No melhor dos mundos possíveis, Lou Reed teria morrido em 1973, vítima de uma overdose redentora, poupando ao mundo os discos menores que aconteceram depois. Ficaria então para a posteridade apenas o ouro da sua discografia. De 1967 a 1970, enquanto principal songwriter dos Velvet Underground, Lou fez quatro discos visionários que de uma só assentada inventaram o indie e espezinharam a ingenuidade hippie, antecipando o espírito do tempo cínico e pessimista que dominou os anos 70. No início de 72, no seu disco de estreia a solo, houve um pequeno passo em falso mas ainda no mesmo ano Lou emendou a mão com o génio glam de Transformer. E, por fim, assinou Berlin, na altura incompreendido, mas hoje considerado por muitos como a sua obra-prima.
Lou Reed foi o primeiro a casar o rock’n’roll com a low-life citadina, povoando as suas canções com dealers, junkies, prostitutas e travestis, personagens à deriva no lado errado da noite. Mas se nos discos dos Velvet e em Transformer o travo amargo da decadência tem sempre como contrapeso algum charme e humor warholianos, em Berlin Lou despe o submundo de todo o seu falso glamour, mostrando-nos tal como ele verdadeiramente é: amoral, desolador, filha da puta. Para reforçar o desencanto das letras, a música é também ela gélida e sombria, absolutamente nenhum hit para passar na rádio. Os accionistas da RCA Records começaram logo a atirar-se das janelas.
Se Transformer foi aclamado – pelo público e pela crítica – como um grande disco, e o single “Walk On the Wild Side” erguido alto como uma das grandes bandeiras do glam, saciando por fim o seu ego sedento de aprovação, porque é que Lou no seu álbum seguinte se demarca por completo da fórmula que lhe garantira finalmente o sucesso? A resposta é tão simples como humana: uns ciúmes danados de Bowie. As intenções do senhor Stardust eram boas: homenagear o seu mestre, co-produzindo Transformer, salvando a sua carreira. O pior é que os media inverteram por completo a ordem dos factores, vendendo Lou Reed como um mero apêndice de Bowie. Lou era um tipo orgulhoso. Fora ele o primeiro a rebelar-se contra a própria contracultura. Fora ele o primeiro a demarcar-se da ilusão naif da “paz e amor”. Fora ele o primeiro a trazer os tabus da homossexualidade e da ambiguidade do género para o rock’n’roll. Nem pensar ficar na sombra de um mero discípulo, que lhe roubara tanta coisa, por mais genial que tivesse sido a sua reciclagem.
Berlin é um álbum-conceptual que conta a ascensão e queda de Jim e Caroline, dois junkies condenados que procuram a salvação no seu amor mas só encontram a perdição. Tudo se passa em Berlim, a cidade-dividida, o que não acontece por acaso. O infame muro de betão como pano de fundo é uma metáfora de um casal também ele dividido.
A história começa na noite em que os dois se conhecem num bar na cosmopolita Berlim Ocidental. Tudo parece correr bem: as guitarras de fundo, o cigarro na mão, o copo de gin na outra, “Honey, it was Paradise”. Mas o blues melancólico ao piano de “Berlin” contradiz as palavras, prenunciando a tragédia. Está dado o tom sombrio que atravessará todo o disco.
A primeira parte (o lado A do velho vinil) é dura mas ainda assim digerível. Jim queixa-se de Caroline o desvalorizar enquanto homem. Mas Caroline tem as suas razões: é ela que tem de vender o seu corpo nas sórdidas ruas de Berlin para pagar o consumo de ambos. A música é por enquanto expansiva, com muita guitarra eléctrica, bateria e orquestrações (pequeno grande pormenor: as inventivas e irrequietas linhas de baixo são tocadas pelo gigante Jack Bruce dos Cream).
No lado B, o tom da música muda – mais acústico, mais contido, mais sombrio –, como quem nos avisa que tudo está prestes a desmoronar-se. Jim bate-lhe. Caroline levanta-se, disfarça as nódoas negras com muita maquilhagem, esconde a dor injectando mais speed. Não adianta: na canção seguinte retiram-lhe os filhos. Lou e o produtor Bob Ezrin fazem agora questão de esticar a corda ao máximo, com o objectivo deliberado de nos fazer sofrer: ouvimos o choro desesperado das crianças, que gritam pela mãe enquanto são arrancadas dos seus braços. É neste momento que nos surge o dilema: continuamos a sujeitar-nos a esta sádica tortura emocional ou devolvemos o disco, trocando-o de imediato por uma colectânea dos Bee Gees?
Os mais rijos prosseguem a audição. Erro crasso: na faixa a seguir, Jim conta-nos que Caroline se matou cortando os pulsos e confessa-nos um certo alívio por as coisas terem acabado daquela maneira. No último tema, “Sad Song”, regressam as orquestrações épicas para aliviar um pouco a tensão acumulada. Jim recorda-a, folheando um álbum de fotografias, mas o álbum acaba da forma mais cínica possível: “vou parar de desperdiçar o meu tempo, qualquer outro teria partido ambos os seus braços”.
O que seria um vulgar melodrama de chorar as pedras da calçada é salvo por dois ingredientes: a espessura psicológica das personagens e uma sensação de frio que percorre o disco e a nossa espinha. A voz de Reed é sempre gélida, contida, inexpressiva, arrefecendo a novela de cordel para níveis suportáveis. Esqueçam as barulhentas ventoinhas; quando não conseguirem dormir nas noites tórridas de verão, ponham Berlin a rodar.
O que mais perturba nesta narrativa é justamente a frieza absoluta de Jim, tão vazio que já não é capaz de sentir qualquer emoção. E não falo só da ausência de empatia pelo sofrimento dos outros; falo também da indiferença em relação à sua própria dor. Em “Men Of Good Fortune”, Jim expressa bem o seu niilismo: “o filho do rico espera que o pai morra/ o pobre apenas bebe e chora / e eu, nada disso me interessa”. De onde veio todo este desencanto?
Quando gravou Berlin, Lou tinha recaído outra vez na heroína e nos speeds, afundando o seu casamento pelo caminho. Matéria-prima autobiográfica mais fresquinha seria difícil. Mas podemos ir ainda mais longe no nosso exercício de psicanálise selvagem. A sua adolescência nos conservadores anos 50 não fora fácil. Desde cedo, Lou escandalizava os pais com os seus gestos efeminados e as suas tendências bissexuais. O austero senhor Reed não fez mais nada: internou o pobre do miúdo num hospital psiquiátrico para “tratar” a sua homossexualidade. O “tratamento” consistiu nos bárbaros electrochoques, uma experiência traumática que Lou nunca conseguiu ultrapassar. Nunca perdoou os seus pais pela selvajaria e nunca mais confiou inteiramente em ninguém. O seu mau feitio épico encontra aqui uma possível explicação.
O corolário é inevitável. Lou Reed seria Jim se não fosse salvo pelo rock’n’roll. Compreendemos melhor agora as suas célebres palavras: “Sou judeu mas o meu deus é o rock’n’roll. É um poder obscuro que pode mudar a tua vida.” Não mudou também a nossa?
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