segunda-feira, 23 de março de 2015

S/ título

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RRV

A REVOLUÇÃO DO ROCK RENDEZ VOUS

R. Ricardo Espírito Santo

Uma produção Terra Líquida Filmes para a RTP2

Portugal, 2014



No final dos anos 70 o país está a braços com o vazio, entalado entre os restos de um tempo antigo e os primeiros esforços de construção de uma nova realidade que a revolução permitiu acontecer. Uma crise económica faz acelerar outras tantas sociais e políticas. Nesse meio tempo em que pouca ou nenhuma nitidez se consegue vislumbrar a rádio é ocupada por música de cariz político, estilos pseudopopularucho ou pela MPB (Música Popular Brasileira). Os jovens dessa época vêm-se confrontados com um marasmo e uma lentidão que não lhes pertence, querem outra coisa. Se por um lado Portugal necessitava de construir o que nas décadas de 60 e 70 não tinha sido feito, por outro o tempo não parava trazendo sempre novas modas, sucessivos movimentos artísticos e culturais. De repente aconteceu um espaço em plena cidade. Um cinema antigo onde passavam filmes de cine clube transforma-se num clube de Rock, o Rock Rendez Vous (RRV) , espaço  que rapidamente se torna o símbolo de uma das mais interessantes e profundas revoluções culturais de sempre na música e na cultura portuguesas marcando definitivamente gerações de músicos, compositores, críticos, radialistas e público em geral.
Com realização de Ricardo Espírito Santo este trabalho documental produzido pela Terra Líquida Filmes para a RTP2 vem finalmente preencher uma enorme lacuna que faltava na história documentada da cultura portuguesa da década de 80. Com testemunhos dos principais protagonistas, desde Zé Pedro até Adolfo Luxúria Canibal, passando por Rui Reininho, João Peste ou Rui Pregal da Cunha, passando por homens da rádio (Luís Filipe de Barros), jornalistas (Miguel Cadete do Blitz) e fotógrafo (Rui Vasco) vamos atravessar 40 minutos de boa disposição e autenticidade nesta viagem a um tempo em que Lisboa estava no eixo das capitais do mundo no que à música dizia respeito.
E pergunta-me o leitor mais desconfiado: “Tanto barulho por causa de uma casa de espectáculos?” E eu respondo: “Todo o barulho será pouco para explicar a importância e a relevância que esse cinema convertido em sala de música ao vivo conseguiu ter na história da música portuguesa. “ Passo a explicar.
Em primeiro lugar, a existência de um espaço próprio para tocar música ao vivo permitiu e reforçou a descoberta de que era possível fazer Rock em português. Não só era possível como se tornou rapidamente um fenómeno popular, levando os maiores êxitos a serem cantados por pessoas que nada tinham a ver com aquele género de música. Isso e uma comunidade radiofónica que se multiplicava em passar música portuguesa, facto de que hoje estamos a milhas de distância.
Em segundo lugar, a existência desse espaço permitiu que um número enorme de bandas e projectos tivessem a sua oportunidade, acabando o tempo e o público por fazer a sua selecção natural. Deste modo a qualidade acabaria por se revelar de forma inevitável.
Abrangendo um horizonte que irá desde aqueles que hoje estão no princípio dos 60 até aos que já contam 40 e muitos anos, o RRV era também um lugar que não fazia distinções. O único requisito exigido era ter o dinheiro para um bilhete. De resto tudo podia acontecer sendo a fauna dos espectadores marcada pelas bandas que actuavam, desde psicadélicos a punks, skins a hard rock, passando por surrealistas, metálicos e góticos.
Durante toda a década de 80 o RRv cumpriu a sua missão de serviço público até que entrou em modo decadente e acabou por fechar portas já no início dos anos 90. Isolado do centro da cidade foi perdendo espaço para o Bairro Alto e a Avenida 24 de Julho. Por outro lado muitas das bandas que pisaram o seu palco em noites de enorme magia acabaram por passar a palcos maiores e a editoras multinacionais.
Estreado em sinal aberto no mês de Fevereiro, A REVOLUÇÃO DO ROCK RENDEZ VOUS é não só um excelente documentário televisivo como um elemento histórico fundamental que complementa o tempo e a geração que foi jovem entre uma revolução política e a entrada na União Europeia. Aguardemos para breve a edição do respectivo DVD. Um excelente momento de serviço público.

Artur 



quinta-feira, 19 de março de 2015

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Lou Reed - Berlin (1973)


Por
                               berlin


No melhor dos mundos possíveis, Lou Reed teria morrido em 1973, vítima de uma overdose redentora, poupando ao mundo os discos menores que aconteceram depois. Ficaria então para a posteridade apenas o ouro da sua discografia. De 1967 a 1970, enquanto principal songwriter dos Velvet Underground, Lou fez quatro discos visionários que de uma só assentada inventaram o indie e espezinharam a ingenuidade hippie, antecipando o espírito do tempo cínico e pessimista que dominou os anos 70. No início de 72, no seu disco de estreia a solo, houve um pequeno passo em falso mas ainda no mesmo ano Lou emendou a mão com o génio glam de Transformer. E, por fim, assinou Berlin, na altura incompreendido, mas hoje considerado por muitos como a sua obra-prima.
Lou Reed foi o primeiro a casar o rock’n’roll com a low-life citadina, povoando as suas canções com dealers, junkies, prostitutas e travestis, personagens à deriva no lado errado da noite. Mas se nos discos dos Velvet e em Transformer o travo amargo da decadência tem sempre como contrapeso algum charme e humor warholianos, em Berlin Lou despe o submundo de todo o seu falso glamour, mostrando-nos tal como ele verdadeiramente é: amoral, desolador, filha da puta. Para reforçar o desencanto das letras, a música é também ela gélida e sombria, absolutamente nenhum hit para passar na rádio. Os accionistas da RCA Records começaram logo a atirar-se das janelas.
Se Transformer foi aclamado – pelo público e pela crítica – como um grande disco, e o single “Walk On the Wild Side” erguido alto como uma das grandes bandeiras do glam, saciando por fim o seu ego sedento de aprovação, porque é que Lou no seu álbum seguinte se demarca por completo da fórmula que lhe garantira finalmente o sucesso? A resposta é tão simples como humana: uns ciúmes danados de Bowie. As intenções do senhor Stardust eram boas: homenagear o seu mestre, co-produzindo Transformer, salvando a sua carreira. O pior é que os media inverteram por completo a ordem dos factores, vendendo Lou Reed como um mero apêndice de Bowie. Lou era um tipo orgulhoso. Fora ele o primeiro a rebelar-se contra a própria contracultura. Fora ele o primeiro a demarcar-se da ilusão naif da “paz e amor”. Fora ele o primeiro a trazer os tabus da homossexualidade e da ambiguidade do género para o rock’n’roll. Nem pensar ficar na sombra de um mero discípulo, que lhe roubara tanta coisa, por mais genial que tivesse sido a sua reciclagem.
Berlin é um álbum-conceptual que conta a ascensão e queda de Jim e Caroline, dois junkies condenados que procuram a salvação no seu amor mas só encontram a perdição. Tudo se passa em Berlim, a cidade-dividida, o que não acontece por acaso. O infame muro de betão como pano de fundo é uma metáfora de um casal também ele dividido.
A história começa na noite em que os dois se conhecem num bar na cosmopolita Berlim Ocidental. Tudo parece correr bem: as guitarras de fundo, o cigarro na mão, o copo de gin na outra, “Honey, it was Paradise”. Mas o blues melancólico ao piano de “Berlin” contradiz as palavras, prenunciando a tragédia. Está dado o tom sombrio que atravessará todo o disco.
A primeira parte (o lado A do velho vinil) é dura mas ainda assim digerível. Jim queixa-se de Caroline o desvalorizar enquanto homem. Mas Caroline tem as suas razões: é ela que tem de vender o seu corpo nas sórdidas ruas de Berlin para pagar o consumo de ambos. A música é por enquanto expansiva, com muita guitarra eléctrica, bateria e orquestrações (pequeno grande pormenor: as inventivas e irrequietas linhas de baixo são tocadas pelo gigante Jack Bruce dos Cream).
No lado B, o tom da música muda – mais acústico, mais contido, mais sombrio –, como quem nos avisa que tudo está prestes a desmoronar-se. Jim bate-lhe. Caroline levanta-se, disfarça as nódoas negras com muita maquilhagem, esconde a dor injectando mais speed. Não adianta: na canção seguinte retiram-lhe os filhos. Lou e o produtor Bob Ezrin fazem agora questão de esticar a corda ao máximo, com o objectivo deliberado de nos fazer sofrer: ouvimos o choro desesperado das crianças, que gritam pela mãe enquanto são arrancadas dos seus braços. É neste momento que nos surge o dilema: continuamos a sujeitar-nos a esta sádica tortura emocional ou devolvemos o disco, trocando-o de imediato por uma colectânea dos Bee Gees?
Os mais rijos prosseguem a audição. Erro crasso: na faixa a seguir, Jim conta-nos que Caroline se matou cortando os pulsos e confessa-nos um certo alívio por as coisas terem acabado daquela maneira. No último tema, “Sad Song”, regressam as orquestrações épicas para aliviar um pouco a tensão acumulada. Jim recorda-a, folheando um álbum de fotografias, mas o álbum acaba da forma mais cínica possível: “vou parar de desperdiçar o meu tempo, qualquer outro teria partido ambos os seus braços”.
O que seria um vulgar melodrama de chorar as pedras da calçada é salvo por dois ingredientes: a espessura psicológica das personagens e uma sensação de frio que percorre o disco e a nossa espinha. A voz de Reed é sempre gélida, contida, inexpressiva, arrefecendo a novela de cordel para níveis suportáveis. Esqueçam as barulhentas ventoinhas; quando não conseguirem dormir nas noites tórridas de verão, ponham Berlin a rodar.
O que mais perturba nesta narrativa é justamente a frieza absoluta de Jim, tão vazio que já não é capaz de sentir qualquer emoção. E não falo só da ausência de empatia pelo sofrimento dos outros; falo também da indiferença em relação à sua própria dor. Em “Men Of Good Fortune”, Jim expressa bem o seu niilismo: “o filho do rico espera que o pai morra/ o pobre apenas bebe e chora / e eu, nada disso me interessa”. De onde veio todo este desencanto?
Quando gravou Berlin, Lou tinha recaído outra vez na heroína e nos speeds, afundando o seu casamento pelo caminho. Matéria-prima autobiográfica mais fresquinha seria difícil. Mas podemos ir ainda mais longe no nosso exercício de psicanálise selvagem. A sua adolescência nos conservadores anos 50 não fora fácil. Desde cedo, Lou escandalizava os pais com os seus gestos efeminados e as suas tendências bissexuais. O austero senhor Reed não fez mais nada: internou o pobre do miúdo num hospital psiquiátrico para “tratar” a sua homossexualidade. O “tratamento” consistiu nos bárbaros electrochoques, uma experiência traumática que Lou nunca conseguiu ultrapassar. Nunca perdoou os seus pais pela selvajaria e nunca mais confiou inteiramente em ninguém. O seu mau feitio épico encontra aqui uma possível explicação.
O corolário é inevitável. Lou Reed seria Jim se não fosse salvo pelo rock’n’roll. Compreendemos melhor agora as suas célebres palavras: “Sou judeu mas o meu deus é o rock’n’roll. É um poder obscuro que pode mudar a tua vida.” Não mudou também a nossa?

quarta-feira, 18 de março de 2015

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GRAND BUDAPEST HOTEL



R)     Wes Anderson

Reino Unido/ Alemanha 2014



Um hotel é antes de mais um espaço de passagem, uma alternativa para quem está longe de casa e se quer deslocar a paragens distantes. Lugar de cruzamento de várias actividades, profissões e pessoas, ao fim de um tempo o simples espaço de pernoita transforma-se num armazém de histórias para contar. 
   No final dos anos sessenta um escritor decide ficar alojado no decadente Grand Hotel Budapest situado nas montanhas da ficcional república de Zubrowka. O seu dono, Zero Moustafa apesar de pouco ou nenhum lucro retirar dali, insiste em mantê-lo em funcionamento. Uma noite em que ambos decidem jantar juntos, o proprietário resolve contar a história daquele edifício desde o dia em que começou a trabalhar nele como paquete no longínquo ano de 1932. Há então tempo para recordar os tempos áureos do Grand Hotel Budapest, bem como do seu lendário porteiro, o senhor Gustave H, uma herança, um quadro roubado e mais uma série de encontros e desencontros que vêm terminar na propriedade de Moustafa.
Baseado em dois livros do autor austríaco Stefan Zweig ( “Coração Impaciente” e “Êxtase da Transformação”) o filme assenta essencialmente na fórmula da comédia romântica inventando um cenário típico da Europa Central repleto de montanhas e neve decorrendo a sua acção entre os anos trinta e os anos sessenta do século XX. O jovem Moustafa cedo se torna o companheiro mais chegado de Gustave H, o porteiro do hotel cujo lema é nunca deixar nenhum desejo de nenhum cliente por satisfazer, especialmente se esse cliente for uma senhora idosa e rica. Por causa de uma dessas senhoras e do testamento após a sua morte, Moustafa e Gustave vão-se ver envolvidos numa trama que vai desde a suspeição de assassinato pelo porteiro até ao roubo de um quadro da renascença que é avaliado em milhões.
Ao longo desta imensa aventura a história vai desenhando círculos sobre si própria até terminar na herança final de Moustafa, ou seja, o próprio hotel.
Sem ser uma grande narrativa o filme vale pelos cenários fantásticos, quase a roçar o universo da banda desenhada. Premiado com o Urso de Prata em Berlim e com os oscares para o Melhor figurino, Melhor Maquilhagem, Direcção de Arte e Banda Sonora, THE GRAND BUDAPEST HOTEL acaba por nos cativar na medida em que, ao propor-nos uma fantasia não nos promete nada a não ser uma hora e meia de aventura e distracção.


Artur