quinta-feira, 21 de março de 2013

DIAS DE LIBERDADE, TABERNA E MATANÇA



Por viver longe dos avós e restante família materna, uma vez por mês ou por vezes a intervalos maiores, Fernando deslocava-se com os pais e a irmã quatro anos mais nova à terra onde eles viviam, uma pequena aldeia poucos quilómetros a norte de Caldas da Rainha. Tudo era atractivamente diferente do sítio onde morava.

O trajecto demorava quase três horas de pequenas quezílias e moderadas guerrilhas com a irmã pela conquista fronteiriça e manutenção de território no banco de trás do carro, atazanando a paciência dos pais num crescendo até ao limite de uma intervenção mais ou menos sentida na pele. Depois era o forçado restabelecimento de um débil tratado de paz que durava poucas dezenas de quilómetros, num belicoso conflito local que acabava por durar até ao destino.

Sem paragens, esse tempo de viagem era o suficiente para o levar até aos avós e primos que adorava, avançando estoicamente o Ford Escort branco pelos últimos quatro quilómetros numa estrada de terra, buracos e pedras, por entre pinhais, para uma terra onde ter-se luz à noite obrigava a um ritual exótico que envolvia sempre alguma forma de fogo.

À chegada tinha o avô Evaristo atrás do balcão da taberna e a avó Angelina de volta dos tachos com um guisado pronto para o almoço. De ar austero, desfaziam a máscara pela alegria de matarem saudades dos recém-chegados. A avó logo retomava o semblante carregado que Fernando procurava desfazer, normalmente com sucesso.

O avô a atender o povo da aldeia, atrás do balcão onde a uma ponta estava uma torre de quatro frascos de vidro cheios de rebuçados para serem vendidos ao peso ou a avulso. Era amistoso com toda a gente mas sempre pronto a pôr na ordem quem se esticava na conversa ou nos actos, mantendo uma aura de respeito que ninguém se atrevia a pôr em causa. Era um estabelecimento misto de taberna com prateleiras recheadas de copos e copinhos de vidro grosso, mercearia e casa de adubos e produtos químicos, com as paredes exteriores caiadas a ocre e as portas e janelas contornadas por listas azuis escuras, num edifício comprido com zonas diferenciadas, unidas por passagens interiores de comunicação. Começava pela casa da Legião, que era uma sala de reuniões, depois a retrete que consistia numa simples latrina com um buraco no chão e um poço com um balde, convenientemente localizado do lado de fora num pequeno pátio de terra onde estava também o Tarzan, um imponente cão de longo pelo ruivo, arraçado de setter irlandês mas em versão gigante, suficientemente forte para aguentar no dorso Fernando e a prima Isabel. A seguir uma zona de armazenamento para produtos secos, outro pátio com pequenas árvores, a cozinha e sala de refeições e um escritório, um quarto e a única cabine telefónica em quilómetros para uso da população. Entrando pela porta que estava ao lado da cabine telefónica e descendo três degraus estava-se no lagar que tinha uma grande janela com portadas de madeira que dava para a rua, o depósito dos químicos nas traseiras e a seguir num patamar poucos degraus abaixo acompanhando o declive da rua, um amplo armazém de vinhos com grandes tonéis em cimento e enormes cascos de madeira escurecida pelos anos e barris de diferentes tamanhos mais pequenos. No armazém havia ainda uma outra divisão: um laboratório vinícola dentro de uma estrutura com porta e paredes de ripas de madeira dividindo centenas de vidros aos quadrados que permitiam ver todos os tubos de ensaio e toda uma parafernália de utensílios próprios de um laboratório científico, e estantes com grandes livros de anotações. Apesar de todas estas coisas estarem neste espaço enorme que podia ainda servir para guardar várias camionetes, estava vazio para gáudio dos pequenos índios, numa tribo engrossada pelos restantes primos e amigos deles, todos de idades aproximadas, numa animada agitação de jogos de escondidas e apanhada. O armazém ainda tinha outras zonas com diferentes patamares em cimento armado e um declive para facilitar o carregamento de pipas de vinho, emprestando assim o cenário ideal para coboiadas.

Nos intervalos, Evaristo retemperava a energia aos netos com um copinho pequeno de jeropiga e um pratinho de bolachas torradas colocados em cima da mesa com uma cobertura de plástico grosso pregado com tachas, em xadrez branco, cinzento e preto, à qual se sentavam em bancos de pau corridos.

Em frente à taberna do outro lado da rua morava uma personagem caricata: Gertrudes Careca, uma viúva de pele muito branca e sempre vestida de preto até aos pés, de chapéu de palha de abas largas preso por debaixo do queixo proeminente por duas fitas pretas atadas que a ajudavam a fixar uma peruca pastosa de cabelo ruivo. Apesar da sua simpatia, a imagem inspirava algum temor à canalha que insistia a vê-la como uma praticante de magia negra.

Os primos sempre que sabiam que ele chegaria estavam invariavelmente à sua espera. João, quatro anos mais velho e Isabel, cinco dias mais nova eram os que moravam mais próximo da taberna, com quem Fernando passava mais tempo e por isso também os mais chegados. Era com eles que descobria um outro tipo de vida próprio das pequenas aldeias. Jogatanas de bola na rua organizadas pelo primo, numa altura que quase não havia trânsito de espécie nenhuma a não ser bicicletas e umas quantas motorizadas Kreidler Florett, uma delas do avô.

Por vezes, quando o avô precisava de ir ás fazendas ver o andamento dos trabalhos levava Fernando e Isabel sentados em cima do depósito da mota, noutra experiência electrizante da viagem quanto mais não fosse pela vibração sentida pelas mãos apoiadas no depósito de combustível. Talvez pela dormência das mãos, talvez por pura velhaquice, um dia achou Fernando por bem encher os olhos e a boca de Isabel daquela poeirenta terra preta. O avô que estava por perto, ouviu bem a reclamação da miúda e deu o único safanão que alguma vez daria a Fernando, de certeza doendo-lhe mais a ele que ao meliante.

À noite no Verão, era o cantar ininterrupto dos grilos e a luz de dezenas de pirilampos que ajudavam a alumiar o caminho cem metros abaixo até à casa dos avós, com candeias nas mãos, ás vezes um petromax, debaixo do céu mais estrelado do mundo. Na Lua gigante conseguiam-se ver os detritos deixados pelas missões dos astronautas pouco tempo antes.

Em casa dominava o cheiro dos fósforos acabados de acender e da cera queimada das velas. Fernando utilizava um pequeno candeeiro a petróleo e todo aquele ritual mexia com a imaginação. Durante os dias ali passados, gostava ainda da inequívoca ordem de soltura que o libertava de asas soltas numa autonomia para brincar, jogar à bola, ir visitar os tios a trabalhar nos terrenos agrícolas e voltar dentro dos cestos dos burros, completamente suado e sujo de pó preto da terra areenta, ficando fascinado à noite quando se lavava antes de ir para a cama, com o grau de negridão e consistência de porcaria conseguido na água - quanto mais negra estivesse, melhor tinha atingido o objectivo, algo a repetir e eventualmente suplantar no dia seguinte. Depois de um copo de leite morno, afundava-se no duro colchão de palha de milho e tapava-se com ásperos cobertores de papa, picando-o ao perpassarem a finura dos lençóis. Nada disso importava, e estranhamente até lhe era agradável lembrando-o do conforto que tinha na casa dele, no contentamento que era para ele poder estar com os primos.

As casas dos tios separadas entre si por centenas de metros, e unidas por muito definidos e estreitos carreiros de terra firmemente batida de tão calcorreada contornando os terrenos agrícolas, eram atravessados por intermináveis filas de formigas e alguns escaravelhos.

O Outono era época de matança do porco, em que os tios à vez tratavam da festança. Eram fins-de-semana em que todo o clã de mais de cinquenta se reunia logo ao sábado de manhã, para espetar a faca na goela do bicho. Apesar de ser criança, não se impressionava Fernando com os guinchos do porco que ecoavam por aqueles campos fora. Muito menos o impressionava a torrente vermelha que escorria para um alguidar já com umas boas mãos cheias de sal e que alguma mulher se encarregava de misturar com o sangue ali caído. Depois era a chamuscagem do pelo com caruma num cheiro que se impregnava na roupa como uma tatuagem de grupo. Pendurava-se o porco, abria-se, tiravam-se as tripas e aquilo que os gaiatos mais esperavam: a bexiga. Depois de esvaziada, era cheia com uma bomba de ar e lá ia a matilha toda para a eira jogar à bola, como se aquela fosse a ideal para os encontros futebolísticos oficiais. Para desapontamento deles, o esférico rolando no cimento ou terra batida da eira nunca durava muito.

O resto desse dia era gasto com parte das mulheres a irem lavar as tripas ao riacho para depois se fazerem os enchidos, enquanto as outras tratavam de fazer o almoço e pôr a mesa num festim que duraria até à noite de domingo, enquanto os homens esquartejavam a carcaça e os mais velhos jogavam à sueca em intermináveis discussões regadas a tinto.

Ficava Fernando confundido pela constante alegria dos primos. Apesar de não terem electricidade, televisão, ou outros confortos que ele tinha, vivendo em casas de adobo com chão de terra batida, levavam-no a questionar se a verdadeira felicidade era a deles – a tribo do vento.

Quando voltava a casa mal podia esperar pelo regresso ao sítio onde era tudo mais a preto e branco, sem grande margem para degradés de cinzento.

Hélder

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