos oficiais e protocolares; observemo-lo como figura ou tipo e chamemos-lhe Pedro Manuel, como se fosse uma personagem literária — um Bloom de Joyce, um Mr. Teste de Valéry, um Franz Biberkopf de Döblin, um Marcovaldo de Calvino. O nosso Pedro Manuel tem traços de todos eles, mas não coincide inteiramente com nenhum. Tem escassas potencialidades romanescas, mas consegue oferecer matéria suficiente para um diagnóstico epocal, na medida em que é o triste produto do tempo do homem-massa e o engendramento catastrófico do fim de todos os encantamentos políticos, ideológicos e sociais. É o homem liso, da platitude inerente às formações de uma sociedade homogénea. Se tem alguma aura, é a aura pornográfica da massa contemporânea. É o homem alienado? Não, é o homem da condição estatística, da indiferença, da impessoalidade. A sua presença é tão espectral que não é possível ver nele senão a presença de uma ausência. E até a sua voz de barítono, mas sem grão, e o tom de recitação com que debita são desprovidos de corpo e de mistério. Enquanto figura ou tipo, isto é, naquilo que tem de comum a tantos outros à sua volta e lhe absorve qualquer pretensão de singularidade, o Pedro Manuel é a encarnação do “último homem” de Nietzsche, sobre o qual se abateu a pobreza inerente a um niilismo completo. É, digamos assim, um homem pós-histórico, que vive como se estivesse desde sempre morto. Pedro Manuel é o nome de um homem anónimo que surgiu não há muito tempo à superfície do planeta, um homem sem substância (o que não é exactamente o mesmo que o “homem sem qualidades”, de Musil, que era ao mesmo tempo um conjunto de qualidades sem homem). É um representante perfeito da pequena burguesia planetária que herdou o mundo e da qual um eminente filósofo disse que ela era a forma sob a qual a humanidade vai ao encontro da sua destruição. Esta pequena burguesia, na realidade, não é uma classe, é apenas uma massa. Enquanto governante ao mais alto nível, é legítimo pedir-lhe contas sobre o seu passado, mas exigir tal coisa ao Pedro Manuel é completamente inadequado: ele não tem mais espessura do que aquela que o confina a um eterno presente. E há-de morrer como alguém que nada aprendeu, em que o “não quero nada, não sei nada e não tenho nada”, muito embora pareça coincidir com um altíssimo conceito de pobreza, de amplitude metafísica, que vem da Idade Média, do Mestre Eckhart, corresponde antes à miséria do Nada que se mascara. É uma fantasmagórica vacuidade que traz consigo uma única mensagem: nada nos pode defender da trivialidade, da proliferação daninha de Pedros Manueis. A condição política de onde eles emergem é destituída de toda a grandeza, incaracterística, triste como a carne e sem sinais luminosos que assinalem o nosso horizonte. O contrário desta condição, o homem que devemos opor ao Pedro Manuel, não é aquele que foi tantas vezes solicitado pelo culto dos heróis e que vem para se erguer acima dos outros, para os guiar. A nova pobreza de que o Pedro Manuel é o nome não deve ser erradicada em nome de nostálgicas grandezas, a única coisa que devemos exigir é não sermos espoliados pelo Nada e determinados pela condição póstuma do último homem, que infelizmente não encarnou apenas no Pedro Manuel. Pedro Manuel é nome de legião e Massamá é o espaço interior do mundo. 


sexta-feira, 3 de outubro de 2014

BARÃO VERMELHO






Para além do nome do lendário herói da aviação alemã da Primeira Guerra Mundial, o nome “Barão Vermelho” ganha uma segunda vida no início da década de 80 pela mão de dois adolescentes entusiasmados (Gutto Goffi e Maurício Barros), após assistirem a um concerto dos “Queen” no estádio do Morumbi em S. Paulo. De facto é a partir desta data que se vai formar uma nova lenda do rock brasileiro e, ao mesmo tempo, nascer uma instituição musical que vai sobreviver até aos nossos dias acompanhada pela admiração e respeito tanto do público como da crítica. Os dois estudantes do Colégio da Imaculada Conceição no Rio de Janeiro juntaram à bateria (Goffi) e aos teclados (Maurício) os elementos que faltavam. Eram eles Dé (no baixo), e Frejat na guitarra. Faltava um vocalista. A procura recaiu inicialmente em Léo Guanabara mas rapidamente o seu timbre foi considerado demasiado suave para os objectivos pretendidos. Léo não se melindrou com isso e deixou até uma sugestão no seu lugar. Tratava-se de Cazuza (Agenor Araújo Neto). Finalmente estava concluída a formação inicial do Barão Vermelho. Ao longo do tempo serão inúmeras as saídas e entradas de novos elementos na formação, excepção feita para Goffi e Frejat que estarão sempre presentes, tornando-se uma espécie de “guardiões do templo”.
O som da banda chega aos produtores Ezequiel Neves e Guto Graça Mello que em quatro dias e através de uma produção muito barata gravam o primeiro álbum, “Barão Vermelho”. Das músicas mais importantes deste trabalho destacam-se “Bilhetinho Azul”, “Ponto Fraco” e “Down em Mim”. Depois de alguns concertos em S. Paulo e no Rio a banda regressa ao estúdio onde com uma produção mais detalhada e com mais tempo acaba por gravar o segundo trabalho “Barão Vermelho 2”.

Apesar de tudo fazer adivinhar o nascimento de uma nova banda poderosa no panorama musical o começo foi um pouco atribulado. As rádios não passavam as músicas do “Barão”. Foi preciso Ney Matogrosso gravar “Pró dia Nascer Feliz” para que se começasse a ouvir no éter a versão original da banda. Por outro lado Caetano Veloso veio também quebrar o gelo ao integrar no seu reportório o tema “Todo amor que houver nessa vida” e ao reconhecer Cazuza como um grande poeta. O destaque e a repercussão da banda vai aumentando ao ponto de serem convidados para compor a banda sono ra do filme BETE BALANÇO de Lael Rodrigues em 1984. Estava ultrapassada a rampa de lançamento para a fama. Ao lançar o seu terceiro disco, “Maior Abandonado” (84), o Barão Vermelho consegue ultrapassar a fasquia das 100 mil cópias vendidas em apenas seis meses. O ano de 84 continua em grande apoteose. O “Barão Vermelho” toca com a Orquestra Sinfónica Brasileira e, no ano seguinte é convidado para abrir o Rock In Rio. A carreira estava finalmente consolidada.


A SOMBRA DE CAZUZA

Compositor, poeta, espírito inquieto, Cazuza era uma das marcas mais profundas no trabalho do “Barão Vermelho”. Embora já tivesse manifestado o seu desejo de sair da banda Cazuza escolhe o final de um concerto para o anunciar ao público. Frejat apoiava a sua actividade individual desde que não abandonasse a banda. Da forma como as coisas se passaram, a forte amizade que os juntava sofre um duro golpe. O efeito Cazuza continuará a fazer-se sentir sobre a banda começando numa ferida profunda até se tornar mais um componente entre muitos que a banda foi conseguindo gerir e aproveitar ao longo dos anos. Frejat assume a função do cantor e em 86 é lançado o quarto disco da banda, “Declare Guerra”, um trabalho que apesar de contar com a colaboração de nomes como Renato Russo ou Arnaldo Antunes, acaba por não alcançar grande êxito. Segue-se “Rock’n Geral” no ano seguinte com contrato assinado com a Warner. Apesar de bem acolhido pela crítica o disco não vende mais que 15 mil cópias. Nesse mesmo ano Maurício abandona também a banda, entrando Fernando Magalhães (guitarra) e o percussionista Peninha.
Agora apenas com três elementos de origem, o “Barão Vermelho” lança em 88 o disco “Carnaval”, onde mistura rock pesado com letras românticas. A faixa “Pense e Dance” , escolhida como banda sonora da novela “Vale Tudo” é a rampa para um êxito absoluto que lhes abrirá as portas para abrir a tour de Rod Stewart. No ano seguinte lançam o seu sétimo trabalho “Barão ao Vivo”, gravado em S. Paulo. No mesmo ano a editora Som Livre lança a colectânea “Os Melhores Momentos de Cazuza e o Barão Vermelho”.
Na entrada dos anos 90 o baixista Dé deixa a banda e dá lugar a Dadi. Maurício regressa aos teclados na qualidade de músico convidado. Em 1990 gravam “Na Calada da Noite” revelando o lado mais acústico do grupo. Nesse álbum está o tema “O Poeta Está Vivo”, uma alusão a Cazuza que viria a morrer meses depois vítima de SIDA.
1990 é ainda o ano em que todos os intervenientes são nomeados para o prémio do melhor em cada categoria e em 91 a banda é escolhida por unanimidade de público e crítica como a melhor do ano. Em 91 e 92 vencem o prémio Sharp para o melhor conjunto de Rock e, ainda em 92, são eleitos a melhor banda do Hollywood Rock. O baixo Dadi é substituído por Rodrigo Santos. Em 2001 após apresentação no Rock In Rio 3 todos decidem fazer uma pausa na carreira do Barão para se dedicarem a  projectos individuais.


AS INTERMITÊNCIAS DO ÊXITO
 Com a entrada do novo século a carreira da banda vive de pausas prolongadas e regressos extraordinários. Em 2004 regressam às origens do puro Rock’n Roll com um álbum homónimo onde vamos encontrar êxitos como “Cuidado”, “A Chave da Porta da Frente”, “Embriaguez” e “Cara a Cara”. No ano seguinte a banda grava o primeiro DVD da carreira no Circo Voador no Rio de Janeiro. “MTV ao Vivo” acaba por conseguir alguns êxitos como a inédita “O Nosso Mundo” embora a grande surpresa vá para a revisão do tema “Codinome Beija-Flor”, em que a banda interage com a voz e a imagem de Cazuza projectada no grande ecrã. Mais um disco de ouro, uma tourné de dois anos e o ultimo espectáculo antes da nova “pausa” vai ter lugar no Rio. Antes disso têm ainda tempo de lançar um livro e um DVD acerca da sua carreira com o histórico show Rock In Rio I.
Em 2012 Frejat e Rodrigo Santos anunciam o segundo regresso da banda. A reunião acontece a propósito da comemoração de 30 anos de carreira e do lançamento do primeiro disco.  Além das comemorações foi também relançado o álbum “Barão Vermelho” gravado em 82 com novas misturas e remasterizado. Segue-se um documentário que conta a história do grupo, um novo espectáculo com a MTV Brasil e uma tournée de seis meses. Depois de tudo isto a banda anunciou estar novamente e recesso sem previsão de regresso.
Com doze discos, seis albuns ao vivo, duas colectâneas e quatro DVD’s o” Barão Vermelho” assina um extraordinário percurso e uma brilhante carreira, um livro onde todas as fantasias e tragédias do Rock tiveram lugar.


Artur

terça-feira, 30 de setembro de 2014

SEPTEMBER SONG

Setembro chega ao fim. Será que, como dizia o poeta, "é o mais cruel de todos os meses " '. Depende da perspectiva, do lugar e da condição dos seus protagonistas. Por exemplo, para o moedas (o famoso coins), o mês de Setembro foi carinhoso, acolhedor, nada cruel: lá conseguiu o almejado lugar de comissário europeu, numa comissão que tem qualquer coisa a ver com ciência e investigação, ou lá o que é. Também não interessa muito. O que importa realmente é que vai gerir uma "pipa de massa", como dizia o barroso. Há, portanto, muito filete para trincar e a Goldman Sachs agradece. Que interesses defenderá o moedas naquele lugar e naquela condição ? Os interesses portugueses não serão certamente, visto que os não defendeu enquanto secretário de estado. Muito pelo contrário; este inimigo do povo e defensor de interesses obscuros limitou-se a obedecer à voz do dono e a implementar as medidas que lhe foram impostas de modo a colocar o país no estado calamitoso em que se encontra. Todo o país ? Não, nem todo.

Para o rosalino, um indivíduo que tinha por missão desmantelar o Estado e promover os interesses de meia dúzia de cães raivosos e tinhosos, o mês de Setembro também não foi cruel. Este inimigo do povo e lacaio sabujo de interesses obscuros já tem o seu lugarzinho como administrador do Banco de Portugal, depois de ter passado o tempo a precaver os funcionários da instituição dos cortes e sacrifícios que impôs aos verdadeiros servidores do Estado, a todos aqueles que verdadeiramente produzem e servem o bem público. Sem remorsos, sem escrúpulos, lá foi empobrecendo uns para que outros pudessem enriquecer. Que lhe faça bom proveito.

Para um tal luís barroso, cherne júnior, também foi um mês bondoso. Aos vinte e poucos anos entrou directamente para um lugar dirigente no Banco do rosalino, ultrapassando homens e mulheres com décadas de experiência e consabida competência técnica, deliberadamente prejudicados para encaixar o jovem, provando que, como diz o ditado, filho de cherne sabe nadar.

Para todos os gajos e tipas da maioria parlamentar do PPD/CDS, que continuam a urrar e a grunhir como se não houvesse amanhã.

Outros houve, porém, para quem o mês de Setembro foi crudelíssimo: a ministra teixeira da cruz, a tal que proclamava o fim da impunidade e que prometia uma reforma estrutural por semana, com voz de noite mal dormida e aspecto de tasca de Alfama. A coisa correu tão bem que resultou na implosão do sistema de justiça. Caos ? Não... apenas transtorno, garante ela com voz de cinzeiro cheio de beatas e copos vazios. Para o ministro crato, um que tem sempre a boca cheia de excelências e rigores, provas e exames. Nem sequer conseguiu realizar uma simples colocação de professores contratados, uma operação baseada numa tabela de cálculo que qualquer aluno de matemática do 11º ano sabe fazer.

E, "last but not the least", para o coelho. Afinal - ficou a saber-se - é apenas humano, coisa que já havia quem suspeitasse. Afinal , aquele que tanto vituperou os subsídios e as subvenções estatais, tudo fez para obter todos aqueles a que leis iníquas lhe deram direito, tudo tendo obrado para empochar uns dinheiros por fora. A vida custa a todos e os grandes moralistas também pagam contas. Afinal, aquele que tanto clamou contra os desperdícios de fundos comunitários, andou a criar empresas e ongues para sacar uns dinheiritos em formações avulsas e outras tramóias. A vida custa a todos e os salvadores, os messias, os grandes reformadores também precisam das suas fériazinhas na praia, do seu carrinho, dos almoços fora ao fim-de-semana, da televisão LCD, enfim, também gostam de viver acima das suas possibilidades.


E terá sido sumamente cruel para as vítimas desta pandilha incompetente e ávida.

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

OS CÃES TÊM CARAS DE PARVOS OU AS AVENTURAS DO JUSTICEIRO BADOCHA

Cumprem-se hoje dez anos sobre o fim do Serviço Militar Obrigatório (SMO). Na altura em que foi decretada a morte desta instituição, com décadas de existência, pensada pela I República como forma de promover a coesão nacional, a  integração e formação dos cidadãos e fundamentar em alicerces sólidos a nascente política de defesa, estava no poder a coligação PPD/CDS e o portas era o Ministro da Defesa. O poder político cedia perante as pressões e exigências dos Hugos e Duartes do PPD e dos Pedros e Adolfos do CDS, jovens próceres que militavam nas respectivas juventudes partidárias, grandes patriotas que se recusavam a jurar bandeira e a malhar com os ossos ao sol e à chuva, exibindo as birrinhas típicas dos bichanos que não queriam sair da "zona de conforto" e das sinecuras que pais e padrinhos lhes prometiam quando, como dizia o Zeca Afonso, "faziam voto perpétuo de irem para a puta que os pariu". Não lhes dava jeito: afastava-os do caminho traçado e brilhantemente descrito por Pacheco Pereira: das escolas de traição, conspiração e mediocridade que são as juventudes partidárias a um lugarzinho na junta de freguesia, desta para uma sinecura na câmara municipal e, numa carreira sempre ascendente, depois dos favores feitos a empreiteiros e construtores civis, a um arreigozinho como deputados, portas abertas para se tornarem mensageiros da voz dos respectivos donos e pontas-de-lança dos interesses privados em detrimento do interesse público. E foi o que se viu. Veja-se o descalabro daquelas duas bancadas parlamentares, eivadas de semi-analfabetos, cevados na manjedoura do poder  e dos interesses obscuros que servem na perfeição, sem vergonha nos bestuntos, autênticos predadores de sinecuras e merdomias (não é gralha). No que diz respeito às Forças Armadas, aqueles que verdadeiramente pensam com justeza e conhecimento as questões da defesa nacional são unânimes em declarar a monstruosidade do erro cometido e em classificá-lo como o primeiro passo para a situação calamitosa e de ruptura em que se encontram, tendo no actual Ministro da Defesa uma espécie de "gestor de falências", encarregue de as desmantelar e reduzir à mais absoluta insignificância. Que lhes faça bom proveito.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

RICHARD ATTENBOROUGH



                                                                     1923  -  2014

terça-feira, 12 de agosto de 2014

ROBIN WILLIAMS

                                                                     1951 - 2014

sábado, 9 de agosto de 2014

NO SOSSEGO DO VERÃO

   Em Agosto a cidade descontrai-se num adormecimento confortável e apaziguador. É possível circular por ruas desertas e respirar como se a solidão nos envolvesse num abraço morno aconchegante. De dia ou de noite sobram os passeios, as árvores e a paisagem urbana em geral despida de pressas, frenesins, obrigações de ir daqui para ali. Tal como na abertura de um filme de Moretti, uma Vespa elegante e pachorrenta percorre as artérias romanas num fim-de-semana de Verão permitindo uma melhor visualização de paisagens e locais. Há tempo para parar, há tempo para observar melhor, encontrar pormenores ocultos, há tempo, enfim. No café do bairro dois ou três solitários partilham o espaço agora enorme entre pires de tremoços e imperiais cansadas que se vão beberricando com o passar das horas. Ninguém espera nem ninguém anseia por coisa nenhuma. Está-se para ali como sempre se deveria estar. Olhar perdido em lado nenhum, uma televisão esquecida sem som, ciclistas a pedalar lá dentro à volta de qualquer coisa. De França, de Portugal, de uma tira interminável de alcatrão. Às vezes campeonatos de atletismo em cidades que ficam longe, muito fora do alcance do calor que se faz sentir aqui. Um caderno aberto com uma frase suspensa, uma sessão vespertina de cinema com mais uma ou duas pessoas, mulheres de meia-idade a atrasar o almoço no café da Avenida de radar ligado em redor procurando candidatos a uma tarde animada. Caderno a vadiar nas mãos com a frase suspensa lá dentro. Os ciclistas na televisão, os saltadores em altura, memórias de um tempo em que o almoço do café da Avenida era uma aventura excitante em perspectiva, um filme de acção animado que nunca se conseguia ver totalmente. Outro tempo a outra velocidade, memórias de calções e cortes de cabelo marados, after shave roubado do armário da casa de banho. A volta á França e um som a tocar, o último disco que não havia cá ainda. Memórias, tempos passados que nos devolvem a credibilidade daquele tempo. Volto para casa em passada lenta, acendo a televisão. De novo os ciclistas, os campeonatos de atletismo, mudo de canal. Jazz numa cidade distante do leste da Europa, sons de embalar por músicos de excepção, improvisos, jam sessions, um som que ainda não havia na minha cabeça, a frase suspensa que me desafia do alto da sua imprevisibilidade. Tranquilidade, silêncio, sou o único habitante daqui desta chafarica, posso fazer o que quiser, até lembrar-me de tempos idos para me certificar que sou real, que apesar de tudo até existo por aqui…às vezes. Posso fazer tudo o que eu quiser mesmo que não me apeteça fazer nada. A minha cidade é longe do mundo, longe de corridas de bicicletas, campeonatos de atletismo e festivais de jazz. A minha cidade não é deste mundo, está apenas ligada a ele através de uma televisão que tanto me dá o tempo de agora como o tempo que já foi há muito tempo. Está apenas ligada por uma frase suspensa que me desafia sem grande convicção porque lá no fundo sabe que a vou agarrar pela cabeça, torcer-lhe a vaidade e pô-la a cuspir o que eu quiser. Porque estamos em Agosto na Grande Cidade e sobram os passeios e as árvores, sobra a lentidão dos meus passos, sobram as memórias, sobro-me eu deitado sobre um pires de tremoços em frente a umas imperiais vagarosas, sobra-me o passado e o presente, sobra-me o mundo que fica a duas galáxias daqui e que por mais que queira não me consegue incomodar. Não há melhor mês para estar em Lisboa do que este de Agosto.


Artur

domingo, 27 de julho de 2014

LEGIÃO URBANA



LEGIÃO URBANA

 Ao analisarmos o trajecto das quatro bandas de referência do B Rock dos anos 80 no Brasil, vamos encontrar à partida uma diferença que separa duas para cada lado. De facto, e trata-se exclusivamente da minha opinião, no que diz respeito à concepção formal das canções encontramos de um lado uma temática generalista, simples e de acesso rápido (Titãs/ Páralamas), enquanto que, por outro lado vamos encontrar um reportório mais intelectual, introspectivo, com temáticas fracturantes (Legião Urbana / Barão Vermelho). Sem que nenhuma esteja acima ou abaixo da seguinte, o que importa é tanto a originalidade de cada banda como o seu método diferenciado de trabalho. Enquanto que a primeira dupla respeitava uma colectivização criativa, a segunda acaba por ser fruto de um líder apenas, ou de uma única personalidade. Renato Russo no caso da Legião Urbana e Cazuza no caso de Barão Vermelho. Confirma esta ideia o facto de ambas as bandas terem acabado com a morte dos seus líderes.

A caminhada da Legião Urbana faz-se através de uma fórmula onde todos os ingredientes se misturaram no momento certo. Brasília, Renato Russo e uma necessidade universal de novos conteúdos culturais combinaram-se num dos mais significantes fenómenos artísticos daquela época que durou entre 1982 e 1996, vendeu 20 milhões de discos e ainda hoje é a terceira banda mais vendida da etiqueta EMI com  cerca de 250 mil cópias por ano. A banda forma-se em 1982 após uma discussão na última banda de Renato Russo, Aborto Eléctrico. Além do já citado Renato (vocalista e baixo), juntam-se Marcelo Bonfá (bateria), Eduardo Paraná (guitarra) e Paulo Paulista (teclas).  A primeira actuação da Legião Urbana tem lugar na cidade mineira de Patos de Minas durante o festival Rock No Parque. Após a apresentação Paulo Paulista e Eduardo Paraná deixam a banda. Depois de um breve passagem de Ico Ouro-Preto, Dado Villa –Lobos assume a guitarra da Legião a partir do início de 1983. Até aquela altura Brasília era uma cidade jovem com nenhuma relevância cultural no país. Tudo isso vai mudar com a chegada desta nova geração que irá inscrever definitivamente o nome da cidade no livro da cultura brasileira.  Se o festival Rock no Parque foi a sua apresentação, a história da banda muda de vez depois da sua actuação no Circo Voador no Rio de Janeiro em Julho de 1983, momento a partir do qual são convidados a gravar uma “demo” para a EMI. No ano seguinte entra o baixista Renato Rocha começando então a gravação do primeiro álbum, “Legião Urbana”. Sob um signo de guitarras distorcidas e influência punk a banda canta temas de crítica a diversos aspectos da sociedade brasileira alternando com canções de amor que se tornam marcos na história da musica brasileira. “Será”, “Ainda é cedo” ou “Por Enquanto” são êxitos imediatos. Assumindo a voz e o estatuto daqueles que cresceram durante a ditadura militar, alcunhados de “Geração Coco-Cola”, um tema com o mesmo título foi outro dos êxitos deste álbum. Bem recebida tanto pelo público como pela crítica a Legião Urbana triunfava na primeira etapa para nunca mais falhar. Se por um lado esta era a revolução musical que milhões estavam á espera, por outro a acutilância e a profundidade das letras afastadas da facilidade e dos “chavões” reforçavam a sua carga original.
Segue-se o segundo álbum, “Dois”, um contraponto à urgência punk do primeiro. Desta vez é um lado lírico e folk que domina os temas. Foi o segundo álbum mais vendido da banda e o mais romântico de todos. Considerado um dos maiores discos de rock brasileiro de sempre, temas como “Tempo Perdido”, “Índios” ou “Quase sem querer” tornaram-se clássicos ainda hoje tocados e ouvidos por gerações que ainda não eram nascidas naquele tempo.
O sucesso alcançado com “Dois” fez a editora pressionar a banda para um terceiro trabalho sem que houvesse material suficiente para isso. Dos nove temas de “Que País É Este 1978/1987” apenas duas foram compostas a seguir a “Dois”. “Que País É Este” data de 78 e “Faroeste Caboclo” de 79, época do Aborto Eléctrico e da fase solitária de Renato antes de compor a Legião Urbana, respectivamente.
As letras de Renato Russo eram essencialmente elementos poderosos que “respiravam” o seu tempo, daí a aceitação imediata e por vezes alucinada de multidões de fãs. Influenciado pela leitura de Camões de vários filósofos e ainda por textos bíblicos e budistas, utilizava essa orientação na forma como lia o seu tempo. As canções, apesar de consideradas sérias ou mesmo muito elaboradas, estavam no entanto muito longe da facilidade panfletária. Falavam da sociedade, da família, da política e do mundo em geral mas também exploravam sentimentos individuais, ou temas tabu como o romantismo idealizado e impossível, a SIDA, a bissexualidade, o suicídio. Eram teclas frágeis que Renato não hesitava em tocar provocando reacções fortes na comunidade.
Tudo era intenso e emocionalmente desgastante em volta dos Legião Urbana ao ponto de as suas digressões serem sempre muito curtas. A reacção ensandecida dos fãs começava a perturbar o grupo. O apogeu desta situação ocorre no regresso a Brasília em 1988. Confusão, pessoas a mais à porta do estádio, carga policial, bombas caseiras, tudo aconteceu naquela noite. Para culminar esta atmosfera um fã alucinado conseguiu alcançar o palco e agarrar-se de forma violenta a Renato. Cinquenta pessoas presas, trezentas feridas e suspensão do espectáculo. Russo diria: Não vim aqui dar show para animais. “ A digressão terminou naquela noite no estádio Mané Garrincha e os Legião Urbana nunca mais voltaram a tocar em Brasília.
Renato afasta-se da banda durante cerca de ano e no regresso produz aquele que os fãs consideram o melhor álbum de sempre: “Quatro Estações”. Dos onze temas, nove batem recordes nas tabelas , nas lojas e nas rádios. É o álbum mais vendido de sempre da Legião com quase dois milhões de cópias. De destacar temas como “Pais e Filhos”, “Meninas e Meninos” e “Monte Castelo”.
Novembro 1991 é a data do quinto trabalho da banda, o “V”. Um álbum marcado pela tristeza e melancolia reflexo de uma fase emocional bastante instável de Renato. A descoberta de que era seropositivo um ano antes, um relacionamento falhado com o seu namorado Hickman, o alcoolismo, tudo concorre para uma atmosfera pesada e escura “Metal Contra as Nuvens” com mais de onze minutos de duração é um dos destaques. “Teatro dos Vampiros” , “O Mundo Anda Tão Complicado” e “Vento no Litoral” são também temas de algum êxito.
A vida da Legião Urbana confunde-se por vezes com a de Renato Russo, os seus trabalhos são fases da vida, estados de espírito de uma existência individual. Renato tinha iniciado o tratamento para se livrar das variadas dependências, para se desintoxicar quando lançam “O Descobrimento do Brasil” em 1993. As letras falam de um recomeço ou pelo menos, da urgência de recomeçar a vida. Só que para haver um futuro é necessário deixar o passado para trás. Daí que as canções variem entre a nostalgia e a esperança, a tristeza e a alegria, encontros e despedidas. Apesar de ter tido um bom percurso comercial as rádios não se mostraram muito receptivas ao trabalho. De assinalar temas como “Giz”, “Vinte e Nove” e “Perfeição”, esta última uma forte crítica à sociedade brasileira em geral. A tournée de “O Descobrimento do Brasil” termina em Janeiro de 95 ,no “Reggae Night” em Santos. Nesse mesmo dia tem lugar o último concerto da banda. O fraco êxito de “O Descobrimento do Brasil” veio apenas despoletar o fim de uma situação de mau ambiente e saturação acumulados ao longo do tempo entre todos. Decidem “dar um tempo” e Renato Russo regressa aos seus projectos a solo. Produz “The Stonewall Celebration Concert” e “Equilíbrio Distante”
 No mesmo ano e no lendário estúdio de Abbey Road em Londres todos os discos de estúdio da banda são remastirizados e lançados num título único : “Por Enquanto 1984 – 1995” .  A banda volta a encontrar-se em 1996 para produzir “A Tempestade ou o Livro dos Dias”, o último trabalho dos Legião Urbana com Renato Russo vivo. Um trabalho profundo e extremamente elaborado que combina o rock clássico (“Natália” / “Dezasseis”) com o romantismo lírico ( “L’Aventura” / “A Via Láctea” / “Leila” / “Primeiro de Julho”  e “O Livro dos Dias”). São canções que abordam temas como o amor e a solidão, depressão, intolerância e injustiça. É um disco melodramático e triste. Renato apressou ao máximo a conclusão dos trabalhos consciente de que lhe restava pouco tempo. Na canção “Música Ambiente” lê-se : “ e quando eu me for embora, não, não chore por mim” .
O fim oficial da banda ocorreu em 11 de Outubro de 1996, onze dias depois da morte de Renato Russo. Em 1997 saiu “Uma Outra Estação”, restos do projecto original de “A Tempestade…” inicialmente concebido para ser um álbum duplo. Aí há lugar para canções que ficaram de fora na primeira gravação como “Sagrado Coração” e “Clarisse”, esta última em torno do suicídio.
Renato Russo e os Legião Urbana foram um fenómeno do seu tempo, retratando, criticando e vivendo os seus dias e comungando essa vivência com a sua geração. Pelo caminho deixaram momentos únicos, eternos de música de grande qualidade. Os seus trabalhos ficaram para sempre na memória e na descoberta de várias gerações. Por isso lhes estaremos eternamente agradecidos.

       Legio Omnia Vincit



Artur Guilherme Carvalho