Vinha
esta criança a uma família de camponeses tão pobres, que até o apelido tinha
sido dado ao pai de João por ter sido impedido de um sargento Nobre,
compondo-lhe assim o nome de nascimento.
Evaristo,
o bébé, far-se-ia criança e ao contrário de muitos da sua idade enquanto
ajudava os pais na agricultura, ainda ia à escola onde aprenderia a ler e a
escrever.
Sopas
de urtigas ou de cardos eram refeições comuns nos seus primeiros anos, porque o
que os pais pagavam para poderem trabalhar nas courelas dos rendeiros era
demasiado, pouco sobrando para terem algo mais para comer. Também não se podia
dizer que os baldios fossem terrenos férteis, daí que todo aquele trabalho, por
ser o único disponível para aquela população, tivesse de ser suportado como
forma de subsistência ou de sobrevivência.
Os
tempos eram muito difíceis e a expectativa que aquelas populações rurais tinham
em ver a sua qualidade de vida melhorar, ia-se gorando à medida que a esperança
numa mudança positiva em resultado do derrube da monarquia, ia ficando mais longínqua.
Evaristo
crescia assim e tornava-se rapaz, com alguma vantagem sobre os da mesma idade,
pelas letras aprendidas até à terceira classe. Veria chegar os combatentes da
Grande Guerra, os que se tinham marcado no corpo e na alma na Batalha de La Lys.
Voltavam aqueles que tinham conseguido sobreviver, tuberculosos, gaseados,
estropiados, pagando desta forma a ousadia de terem toureado a morte.
Ironicamente esse infortúnio dos outros lembrava-o que havia mais terra do que
aquela que os seus olhos conheciam. Sonhava com melhores dias enquanto se
embeiçava por Angelina com quem viria a casar ainda adolescente.
Quatro
filhos depois e com a tropa feita aos 23 anos, frustrado por tanta miséria
piorada pela crise do final da década de 20, decide partir para França.
Consegue um contrato com o salário prometido de 23,10 francos diários e um
visto de trabalho passado pelo consulado de Bordéus a 18 de Setembro de 1930.
Sem perder tempo consegue juntar quinhentos escudos, uma pequena fortuna naquele
tempo, para pagar a 24 de Setembro a “Taxa de Licença” ao Regimento de
Infantaria nº5, e assim ter autorização para se ausentar do país. Paga ainda
mais 136$80 pelo passaporte de emigrante a 3 de Outubro e ficaria pronto para
embarcar numa aventura de três anos.
Deixando
a família para trás, parte para França onde chega e é vacinado a 8 de Outubro
de 1930. Começa a trabalhar a 10 de Outubro nas minas de carvão coque da Mines
& Usines de Decazeville, passando depois para uma das fábricas metalúrgicas,
até 2 de Fevereiro de 1931. Tem um breve trabalho nos caminhos de ferro na
empresa Vincenzini Dario - Ingénieur, sediada em Rouen, e depois passa então no
mesmo ofício de “carrier” para a empresa Gagneraud Père & Fils, onde estará
nas obras do caminho-de-ferro na zona de Poitiers, que seria mais tarde destruído
pelos bombardeamentos da II Guerra Mundial, a 13 de Junho de 1944.
Três
anos longe que vão trazendo mais saudade da família deixada em Portugal. Ainda
contacta o consulado português em Bordéus, para saber como e quanto custaria trazê-los
para si e para um outro mundo, onde trabalhar compensava monetariamente. No
entanto depois de uma resposta do consulado de 17 de Março, conclui que isso seria
muito complicado e caro e decide regressar a Portugal, saindo de França um mês
mais tarde, a 23 de Abril de 1933, deixando todas as portas abertas para regressar com
a família. Não voltaria.
Amealhou
nesse espaço de tempo, o suficiente arrendar uma grande propriedade com casa, que
anos mais tarde acabaria por comprar. Estabeleceu-se em negócios de
distribuição de lenha, adubos, vinhos e comprou ainda a taberna da aldeia, misto
de mercearia, onde mais tarde haveria o primeiro telefone público em
quilómetros em redor.
Tinha
assim arranjado forma, de encetar uma vida melhor para ele e para os quatro filhos
que entretanto trabalhariam nas terras e negócios do pai. Depois do regresso
dele de França, Evaristo e Angelina ainda teriam mais três.
Habituou-se
Angelina nesses três anos sem o marido, a ser a matriarca protectora do clã.
Não sendo uma mulher corpulenta, gostava de largar foguetes e dar tiros,
compensando com o estardalhaço, a falta de tamanho. Uma tesa mulher do oeste
selvagem, dedicada à sua prole e pronta a dar dois tiros para o ar, sempre que sentia
algo estranho, sozinha com os filhos na casa isolada plantada no meio da
propriedade de trinta hectares. Certa noite em que os cães não se calavam e com
uma arma nova, deserta para arranjar pretexto para a experimentar, depressa se
pôs porta fora, acabando de premir o gatilho de pernas para o ar e com as costas pregadas ao chão. A arma marcara-a no peito e no orgulho. Naquela noite
perdeu esse hábito, mas também por essa altura já todos lhe conheciam bem a
fibra.
Prosperava
Evaristo e num laivo de sorte quando a vida já lhe sorria, haveria de ganhar em
1935 a lotaria num grupo de três amigos, calhando-lhe cinco contos de réis.
Levou-o este bafo de Fortuna, a outro nível no jogo da vida. Mais depressa do
que um raio a notícia se espalhou, e logo apareceram alguns abutres para
depenicar o que pudessem, convencendo-o a entrar na sociedade da Companhia de
Vinhos do Oeste, através do investimento na compra de uma camionete para
transporte de vinhos tão necessária à sociedade, conferindo-lhe assim o
estatuto de respeitado e conhecido empresário das Caldas da Rainha. No entanto,
seria uma sociedade onde ele entraria com dinheiro num fluxo de sentido único,
tornando-se talvez no único erro da sua vida. Mesmo assim bem melhor do que os
outros dois, a quem os cinco contos se esfumariam sem história nem proveito
duradouro.
Das
memórias dos negócios de Evaristo, contaria ele de uma vez em que já altas
horas numa noite de lua cheia, voltava de bicicleta da Nazaré depois de ter
recebido um grande pagamento em dinheiro. Decorridos poucos quilómetros, dois
vultos saíram-lhe ao caminho numa ponte estreita sobre o rio Alcôa,
acercando-se lentamente e perguntando-lhe em jeito de não o afugentarem, qual
era o caminho para a Nazaré. Estacaram a aproximação pelo reflexo frio do luar
no metal reluzente da arma que trazia consigo, apontando com ela o caminho para
a Nazaré para um lado, o de Alfeizerão para o outro, e para o inferno se eles
se atrevessem. Não se atreveram e mais depressa desapareceram no breu.
Os
afazeres estendiam-se a todos os concelhos vizinhos, e um dia estava ele no
escritório da taberna a atender um cliente que tinha a peculiar alcunha de
“Sem-Cú”, quando um dos filhos os interrompeu a anunciar a chegada de outro de
cliente da localidade de Cortém. O primeiro percebeu outra coisa, num assomo
revoltado por ter entendido que o rapazola tinha provocadoramente anunciado ao
pai que “O senhor de “Cú-Tem” está ali fora à sua espera!...”, gerando-se assim
uma grande confusão. Acalmaram-se os ânimos explicada a situação, depois de uns
copos de vintém e de algumas gargalhadas.
Evaristo,
sem ligações ou cargos políticos, servir-se-ia da sua influência e reputação
respeitada na região, para ser o principal empreendedor no asfaltamento da única
estrada que ligava a aldeia ás Caldas da Rainha, até aí um caminho quase intransitável de terra
batida e amplas crateras, bem como pela electrificação de
toda aquela área, ainda antes do 25 de Abril de 1974. A festa da inauguração das
duas inovações foi no armazém de vinhos que possuía, contiguo à taberna, e que
já servia volta e meia para os bailaricos organizados pelos filhos, ao som de
uma grafonola e discos em cerâmica com polkas e valsas, trazendo assim um pouco
de animação a gentes que para além do duro trabalho, de uma côdea e de um copo
de vinho, pouco mais tinham que os distraísse e alegrasse. O progresso era
agora mais fácil, alterando significativamente a qualidade de vida daquela
comunidade.
Teriam Evaristo e Angelina oportunidade de ver a família crescer em quinze netos e mais bisnetos, comemorando as bodas de ouro, vivendo a seguir a esse marco ainda quase por mais duas décadas com as alegrias e grandes desgostos que temperam a vida, não esperando muito ele lá do outro lado por ela.
Hélder
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