Por viver longe dos avós e
restante família materna, uma vez por mês ou por vezes a intervalos maiores,
Fernando deslocava-se com os pais e a irmã quatro anos mais nova à terra onde
eles viviam, uma pequena aldeia poucos quilómetros a norte de Caldas da Rainha.
Tudo era atractivamente diferente do sítio onde morava.
O trajecto demorava quase três
horas de pequenas quezílias e moderadas guerrilhas com a irmã pela conquista fronteiriça
e manutenção de território no banco de trás do carro, atazanando a paciência
dos pais num crescendo até ao limite de uma intervenção mais ou menos sentida
na pele. Depois era o forçado restabelecimento de um débil tratado de paz que
durava poucas dezenas de quilómetros, num belicoso conflito local que acabava
por durar até ao destino.
Sem paragens, esse tempo de viagem
era o suficiente para o levar até aos avós e primos que adorava, avançando
estoicamente o Ford Escort branco pelos últimos quatro quilómetros numa estrada
de terra, buracos e pedras, por entre pinhais, para uma terra onde ter-se luz à
noite obrigava a um ritual exótico que envolvia sempre alguma forma de fogo.
À chegada tinha o avô Evaristo
atrás do balcão da taberna e a avó Angelina de volta dos tachos com um guisado
pronto para o almoço. De ar austero, desfaziam a máscara pela alegria de
matarem saudades dos recém-chegados. A avó logo retomava o semblante carregado
que Fernando procurava desfazer, normalmente com sucesso.
O avô a atender o povo da
aldeia, atrás do balcão onde a uma ponta estava uma torre de quatro frascos de
vidro cheios de rebuçados para serem vendidos ao peso ou a avulso. Era amistoso com
toda a gente mas sempre pronto a pôr na ordem quem se esticava na conversa ou
nos actos, mantendo uma aura de respeito que ninguém se atrevia a pôr em causa.
Era um estabelecimento misto de taberna com prateleiras recheadas de copos e
copinhos de vidro grosso, mercearia e casa de adubos e produtos químicos, com as
paredes exteriores caiadas a ocre e as portas e janelas contornadas por listas
azuis escuras, num edifício comprido com zonas diferenciadas, unidas por
passagens interiores de comunicação. Começava pela casa da Legião, que era uma
sala de reuniões, depois a retrete que consistia numa simples latrina com um
buraco no chão e um poço com um balde, convenientemente localizado do lado de
fora num pequeno pátio de terra onde estava também o Tarzan, um imponente cão
de longo pelo ruivo, arraçado de setter irlandês mas em versão gigante,
suficientemente forte para aguentar no dorso Fernando e a prima Isabel. A
seguir uma zona de armazenamento para produtos secos, outro pátio com pequenas
árvores, a cozinha e sala de refeições e um escritório, um quarto e a única cabine
telefónica em quilómetros para uso da população. Entrando pela porta que estava
ao lado da cabine telefónica e descendo três degraus estava-se no lagar que
tinha uma grande janela com portadas de madeira que dava para a rua, o depósito
dos químicos nas traseiras e a seguir num patamar poucos degraus abaixo
acompanhando o declive da rua, um amplo armazém de vinhos com grandes tonéis
em cimento e enormes cascos de madeira escurecida pelos anos e barris de
diferentes tamanhos mais pequenos. No armazém havia ainda uma outra divisão: um
laboratório vinícola dentro de uma estrutura com porta e paredes de ripas de
madeira dividindo centenas de vidros aos quadrados que permitiam ver todos os
tubos de ensaio e toda uma parafernália de utensílios próprios de um
laboratório científico, e estantes com grandes livros de anotações. Apesar de
todas estas coisas estarem neste espaço enorme que podia ainda servir para
guardar várias camionetes, estava vazio para gáudio dos pequenos índios, numa
tribo engrossada pelos restantes primos e amigos deles, todos de idades
aproximadas, numa animada agitação de jogos de escondidas e apanhada. O armazém
ainda tinha outras zonas com diferentes patamares em cimento armado e um
declive para facilitar o carregamento de pipas de vinho, emprestando assim o
cenário ideal para coboiadas.
Nos intervalos, Evaristo retemperava
a energia aos netos com um copinho pequeno de jeropiga e um pratinho de
bolachas torradas colocados em cima da mesa com uma cobertura de plástico
grosso pregado com tachas, em xadrez branco, cinzento e preto, à qual se
sentavam em bancos de pau corridos.
Em frente à taberna do outro
lado da rua morava uma personagem caricata: Gertrudes Careca, uma viúva de pele
muito branca e sempre vestida de preto até aos pés, de chapéu de palha de abas
largas preso por debaixo do queixo proeminente por duas fitas pretas atadas que
a ajudavam a fixar uma peruca pastosa de cabelo ruivo. Apesar da sua simpatia,
a imagem inspirava algum temor à canalha que insistia a vê-la como uma
praticante de magia negra.
Os primos sempre que sabiam
que ele chegaria estavam invariavelmente à sua espera. João, quatro anos mais
velho e Isabel, cinco dias mais nova eram os que moravam mais próximo da
taberna, com quem Fernando passava mais tempo e por isso também os mais
chegados. Era com eles que descobria um outro tipo de vida próprio das pequenas
aldeias. Jogatanas de bola na rua organizadas pelo primo, numa altura que quase
não havia trânsito de espécie nenhuma a não ser bicicletas e umas quantas motorizadas
Kreidler Florett, uma delas do avô.
Por vezes, quando o avô precisava
de ir ás fazendas ver o andamento dos trabalhos levava Fernando e Isabel
sentados em cima do depósito da mota, noutra experiência electrizante da viagem
quanto mais não fosse pela vibração sentida pelas mãos apoiadas no depósito de
combustível. Talvez pela dormência das mãos, talvez por pura velhaquice, um dia
achou Fernando por bem encher os olhos e a boca de Isabel daquela poeirenta
terra preta. O avô que estava por perto, ouviu bem a reclamação da miúda e deu
o único safanão que alguma vez daria a Fernando, de certeza doendo-lhe mais a
ele que ao meliante.
À noite no Verão, era o cantar
ininterrupto dos grilos e a luz de dezenas de pirilampos que ajudavam a alumiar
o caminho cem metros abaixo até à casa dos avós, com candeias nas mãos, ás
vezes um petromax, debaixo do céu mais estrelado do mundo. Na Lua gigante conseguiam-se
ver os detritos deixados pelas missões dos astronautas pouco tempo antes.
Em casa dominava o cheiro dos
fósforos acabados de acender e da cera queimada das velas. Fernando utilizava
um pequeno candeeiro a petróleo e todo aquele ritual mexia com a imaginação. Durante
os dias ali passados, gostava ainda da inequívoca ordem de soltura que o
libertava de asas soltas numa autonomia para brincar, jogar à bola, ir visitar
os tios a trabalhar nos terrenos agrícolas e voltar dentro dos cestos dos
burros, completamente suado e sujo de pó preto da terra areenta, ficando
fascinado à noite quando se lavava antes de ir para a cama, com o grau de
negridão e consistência de porcaria conseguido na água - quanto mais negra
estivesse, melhor tinha atingido o objectivo, algo a repetir e eventualmente
suplantar no dia seguinte. Depois de um copo de leite morno, afundava-se no duro
colchão de palha de milho e tapava-se com ásperos cobertores de papa, picando-o
ao perpassarem a finura dos lençóis. Nada disso importava, e estranhamente até
lhe era agradável lembrando-o do conforto que tinha na casa dele, no
contentamento que era para ele poder estar com os primos.
As casas dos tios separadas
entre si por centenas de metros, e unidas por muito definidos e estreitos
carreiros de terra firmemente batida de tão calcorreada contornando os terrenos
agrícolas, eram atravessados por intermináveis filas de formigas e alguns
escaravelhos.
O Outono era época de matança
do porco, em que os tios à vez tratavam da festança. Eram fins-de-semana em que
todo o clã de mais de cinquenta se reunia logo ao sábado de manhã, para espetar
a faca na goela do bicho. Apesar de ser criança, não se impressionava Fernando
com os guinchos do porco que ecoavam por aqueles campos fora. Muito menos o
impressionava a torrente vermelha que escorria para um alguidar já com umas
boas mãos cheias de sal e que alguma mulher se encarregava de misturar com o sangue ali caído. Depois era a chamuscagem do pelo com caruma num
cheiro que se impregnava na roupa como uma tatuagem de grupo. Pendurava-se o
porco, abria-se, tiravam-se as tripas e aquilo que os gaiatos mais esperavam: a
bexiga. Depois de esvaziada, era cheia com uma bomba de ar e lá ia a matilha toda
para a eira jogar à bola, como se aquela fosse a ideal para os encontros
futebolísticos oficiais. Para desapontamento deles, o esférico rolando no
cimento ou terra batida da eira nunca durava muito.
O resto desse dia era gasto
com parte das mulheres a irem lavar as tripas ao riacho para depois se fazerem
os enchidos, enquanto as outras tratavam de fazer o almoço e pôr a mesa num
festim que duraria até à noite de domingo, enquanto os homens esquartejavam a
carcaça e os mais velhos jogavam à sueca em intermináveis discussões regadas a
tinto.
Ficava Fernando confundido
pela constante alegria dos primos. Apesar de não terem electricidade,
televisão, ou outros confortos que ele tinha, vivendo em casas de adobo com chão
de terra batida, levavam-no a questionar se a verdadeira felicidade era a deles
– a tribo do vento.
Quando voltava a casa mal
podia esperar pelo regresso ao sítio onde era tudo mais a preto e branco, sem
grande margem para degradés de cinzento.
Hélder
Hélder
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