Por António Guerreiro
03/10/2014 - 03:23
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Observemos o nosso
primeiro-ministro, para além da contingência do cargo que ocupa e das
manigâncias ocultas do seu passado; observemos como ele se revelou desde o
primeiro momento, para além dos gestos e dos discursos oficiais e protocolares;
observemo-lo como figura ou tipo e chamemos-lhe Pedro Manuel, como se fosse uma
personagem literária — um Bloom de Joyce, um Mr. Teste de Valéry, um Franz
Biberkopf de Döblin, um Marcovaldo de Calvino. O nosso Pedro Manuel tem traços
de todos eles, mas não coincide inteiramente com nenhum. Tem escassas
potencialidades romanescas, mas consegue oferecer matéria suficiente para um
diagnóstico epocal, na medida em que é o triste produto do tempo do homem-massa
e o engendramento catastrófico do fim de todos os encantamentos políticos,
ideológicos e sociais. É o homem liso, da platitude inerente às formações de
uma sociedade homogénea. Se tem alguma aura, é a aura pornográfica da massa
contemporânea. É o homem alienado? Não, é o homem da condição estatística, da
indiferença, da impessoalidade. A sua presença é tão espectral que não é
possível ver nele senão a presença de uma ausência. E até a sua voz de
barítono, mas sem grão, e o tom de recitação com que debita são desprovidos de
corpo e de mistério. Enquanto figura ou tipo, isto é, naquilo que tem de comum
a tantos outros à sua volta e lhe absorve qualquer pretensão de singularidade,
o Pedro Manuel é a encarnação do “último homem” de Nietzsche, sobre o qual se
abateu a pobreza inerente a um niilismo completo. É, digamos assim, um homem
pós-histórico, que vive como se estivesse desde sempre morto. Pedro Manuel é o
nome de um homem anónimo que surgiu não há muito tempo à superfície do planeta,
um homem sem substância (o que não é exactamente o mesmo que o “homem sem
qualidades”, de Musil, que era ao mesmo tempo um conjunto de qualidades sem
homem). É um representante perfeito da pequena burguesia planetária que herdou
o mundo e da qual um eminente filósofo disse que ela era a forma sob a qual a
humanidade vai ao encontro da sua destruição. Esta pequena burguesia, na
realidade, não é uma classe, é apenas uma massa. Enquanto governante ao mais
alto nível, é legítimo pedir-lhe contas sobre o seu passado, mas exigir tal coisa
ao Pedro Manuel é completamente inadequado: ele não tem mais espessura do que
aquela que o confina a um eterno presente. E há-de morrer como alguém que nada
aprendeu, em que o “não quero nada, não sei nada e não tenho nada”, muito
embora pareça coincidir com um altíssimo conceito de pobreza, de amplitude
metafísica, que vem da Idade Média, do Mestre Eckhart, corresponde antes à
miséria do Nada que se mascara. É uma fantasmagórica vacuidade que traz consigo
uma única mensagem: nada nos pode defender da trivialidade, da proliferação
daninha de Pedros Manueis. A condição política de onde eles emergem é
destituída de toda a grandeza, incaracterística, triste como a carne e sem
sinais luminosos que assinalem o nosso horizonte. O contrário desta condição, o
homem que devemos opor ao Pedro Manuel, não é aquele que foi tantas vezes
solicitado pelo culto dos heróis e que vem para se erguer acima dos outros,
para os guiar. A nova pobreza de que o Pedro Manuel é o nome não deve ser
erradicada em nome de nostálgicas grandezas, a única coisa que devemos exigir é
não sermos espoliados pelo Nada e determinados pela condição póstuma do último
homem, que infelizmente não encarnou apenas no Pedro Manuel. Pedro Manuel é
nome de legião e Massamá é o espaço interior do mundo.
1 comentário:
Pedro de pedra.
Oco.
Vazio.
Esboroando-se no seu próprio destino, por si criado.
Um buraco.
Negro.
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