sábado, 30 de março de 2013

LOST IN TRANSLATION

Chin Ku Ji Da, meu ganda sacana, acabei de saber que foste tu quem hoje de manhã me assaltou a marmita e me roubou os pastéis de bacalhau que a minha mãezinha tinha feito para o meu almoço. Foste denunciado pela tua falta de negligência quando te atiravas descaradamente à rapariga da meteorologia ao exibir pedaços de salsa nos dentes, restos de comida e vestígios de lixo em geral. Chin Ku Ji Da, estou-te a avisar que quando saír daqui vais-te arrepender seu filha da puta, porque quando te apanhar não só te farei as orelhas em bico como te arranco o fígado para fazer iscas, penduro-te as orelhas em anzóis, seco-as e dou-as a uma fábrica de alguidares. E se mesmo assim a minha vingança não estiver devida e apropriadamente satisfeita vou cagar em cima de um jornal, vou deixá-lo à tua porta e pego-lhe fogo. Assim, quando abrires e começares a apagar com os pés, vais-te encher de merda que era aquilo que te deviam ter feito à nascença. Comigo ninguém brinca Chin Ku Ji Da.

sexta-feira, 22 de março de 2013

OSCAR LOPES

                                                                      1917 - 2013

quinta-feira, 21 de março de 2013

DIAS DE LIBERDADE, TABERNA E MATANÇA



Por viver longe dos avós e restante família materna, uma vez por mês ou por vezes a intervalos maiores, Fernando deslocava-se com os pais e a irmã quatro anos mais nova à terra onde eles viviam, uma pequena aldeia poucos quilómetros a norte de Caldas da Rainha. Tudo era atractivamente diferente do sítio onde morava.

O trajecto demorava quase três horas de pequenas quezílias e moderadas guerrilhas com a irmã pela conquista fronteiriça e manutenção de território no banco de trás do carro, atazanando a paciência dos pais num crescendo até ao limite de uma intervenção mais ou menos sentida na pele. Depois era o forçado restabelecimento de um débil tratado de paz que durava poucas dezenas de quilómetros, num belicoso conflito local que acabava por durar até ao destino.

Sem paragens, esse tempo de viagem era o suficiente para o levar até aos avós e primos que adorava, avançando estoicamente o Ford Escort branco pelos últimos quatro quilómetros numa estrada de terra, buracos e pedras, por entre pinhais, para uma terra onde ter-se luz à noite obrigava a um ritual exótico que envolvia sempre alguma forma de fogo.

À chegada tinha o avô Evaristo atrás do balcão da taberna e a avó Angelina de volta dos tachos com um guisado pronto para o almoço. De ar austero, desfaziam a máscara pela alegria de matarem saudades dos recém-chegados. A avó logo retomava o semblante carregado que Fernando procurava desfazer, normalmente com sucesso.

O avô a atender o povo da aldeia, atrás do balcão onde a uma ponta estava uma torre de quatro frascos de vidro cheios de rebuçados para serem vendidos ao peso ou a avulso. Era amistoso com toda a gente mas sempre pronto a pôr na ordem quem se esticava na conversa ou nos actos, mantendo uma aura de respeito que ninguém se atrevia a pôr em causa. Era um estabelecimento misto de taberna com prateleiras recheadas de copos e copinhos de vidro grosso, mercearia e casa de adubos e produtos químicos, com as paredes exteriores caiadas a ocre e as portas e janelas contornadas por listas azuis escuras, num edifício comprido com zonas diferenciadas, unidas por passagens interiores de comunicação. Começava pela casa da Legião, que era uma sala de reuniões, depois a retrete que consistia numa simples latrina com um buraco no chão e um poço com um balde, convenientemente localizado do lado de fora num pequeno pátio de terra onde estava também o Tarzan, um imponente cão de longo pelo ruivo, arraçado de setter irlandês mas em versão gigante, suficientemente forte para aguentar no dorso Fernando e a prima Isabel. A seguir uma zona de armazenamento para produtos secos, outro pátio com pequenas árvores, a cozinha e sala de refeições e um escritório, um quarto e a única cabine telefónica em quilómetros para uso da população. Entrando pela porta que estava ao lado da cabine telefónica e descendo três degraus estava-se no lagar que tinha uma grande janela com portadas de madeira que dava para a rua, o depósito dos químicos nas traseiras e a seguir num patamar poucos degraus abaixo acompanhando o declive da rua, um amplo armazém de vinhos com grandes tonéis em cimento e enormes cascos de madeira escurecida pelos anos e barris de diferentes tamanhos mais pequenos. No armazém havia ainda uma outra divisão: um laboratório vinícola dentro de uma estrutura com porta e paredes de ripas de madeira dividindo centenas de vidros aos quadrados que permitiam ver todos os tubos de ensaio e toda uma parafernália de utensílios próprios de um laboratório científico, e estantes com grandes livros de anotações. Apesar de todas estas coisas estarem neste espaço enorme que podia ainda servir para guardar várias camionetes, estava vazio para gáudio dos pequenos índios, numa tribo engrossada pelos restantes primos e amigos deles, todos de idades aproximadas, numa animada agitação de jogos de escondidas e apanhada. O armazém ainda tinha outras zonas com diferentes patamares em cimento armado e um declive para facilitar o carregamento de pipas de vinho, emprestando assim o cenário ideal para coboiadas.

Nos intervalos, Evaristo retemperava a energia aos netos com um copinho pequeno de jeropiga e um pratinho de bolachas torradas colocados em cima da mesa com uma cobertura de plástico grosso pregado com tachas, em xadrez branco, cinzento e preto, à qual se sentavam em bancos de pau corridos.

Em frente à taberna do outro lado da rua morava uma personagem caricata: Gertrudes Careca, uma viúva de pele muito branca e sempre vestida de preto até aos pés, de chapéu de palha de abas largas preso por debaixo do queixo proeminente por duas fitas pretas atadas que a ajudavam a fixar uma peruca pastosa de cabelo ruivo. Apesar da sua simpatia, a imagem inspirava algum temor à canalha que insistia a vê-la como uma praticante de magia negra.

Os primos sempre que sabiam que ele chegaria estavam invariavelmente à sua espera. João, quatro anos mais velho e Isabel, cinco dias mais nova eram os que moravam mais próximo da taberna, com quem Fernando passava mais tempo e por isso também os mais chegados. Era com eles que descobria um outro tipo de vida próprio das pequenas aldeias. Jogatanas de bola na rua organizadas pelo primo, numa altura que quase não havia trânsito de espécie nenhuma a não ser bicicletas e umas quantas motorizadas Kreidler Florett, uma delas do avô.

Por vezes, quando o avô precisava de ir ás fazendas ver o andamento dos trabalhos levava Fernando e Isabel sentados em cima do depósito da mota, noutra experiência electrizante da viagem quanto mais não fosse pela vibração sentida pelas mãos apoiadas no depósito de combustível. Talvez pela dormência das mãos, talvez por pura velhaquice, um dia achou Fernando por bem encher os olhos e a boca de Isabel daquela poeirenta terra preta. O avô que estava por perto, ouviu bem a reclamação da miúda e deu o único safanão que alguma vez daria a Fernando, de certeza doendo-lhe mais a ele que ao meliante.

À noite no Verão, era o cantar ininterrupto dos grilos e a luz de dezenas de pirilampos que ajudavam a alumiar o caminho cem metros abaixo até à casa dos avós, com candeias nas mãos, ás vezes um petromax, debaixo do céu mais estrelado do mundo. Na Lua gigante conseguiam-se ver os detritos deixados pelas missões dos astronautas pouco tempo antes.

Em casa dominava o cheiro dos fósforos acabados de acender e da cera queimada das velas. Fernando utilizava um pequeno candeeiro a petróleo e todo aquele ritual mexia com a imaginação. Durante os dias ali passados, gostava ainda da inequívoca ordem de soltura que o libertava de asas soltas numa autonomia para brincar, jogar à bola, ir visitar os tios a trabalhar nos terrenos agrícolas e voltar dentro dos cestos dos burros, completamente suado e sujo de pó preto da terra areenta, ficando fascinado à noite quando se lavava antes de ir para a cama, com o grau de negridão e consistência de porcaria conseguido na água - quanto mais negra estivesse, melhor tinha atingido o objectivo, algo a repetir e eventualmente suplantar no dia seguinte. Depois de um copo de leite morno, afundava-se no duro colchão de palha de milho e tapava-se com ásperos cobertores de papa, picando-o ao perpassarem a finura dos lençóis. Nada disso importava, e estranhamente até lhe era agradável lembrando-o do conforto que tinha na casa dele, no contentamento que era para ele poder estar com os primos.

As casas dos tios separadas entre si por centenas de metros, e unidas por muito definidos e estreitos carreiros de terra firmemente batida de tão calcorreada contornando os terrenos agrícolas, eram atravessados por intermináveis filas de formigas e alguns escaravelhos.

O Outono era época de matança do porco, em que os tios à vez tratavam da festança. Eram fins-de-semana em que todo o clã de mais de cinquenta se reunia logo ao sábado de manhã, para espetar a faca na goela do bicho. Apesar de ser criança, não se impressionava Fernando com os guinchos do porco que ecoavam por aqueles campos fora. Muito menos o impressionava a torrente vermelha que escorria para um alguidar já com umas boas mãos cheias de sal e que alguma mulher se encarregava de misturar com o sangue ali caído. Depois era a chamuscagem do pelo com caruma num cheiro que se impregnava na roupa como uma tatuagem de grupo. Pendurava-se o porco, abria-se, tiravam-se as tripas e aquilo que os gaiatos mais esperavam: a bexiga. Depois de esvaziada, era cheia com uma bomba de ar e lá ia a matilha toda para a eira jogar à bola, como se aquela fosse a ideal para os encontros futebolísticos oficiais. Para desapontamento deles, o esférico rolando no cimento ou terra batida da eira nunca durava muito.

O resto desse dia era gasto com parte das mulheres a irem lavar as tripas ao riacho para depois se fazerem os enchidos, enquanto as outras tratavam de fazer o almoço e pôr a mesa num festim que duraria até à noite de domingo, enquanto os homens esquartejavam a carcaça e os mais velhos jogavam à sueca em intermináveis discussões regadas a tinto.

Ficava Fernando confundido pela constante alegria dos primos. Apesar de não terem electricidade, televisão, ou outros confortos que ele tinha, vivendo em casas de adobo com chão de terra batida, levavam-no a questionar se a verdadeira felicidade era a deles – a tribo do vento.

Quando voltava a casa mal podia esperar pelo regresso ao sítio onde era tudo mais a preto e branco, sem grande margem para degradés de cinzento.

Hélder

quinta-feira, 14 de março de 2013

ANOS 70 - UMA PASSAGEM PARA OUTRO UNIVERSO



O conceito de morte é de difícil compreensão para uma criança com 4 ou 5 anos. Percebe a ideia da ausência. Mas não a possibilidade de uma pessoa que lhe é querida e num momento está ali próxima, sem qualquer aviso, explicação ou despedida desaparecer para um sítio qualquer de onde não voltará mais.

Outra coisa perturbadora nessa idade, é ser literalmente o imperador do universo e de repente ter uma concorrente recém-chegada, que não fala, só chora, come e dorme, exige atenção constante a quem antes era um exclusivo seu e mesmo assim, tão frágil e indefesa, com a absoluta capacidade de lhe roubar o protagonismo, numa evidente e inevitável despromoção a actor secundário, quase a figurante.

Como se a confluência destes dois acontecimentos de morte e nascimento não bastassem para agitar e estilhaçar o seu universo perfeito, vê-se numa onda imparável de novidade a mudar de casa, de ambiente, deixando o conhecido e os portos de abrigo, transportado para outra estranha dimensão paralela.

Nandinho, o "menino da cidade” em poucos meses, tinha perdido um dos melhores e mais chegados amigos, tinha ganho uma irmã concorrente de afectos e atenção, e mudado de casa, dos arredores da capital para uma pequena vila de província vinte quilómetros a norte de Coimbra.

O pai tinha sido promovido profissionalmente, o que implicava a mudança de casa. Essa alteração fazia com que a sua mãe deixasse a sua profissão e os amigos do Cacém, para ficar definitivamente em casa a cuidar dele e da mana bébé.

Aquela convulsão radical na vida dele, também lhe trazia mesmo assim alguns interesses e novidades. A descoberta de uma casa muito maior do que aquela onde ele antes vivia, bastante comprida e com divisões com nomes estranhos nunca ouvidos, como “sótão” ou “barracão”. No sótão o pai tinha colocado um baloiço com acento de madeira, preso por cordas a um grosso tronco de eucalipto que servia de viga e estava assente nas empenas de pedra à vista sustentando o telhado. No barracão, um anexo da casa, havia uma capoeira que lhe proporcionava o primeiro contacto com animais de quinta, as galinhas e os coelhos. Haveria lugar também à adopção de duas gatas irmãs, a arisca Tigre e a carente Rosinha.

A paisagem era diferente. A frente da casa dava para uma rua de paralelepípedos negros bastante movimentada por pessoas a pé, muitas bicicletas, mais motorizadas, carros e camionetes e ás vezes intermináveis rebanhos de cabras e ovelhas. Nas traseiras a vista era para a serra do Buçaco e muito mais longe para a do Caramulo. Ali à volta eram vinhas, campos cultivados e pinhais da zona da Bairrada.

Também as pessoas eram diferentes das que conhecera até aí. Mais duras e secas, dedicadas à agricultura, à frente de burros, vacas e juntas de bois. Uma família de anões vendia leite porta-a-porta na sua carroça puxada por um cavalo castanho de longas crinas numa imagem matinal quase mística.

Teria nos meses anteriores à entrada para a escola primária uma experiência equivalente a uma pequena recruta digna das tropas especiais ao ir para a Casa da Criança, a creche da vila que lhe mostraria definitivamente que ele não era imperador, rei, príncipe ou privilegiado de coisa nenhuma. Lá brincava com miúdos bons, assim-assim e cruéis, que nas mudanças de humores trocavam de personalidades entre si e neles próprios, testando a sua capacidade de sobrevivência em distribuições de estalos e pontapés, complementados pelas cuidadoras que zelosas da ordem infantil, passavam a mão a eito por quem estava ao alcance. A saída à tarde era sempre na companhia de um quarto de pão de alqueire, recheada por grossas fatias de marmelada.

O ponto alto desta experiência conforme a perspectiva que se possa ter, foi a ida para uma colónia balnear infantil no início do Verão, na praia da Barra, onde os escaldões apanhados durante o dia eram refrescados num banho colectivo ao início da noite em que a miudagem nua, na penumbra de poucas fracas lâmpadas e ao ritmo da marcha dos condenados, avançava em fila indiana para duas grandes tinas de alumínio cheias de água e sabão azul. Seria resgatado pelos pais ao terceiro dia não conforme as escrituras, mas por causa da preocupação deles. Nandinho já não existia, era agora Fernando, de recruta feita.

O Zé Malha era um rapaz com 12 ou 13 anos de cabelo espetado, nariz adunco, olhos desfocados perdidos no infinito e boca de balbuciantes lábios finos, normalmente a deixar escorrer um fio de baba. Quando apanhava os miúdos mais pequenos na rua e sem qualquer motivo que não fosse a sua condição mental, parava o vertiginoso rodopio auto-inebriante, de cabeça levantada ao céu e braços erguidos no ar acompanhados por uma incompreensível lengalenga cantada, para lhes aplicar uma portagem de pancadaria. Satisfeito apenas quando ouvia choro, continuava a sua lunática dança pelo meio da rua obrigando à paragem de todos os veículos que com ele se cruzassem. Fernando aprenderia a passar por ele com um salvo-conduto conseguido pela forçada coragem de lhe falar cumprimentando-o, o que confundia o outro pela novidade a que não estava habituado, e com a ajuda da mãe que apanhando o Zé Malha a passar à porta de casa, lhe faria prometer que não tocaria no seu filho. O rapaz cumpriria o prometido. Em compensação brincava com o filho no barracão onde tinha alguns brinquedos à disposição, numa aprendizagem mútua que acabaria por ser muito mais aproveitada por Fernando, ensaiando capacidades diplomáticas com um interlocutor difícil, imprevisível e instável. O outro tinha assim um pouco de paz, enquanto a agitação mental não voltasse e sem aviso desatasse a correr para a rua como se a loucura não pudesse esperar. O resto das pessoas estranhavam e comentavam à boca pequena, como é que alguém se atrevia a pôr um reconhecido diabrete, incontrolável inimigo público, em casa e a brincar com o filho pequeno. Tornar-se-ia esta para Fernando uma primeira lição forçada, inteligentemente engendrada pela mãe, de respeito, tolerância e coexistência.

Uma tarde ouvir-se-iam gritos animalescamente guturais vindos da rua. Era a progenitora do Zé Malha um pouco adiante, com os pés em cima do pescoço dele numa insana tentativa de estrangulamento público, acorrendo algumas pessoas que o salvariam naquele momento. Apareceria algum tempo depois morto dentro de um poço em circunstâncias nunca esclarecidas. Placidamente se assumiu o suicídio.

Julgando já compreender a morte, queria acreditar Fernando que o Zé Malha agora estaria melhor. Bem vestido, lavado, sem fome, sem frio e confortável num abraço de carinho que lhe daria a paz nunca conseguida deste lado.

O Inverno de 1970 tinha sido tão frio que pela primeira vez veria neve lá ao longe na serra do Caramulo coberta pela alvura. Tudo aquilo era sem dúvida nenhuma uma mudança tão profunda, que lhe tinha aberto aos cinco anos a página para o segundo capítulo da sua vida que duraria toda a década de 70.

Hélder

segunda-feira, 11 de março de 2013

PASSAGEM PELA BEIRA BAIXA



Perdida nas serras da Beira Baixa entre a Sertã, Proença-a-Nova e Cardigos, a aldeia que se avista no vale lá em baixo desde o Cabeço da Porca, entre pinhais e riachos, foi testemunha de um amor rebelde que vingaria contra todos os obstáculos, numa afronta desafiadora aos costumes e tradições de uma comunidade fechada e parada no tempo.

Estava-se no final dos anos 20 e em quase todos os cumes das serras em redor, verdes de tanto pinheiro bravo, sobressaiam pequenos marcos brancos, cujas velas prenhes de vento acenavam ostensivamente o poder daquela família que monopolizara anos antes, no início do século XX, a moagem de todos os cereais produzidos na região. O ranger das rodas de madeira das azenhas misturado com o som da água corrente da Isna, uma ribeira que ao longo de muitos quilómetros rasga o leito rochoso, em sucessivas cascatas e curvas hesitantes para desaguar no Zêzere, também não tinha escapado ao poder crescente do Silva “Moleiro”.

Valorizava-se o trabalho e o respeito pelo respectivo lugar na hierarquia social, até quando toda a comunidade profundamente católica se reunia aos domingos na pequena igreja, aí entrando com a segunda chamada sineira ecoada por montes e vales, distribuindo-se nos lugares conforme o seu estatuto. Separados pelo corredor central, homens de um lado, mulheres e raparigas do outro. Os mais remediados à frente, os menos a seguir, vestidos com a melhor roupa depois de seis dias de trabalho nas terras e nos pinhais, lavados da poeira e suor semanal. Cristo pregado na cruz lá no altar. Nos dois corredores laterais havia cadeiras com placas identificadoras dos donos em madeira trabalhada, com os apoios para a genuflexão forrados a veludo vermelho, propriedade dos mais abastados que assim tinham um lugar cativo mais junto ao Senhor. A miudagem e a rapaziada cá atrás de pé, mais a jeito para se pôr porta fora no adro logo que a cerimónia dominical findasse. Em toda a comunidade haviam apenas um ou dois proscritos que no torpor da sua bebedeira constante, achavam que ficar cá fora era mais compensador, quanto mais não fosse para curar a dor de cabeça e mau estar geral que voltariam irremediavelmente a procurar lá mais para a tarde, alienando-se daquela realidade enquanto tivessem alguns tostões que não os obrigasse a agarrar numa enxada.

As ruas com tapetes de carqueja, cíclica e zelosamente renovados pelos moradores minimizavam o pó no Verão e a lama no Inverno.No entanto o largo da igreja, por ser um local de convívio todas as tardes de domingo, era mantido com uma impecável superfície de terra batida. De que outro modo poderia ser senão deste, para as gerações masculinas se juntarem e passarem longas horas a jogar chinquilho? A assistência era composta pelos mais novos que admiravam a pontaria e aprendiam a técnica, e pelos mais velhos que agarrados aos seus queijados e sentados nos muros de xisto, maldiziam os falhanços dos jogadores, cujo arremesso da malha volta e meia teimava em não tocar na estaca de madeira, na recalcada frustração dos seus próprios movimentos tolhidos pelo tempo que já só lhes dava liberdade suficiente para se arrastarem até ao muro de pedra onde descansavam os ossos e libertavam a língua.

Sebastião, rapaz de cabelo e olhos claros, nascido de família modesta, de pai carpinteiro que se dedicava ao cultivo, à apicultura e ao pastoreio de cabras, fascinara-se pela morgada da região, a filha mais velha da abastada família do Silva “Moleiro”, dona de todos os moinhos e azenhas. Sentia que era recíproco pela troca de olhares que todos os rapazes iam ensaiando com as moças casadoiras que em grupos iam passando pelo adro da igreja, interrompendo a tempos o arremesso das bolachas de metal. As suas origens modestas e a sua humildade pouco mais lhe permitia do que observar e esperar, mas poucas dúvidas lhe restavam que aquela morena alta e elegante tinha reparado nele mais do que uma vez.

Ficou a incerteza dissipada quando um dia enchendo-se de coragem lhe foi falar e se tomou pela avassaladora incredulidade por uma das raparigas mais cobiçadas da região admitir que gostava de si. Tê-lo ela escolhido para um improvável namoro que ia contra o preconceito social da comunidade, e muito mais da família dela que jamais aceitaria que a sua herdeira desperdiçasse a mão num remediado, em vez dum futuro promissor e investidor de estatuto social ao lado de um doutor ou engenheiro, abria um precipício vertiginoso ao qual era impossível escapar.

Entretanto e interrompendo os encontros escondidos, iria Sebastião para a tropa onde aprofundaria e aperfeiçoaria os conhecimentos e habilidade para a carpintaria, cuja arte já tinha aprendido desde bem cedo com o pai.
No sonho de ficarem juntos, e pela recusa petrificada de tudo e todos aceitarem a sua união de puro amor, quando Sebastião terminou o serviço militar, Maria do Carmo num irreprimível impulso fugiu de casa e da família e foi para Lisboa ter com ele. Em resultado do escândalo por alguém assumir frontalmente o seu amor contra tudo e contra todos, numa época em que isso era completamente intolerável, seria o casal censurado, proclamado vergonha da comunidade, devendo ser por isso banido e esquecido.

Teriam de começar do rascunho na grande cidade, apoiando-se apenas um no outro e no grande amor que os unia, ganhando batalhas e algum tempo depois em 1936, um filho. Valer-lhes-ia também um engenheiro com ligações à vida militar e dono de uma empresa de construção, que reconhecendo a qualidade do trabalho feito na tropa por Sebastião, lhe ofereceria trabalho garantindo assim um meio de sustento ao jovem casal. Um dos lemas preferidos e repetidos dele era: “O trabalho tudo vence!” Assim iniciaria uma fase de prosperidade constante que lhes permitiria a estabilidade económica.

No final de 1940 seriam de novo pais. Quis o destino que esta segunda gravidez de Maria do Carmo fosse de gémeos, acabando por sobreviver passados dois anos apenas um deles. No meio do desgosto desta perda, voltariam à terra que os tinha escorraçado quando ao cabo de uma década fora e com dinheiro, já não dependeriam de ninguém para aí terem uma vida razoável.

A passagem dos anos tudo amenizara e a família e conhecidos, acabaram por os receber bem de volta, assim como ás notas com que Sebastião pagava a construção de uma grande casa num dos melhores terrenos da aldeia e comprava outros ali à volta, tornando-se assim um dos maiores proprietários, agora considerado como respeitado homem de bem.

Dividia a sua vida entre a aldeia e os sítios para onde o trabalho o mandava, deslocando-se por longas temporadas para obras em Lisboa. Fariam parte da sua lista a ponte pedonal em arco sobre o rio Trancão em Sacavém, a construção da fábrica de celulose do Caima vivendo com a família toda em Albergaria-a-Velha por doze anos, a barragem de Belver, um depósito de água em Málaga, pontes na mata de Leiria. Destas e de outras obras, aquela que provavelmente marcaria a sua vida numa façanha épica, seria também a de mais curta duração - a arrojada e heróica construção do farol nas inóspitas ilhas Formigas nos Açores, em pleno Oceano Atlântico, a meio caminho entre São Miguel e Santa Maria, no recife de Dollabarat, erigindo no Verão de 1948 e apenas em 36 dias, mesmo com algumas paragens por causa do mau tempo, um farol de 19 metros de altura, concluindo-se assim um projecto que já datava de 1883.



Assentariam no final da década de 60, Sebastião e Maria do Carmo ainda com saúde e muitos anos de vida pela frente, na aldeia que muitos anos antes os havia repudiado, dedicando-se definitivamente à agricultura por puro prazer, em afazeres diários nos pinhais a roçar mato e a recolher resina, nos pomares de macieiras, pereiras, pessegueiros, em regas diárias nos terrenos de cultivo entre figueiras, laranjeiras e tangerineiras, nas colmeias recolhendo os favos de mel aproveitando a cera para velas, tratando das galinhas, dos porcos, das cabras e do burro, num equilíbrio cúmplice que duraria quase até aos 90 anos, atravessando ele um pouco atrás dela a derradeira ponte para o outro lado, compensando-a assim pela ousadia a que ela se tinha atrevido quase 70 anos antes.


Hélder

sexta-feira, 8 de março de 2013

UM GIN AO FIM DA TARDE


É tarde, é tão tarde e ainda não viste nada, ainda quase nada se passou, sofrimento e alegria, marcos do caminho que percebes não percebendo, do amor que sentes não sentindo, forte e feio pelo destino acima. É tarde, é tão tarde para perceber que tudo sabe a pouco quando se quer tentar perceber o que raio significa tudo isto, estar aqui, porquê, de uma maneira que faça sentido, de uma maneira parecida com harmonias, de qualquer maneira passível de entrar por uma das portas do entendimento. É tão tarde e no entanto é tão alegre a imagem do crepúsculo, o adeus do Sol, o entendimento do fim. O fim, no fundo, a única razão, o único sentido, o remate lógico do absurdo que foi todo este caminho, o sentido perdido, a razão nunca encontrada. Nada, e como esta palavra reconfortante, corpo desejado de mulher inalcançável, como esta mulher ou esta palavra nos tranquilizam quando pronunciadas. Sentarmo-nos sobre o Nada e contemplar ao fim da tarde sobre um mar preguiçoso, um dia que se despede. Um gin tónico na mão, uma caneta na outra e as palavras que se vão desenhando sozinhas sobre o eterno caderno que nunca nos larga como se de uma identificação permanente estivéssemos a falar. As palavras que se desenham e dançam entre si um bailado que só elas conhecem, feito de pensamentos e desejos, remorsos e amores, os autores, os devedores, aqueles a quem ficou a faltar um cumprimento, uma vingança, um agradecimento. Fodam-se todos ao pôr-do Sol do dia em que me virem partir. Finjam as lágrimas ou sejam indiferentes como indiferente a vocês é este dia que acaba em paz sobre o mar.

Chegámos aqui sem saber nada e nada sabemos no dia em que formos embora. Uma viagem estranha, demasiado estranha para não ter sentido nenhum, uma viagem ao cu da ambiguidade eivado de penas e sofrimento, injustiças e dores. Algumas alegrias sem dúvida, mas apenas na dose suficiente para suportar as outras, para não rebentar mais cedo. E as tuas mãos que me embalam numa doce tranquilidade, as tuas mãos que me acariciam, as tuas mãos que seguram as minhas que tremem sem terem vontade de parar. As tuas mãos que mudaram de dona com a idade mas que sempre lá estiveram para me amparar, para me dar o que eu precisava ao longo do tempo.

É tão tarde e no entanto havia tanto para conhecer, tanto para saber, tanto para viver, havia uma vida completa e extensa por caminhar, uma série de paragens no caminho, havia uma vida que nunca abria as portas na hora de bater e preferia abrir as pernas a quem melhor pudesse exibir as cores do poder. Fodam-se todos de uma vez, tiranos e tiranetes, vítimas da conveniência, filhos e filhas do medo que nunca arriscaram, que nada souberam arriscar por recear partir mais cedo do que a hora em que deveriam acabar. A vida é um pôr-do-Sol que se expande num fim da tarde sobre o mar, é um riso desdentado de uma gargalhada com fraldas, um gemido sentido de uma mulher rendida ao limite do seu prazer, um abraço entre amigos, uma pedra contra um vidro, uma bebedeira sem sentido, um choro em coro pela morte de alguém, a vida é sempre a vida desde que não se escolha ser ninguém.

É tarde, tão tarde que nunca saberemos quantas cores têm os dias nem quantos paus fazem a jangada em que a atravessamos, mas é aquilo que temos, ou tivemos, ou outra coisa qualquer em forma de “assim”.

É sempre tarde e, no entanto, é um prazer terminar, chegar ao fim, descansar, deixar para trás tanta coisa que não percebemos, tanta coisa que não conseguimos encontrar, tanta coisa e coisa nenhuma lá longe, inacessível, a acenar.

E, afinal, nem tarde nem cedo mas um “agora” permanente e eterno, a consciência ou o “Ser”, a identidade de algo pensante, possante. O dia que desmaia vagaroso sobre o mar, o caderno onde as palavras se desenham a bailar, a parte de fazer parte sem lá estar, a alegria de sair sem acabar. E acabar o Gin sem entornar, telefonar à gaja que se andava a insinuar, dar um murro nos cornos daquele que nos andava a gozar, ouvir um som no carro aos berros sem me espetar, ir do fim ao princípio da existência, mergulhar a cabeça no mar…e ficar na mesma, sem perceber, sem sair do lugar.

É tarde…é tão tarde que já não há nada para compreender, nada a não ser acabar.

 

Artur

 

quinta-feira, 7 de março de 2013

O TEMPO


O Tempo é a substância de que sou feito.

 

O Tempo é um rio que me arrasta consigo, mas eu sou o rio;

 

é um tigre que me devora, mas eu sou o tigre;

 

é um fogo que me consome, mas eu sou o fogo.

 

 

Jorge Luís Borges

quarta-feira, 6 de março de 2013

UMA PASSAGEM PELO OESTE

Exactamente quatro anos antes do dia da implantação da República em Portugal, um bébé nascia filho de João Nobre e Albertina Nery, numa pequena aldeia rodeada por terrenos baldios, poucos quilómetros a norte das Caldas da Rainha.

Vinha esta criança a uma família de camponeses tão pobres, que até o apelido tinha sido dado ao pai de João por ter sido impedido de um sargento Nobre, compondo-lhe assim o nome de nascimento.

Evaristo, o bébé, far-se-ia criança e ao contrário de muitos da sua idade enquanto ajudava os pais na agricultura, ainda ia à escola onde aprenderia a ler e a escrever.

Sopas de urtigas ou de cardos eram refeições comuns nos seus primeiros anos, porque o que os pais pagavam para poderem trabalhar nas courelas dos rendeiros era demasiado, pouco sobrando para terem algo mais para comer. Também não se podia dizer que os baldios fossem terrenos férteis, daí que todo aquele trabalho, por ser o único disponível para aquela população, tivesse de ser suportado como forma de subsistência ou de sobrevivência.

Os tempos eram muito difíceis e a expectativa que aquelas populações rurais tinham em ver a sua qualidade de vida melhorar, ia-se gorando à medida que a esperança numa mudança positiva em resultado do derrube da monarquia, ia ficando mais longínqua.

Evaristo crescia assim e tornava-se rapaz, com alguma vantagem sobre os da mesma idade, pelas letras aprendidas até à terceira classe. Veria chegar os combatentes da Grande Guerra, os que se tinham marcado no corpo e na alma na Batalha de La Lys. Voltavam aqueles que tinham conseguido sobreviver, tuberculosos, gaseados, estropiados, pagando desta forma a ousadia de terem toureado a morte. Ironicamente esse infortúnio dos outros lembrava-o que havia mais terra do que aquela que os seus olhos conheciam. Sonhava com melhores dias enquanto se embeiçava por Angelina com quem viria a casar ainda adolescente. 
Quatro filhos depois e com a tropa feita aos 23 anos, frustrado por tanta miséria piorada pela crise do final da década de 20, decide partir para França. Consegue um contrato com o salário prometido de 23,10 francos diários e um visto de trabalho passado pelo consulado de Bordéus a 18 de Setembro de 1930. Sem perder tempo consegue juntar quinhentos escudos, uma pequena fortuna naquele tempo, para pagar a 24 de Setembro a “Taxa de Licença” ao Regimento de Infantaria nº5, e assim ter autorização para se ausentar do país. Paga ainda mais 136$80 pelo passaporte de emigrante a 3 de Outubro e ficaria pronto para embarcar numa aventura de três anos.
Deixando a família para trás, parte para França onde chega e é vacinado a 8 de Outubro de 1930. Começa a trabalhar a 10 de Outubro nas minas de carvão coque da Mines & Usines de Decazeville, passando depois para uma das fábricas metalúrgicas, até 2 de Fevereiro de 1931. Tem um breve trabalho nos caminhos de ferro na empresa Vincenzini Dario - Ingénieur, sediada em Rouen, e depois passa então no mesmo ofício de “carrier” para a empresa Gagneraud Père & Fils, onde estará nas obras do caminho-de-ferro na zona de Poitiers, que seria mais tarde destruído pelos bombardeamentos da II Guerra Mundial, a 13 de Junho de 1944.
Três anos longe que vão trazendo mais saudade da família deixada em Portugal. Ainda contacta o consulado português em Bordéus, para saber como e quanto custaria trazê-los para si e para um outro mundo, onde trabalhar compensava monetariamente. No entanto depois de uma resposta do consulado de 17 de Março, conclui que isso seria muito complicado e caro e decide regressar a Portugal, saindo de França um mês mais tarde, a 23 de Abril de 1933, deixando todas as portas abertas para regressar com a família. Não voltaria.
Amealhou nesse espaço de tempo, o suficiente arrendar uma grande propriedade com casa, que anos mais tarde acabaria por comprar. Estabeleceu-se em negócios de distribuição de lenha, adubos, vinhos e comprou ainda a taberna da aldeia, misto de mercearia, onde mais tarde haveria o primeiro telefone público em quilómetros em redor.

Tinha assim arranjado forma, de encetar uma vida melhor para ele e para os quatro filhos que entretanto trabalhariam nas terras e negócios do pai. Depois do regresso dele de França, Evaristo e Angelina ainda teriam mais três.

Habituou-se Angelina nesses três anos sem o marido, a ser a matriarca protectora do clã. Não sendo uma mulher corpulenta, gostava de largar foguetes e dar tiros, compensando com o estardalhaço, a falta de tamanho. Uma tesa mulher do oeste selvagem, dedicada à sua prole e pronta a dar dois tiros para o ar, sempre que sentia algo estranho, sozinha com os filhos na casa isolada plantada no meio da propriedade de trinta hectares. Certa noite em que os cães não se calavam e com uma arma nova, deserta para arranjar pretexto para a experimentar, depressa se pôs porta fora, acabando de premir o gatilho de pernas para o ar e com as costas pregadas ao chão. A arma marcara-a no peito e no orgulho. Naquela noite perdeu esse hábito, mas também por essa altura já todos lhe conheciam bem a fibra.
Prosperava Evaristo e num laivo de sorte quando a vida já lhe sorria, haveria de ganhar em 1935 a lotaria num grupo de três amigos, calhando-lhe cinco contos de réis. Levou-o este bafo de Fortuna, a outro nível no jogo da vida. Mais depressa do que um raio a notícia se espalhou, e logo apareceram alguns abutres para depenicar o que pudessem, convencendo-o a entrar na sociedade da Companhia de Vinhos do Oeste, através do investimento na compra de uma camionete para transporte de vinhos tão necessária à sociedade, conferindo-lhe assim o estatuto de respeitado e conhecido empresário das Caldas da Rainha. No entanto, seria uma sociedade onde ele entraria com dinheiro num fluxo de sentido único, tornando-se talvez no único erro da sua vida. Mesmo assim bem melhor do que os outros dois, a quem os cinco contos se esfumariam sem história nem proveito duradouro.

Das memórias dos negócios de Evaristo, contaria ele de uma vez em que já altas horas numa noite de lua cheia, voltava de bicicleta da Nazaré depois de ter recebido um grande pagamento em dinheiro. Decorridos poucos quilómetros, dois vultos saíram-lhe ao caminho numa ponte estreita sobre o rio Alcôa, acercando-se lentamente e perguntando-lhe em jeito de não o afugentarem, qual era o caminho para a Nazaré. Estacaram a aproximação pelo reflexo frio do luar no metal reluzente da arma que trazia consigo, apontando com ela o caminho para a Nazaré para um lado, o de Alfeizerão para o outro, e para o inferno se eles se atrevessem. Não se atreveram e mais depressa desapareceram no breu.

Os afazeres estendiam-se a todos os concelhos vizinhos, e um dia estava ele no escritório da taberna a atender um cliente que tinha a peculiar alcunha de “Sem-Cú”, quando um dos filhos os interrompeu a anunciar a chegada de outro de cliente da localidade de Cortém. O primeiro percebeu outra coisa, num assomo revoltado por ter entendido que o rapazola tinha provocadoramente anunciado ao pai que “O senhor de “Cú-Tem” está ali fora à sua espera!...”, gerando-se assim uma grande confusão. Acalmaram-se os ânimos explicada a situação, depois de uns copos de vintém e de algumas gargalhadas.

Evaristo, sem ligações ou cargos políticos, servir-se-ia da sua influência e reputação respeitada na região, para ser o principal empreendedor no asfaltamento da única estrada que ligava a aldeia ás Caldas da Rainha, até aí um caminho quase intransitável de terra batida e amplas crateras, bem como pela electrificação de toda aquela área, ainda antes do 25 de Abril de 1974. A festa da inauguração das duas inovações foi no armazém de vinhos que possuía, contiguo à taberna, e que já servia volta e meia para os bailaricos organizados pelos filhos, ao som de uma grafonola e discos em cerâmica com polkas e valsas, trazendo assim um pouco de animação a gentes que para além do duro trabalho, de uma côdea e de um copo de vinho, pouco mais tinham que os distraísse e alegrasse. O progresso era agora mais fácil, alterando significativamente a qualidade de vida daquela comunidade.

Teriam Evaristo e Angelina oportunidade de ver a família crescer em quinze netos e mais bisnetos, comemorando as bodas de ouro, vivendo a seguir a esse marco ainda quase por mais duas décadas com as alegrias e grandes desgostos que temperam a vida, não esperando muito ele lá do outro lado por ela.


Hélder


terça-feira, 5 de março de 2013

CRÓNICA DE UMA MORTE ASSINALADA


Após a gigantesca manifestação de 2 de Março torna-se confrangedor o silêncio tanto das instituições (Governo e Presidente da República) como da maioria dos actores principais do espectro político. Em seu lugar correm os escribas de serviço desvalorizando, minimizando, transformando os acontecimentos num fait-divers sem consequências, analisando o que não tem interesse nenhum, insistindo na ideia de que no dia seguinte tudo vai ficar na mesma. Ora, tanto a manifestação de 15 de Setembro como a de 2 de Março revestem duas etapas incontornáveis, dois momentos mais do que simbólicos de que os dias deste regime chegaram ao fim e que não há remendo suficiente para o manter de pé. O regime esgotou-se sobre si mesmo, apodreceu e não tem mais nada para dar. O que virá a seguir é sem dúvida uma colossal incógnita mas, a certeza de que alguma coisa acabará por acontecer cresce de dia para dia. Muito melhor teria sido que estas duas gigantescas manifestações incluíssem actos violentos, desacatos, pretextos para ocupar as forças policiais, os escribas do regime e os ofendidos governantes. Mas não. Em vez de uma aproximação à grega, o povo português mostrou o seu civismo, o seu sentimento de pertença, a sua maturidade democrática. O povo português fez questão de exibir o enorme volume da população excluída, a maioria esmagadora da pessoas, esclarecendo que já não vai embarcar em mais encenações que colocam uns contra os outros, que disfarçam a incompetência com rectificações de última hora, que justificam o injustificável.

O regime tal como o conhecemos acabou mas isso não significa que caia hoje para amanhã se erguer outro no seu lugar. Os regimes políticos em Portugal normalmente caem de maduros quando já não têm nada onde se sustentar. Um dia o vento sopra mais forte, a terra gira um pouco mais depressa e, eles simplesmente caem. Tal como a monarquia não caiu logo após o assassinato do rei, este regime também não vai cair já. Mas que terminou os seus dias, sobre isso não tenho dúvidas.

Aparte a asfixia de décadas a que os partidos foram submetendo a população, governando e fazendo política nas suas costas, excluindo a participação da sociedade, o governo actual acabou por assinar a sentença de morte do regime no momento em que começou a disparar na direcção dos poucos sectores da sociedade que o elegeram. Começando pela classe média, a grande massacrada dos cortes, dos aumentos de impostos, da destruição do estado social que sustentava praticamente sozinha. Foi essa classe média que se apresentou de forma esmagadora nas duas grandes manifestações. Cortando a torto e a direito em nome de uma rectificação, de um ajustamento financeiro, de uma imposição dos credores internacionais, o governo falhou os seus objectivos, voltou a falhar e falhou outra vez. Os sacrifícios da população não serviram para coisa nenhuma a não ser o carregar ainda mais o futuro com nuvens negras. A classe política continua alegre e contente a nadar nos seus privilégios, nas suas reformas, no seu circuito fechado como se nada fosse, assobia para o lado e faz interpretações semânticas das leis que publica para melhor continuar instalada na sua posição de supremacia. A justiça, lenta, ineficaz, inacessível aos de menores recursos, acompanha este abandono da população entregue á sua sorte e ao seu trágico destino. A educação e a saúde seguem-lhe os passos. Sobra um sector inatacável, inatingível, acima de tudo e de todos. O sector financeiro, aquele cuja única função é acumular dinheiro sem nada produzir. Aquele para quem os lucros são privados mas os prejuízos são públicos. Aquele principal responsável pela crise que nos trouxe até aqui e que menos prejuízos teve com ela. Por fim, as forças armadas e as forças de segurança. Não há dinheiro, não há orientação estratégica, não há respeito nenhum pelo ultimo reduto do sustentáculo do aparelho do Estado. A Democracia desapareceu quando acabou o Estado de Direito, quando as instituições deixaram de responder aos acontecimentos. O poder político perdeu influência, dignidade e capacidade quando se deixou infiltrar pela especulação financeira que lhe passou a marcar a agenda. Sem ninguém que proteja a sua soberania, o Estado deixa de existir. A sociedade mudou de rumo no dia em que a maioria esmagadora das pessoas passou a ser excluída das decisões, empurrada para o desespero, silenciada nos seus direitos, escarnecida pelos mais fortes.

Que este regime terminou já não há dúvidas nenhumas. Depende agora de quem ainda exerce o poder saber se terminará de forma mais pacífica ou mais violenta, mais cedo ou mais tarde. Pela parte da população a sugestão é ir mais pelo lado da solução islandesa do que pelo lado grego. Mas ambas as hipóteses continuam em cima da mesa… A ver vamos.

 

Artur