quinta-feira, 19 de março de 2015

Lou Reed - Berlin (1973)


Por
                               berlin


No melhor dos mundos possíveis, Lou Reed teria morrido em 1973, vítima de uma overdose redentora, poupando ao mundo os discos menores que aconteceram depois. Ficaria então para a posteridade apenas o ouro da sua discografia. De 1967 a 1970, enquanto principal songwriter dos Velvet Underground, Lou fez quatro discos visionários que de uma só assentada inventaram o indie e espezinharam a ingenuidade hippie, antecipando o espírito do tempo cínico e pessimista que dominou os anos 70. No início de 72, no seu disco de estreia a solo, houve um pequeno passo em falso mas ainda no mesmo ano Lou emendou a mão com o génio glam de Transformer. E, por fim, assinou Berlin, na altura incompreendido, mas hoje considerado por muitos como a sua obra-prima.
Lou Reed foi o primeiro a casar o rock’n’roll com a low-life citadina, povoando as suas canções com dealers, junkies, prostitutas e travestis, personagens à deriva no lado errado da noite. Mas se nos discos dos Velvet e em Transformer o travo amargo da decadência tem sempre como contrapeso algum charme e humor warholianos, em Berlin Lou despe o submundo de todo o seu falso glamour, mostrando-nos tal como ele verdadeiramente é: amoral, desolador, filha da puta. Para reforçar o desencanto das letras, a música é também ela gélida e sombria, absolutamente nenhum hit para passar na rádio. Os accionistas da RCA Records começaram logo a atirar-se das janelas.
Se Transformer foi aclamado – pelo público e pela crítica – como um grande disco, e o single “Walk On the Wild Side” erguido alto como uma das grandes bandeiras do glam, saciando por fim o seu ego sedento de aprovação, porque é que Lou no seu álbum seguinte se demarca por completo da fórmula que lhe garantira finalmente o sucesso? A resposta é tão simples como humana: uns ciúmes danados de Bowie. As intenções do senhor Stardust eram boas: homenagear o seu mestre, co-produzindo Transformer, salvando a sua carreira. O pior é que os media inverteram por completo a ordem dos factores, vendendo Lou Reed como um mero apêndice de Bowie. Lou era um tipo orgulhoso. Fora ele o primeiro a rebelar-se contra a própria contracultura. Fora ele o primeiro a demarcar-se da ilusão naif da “paz e amor”. Fora ele o primeiro a trazer os tabus da homossexualidade e da ambiguidade do género para o rock’n’roll. Nem pensar ficar na sombra de um mero discípulo, que lhe roubara tanta coisa, por mais genial que tivesse sido a sua reciclagem.
Berlin é um álbum-conceptual que conta a ascensão e queda de Jim e Caroline, dois junkies condenados que procuram a salvação no seu amor mas só encontram a perdição. Tudo se passa em Berlim, a cidade-dividida, o que não acontece por acaso. O infame muro de betão como pano de fundo é uma metáfora de um casal também ele dividido.
A história começa na noite em que os dois se conhecem num bar na cosmopolita Berlim Ocidental. Tudo parece correr bem: as guitarras de fundo, o cigarro na mão, o copo de gin na outra, “Honey, it was Paradise”. Mas o blues melancólico ao piano de “Berlin” contradiz as palavras, prenunciando a tragédia. Está dado o tom sombrio que atravessará todo o disco.
A primeira parte (o lado A do velho vinil) é dura mas ainda assim digerível. Jim queixa-se de Caroline o desvalorizar enquanto homem. Mas Caroline tem as suas razões: é ela que tem de vender o seu corpo nas sórdidas ruas de Berlin para pagar o consumo de ambos. A música é por enquanto expansiva, com muita guitarra eléctrica, bateria e orquestrações (pequeno grande pormenor: as inventivas e irrequietas linhas de baixo são tocadas pelo gigante Jack Bruce dos Cream).
No lado B, o tom da música muda – mais acústico, mais contido, mais sombrio –, como quem nos avisa que tudo está prestes a desmoronar-se. Jim bate-lhe. Caroline levanta-se, disfarça as nódoas negras com muita maquilhagem, esconde a dor injectando mais speed. Não adianta: na canção seguinte retiram-lhe os filhos. Lou e o produtor Bob Ezrin fazem agora questão de esticar a corda ao máximo, com o objectivo deliberado de nos fazer sofrer: ouvimos o choro desesperado das crianças, que gritam pela mãe enquanto são arrancadas dos seus braços. É neste momento que nos surge o dilema: continuamos a sujeitar-nos a esta sádica tortura emocional ou devolvemos o disco, trocando-o de imediato por uma colectânea dos Bee Gees?
Os mais rijos prosseguem a audição. Erro crasso: na faixa a seguir, Jim conta-nos que Caroline se matou cortando os pulsos e confessa-nos um certo alívio por as coisas terem acabado daquela maneira. No último tema, “Sad Song”, regressam as orquestrações épicas para aliviar um pouco a tensão acumulada. Jim recorda-a, folheando um álbum de fotografias, mas o álbum acaba da forma mais cínica possível: “vou parar de desperdiçar o meu tempo, qualquer outro teria partido ambos os seus braços”.
O que seria um vulgar melodrama de chorar as pedras da calçada é salvo por dois ingredientes: a espessura psicológica das personagens e uma sensação de frio que percorre o disco e a nossa espinha. A voz de Reed é sempre gélida, contida, inexpressiva, arrefecendo a novela de cordel para níveis suportáveis. Esqueçam as barulhentas ventoinhas; quando não conseguirem dormir nas noites tórridas de verão, ponham Berlin a rodar.
O que mais perturba nesta narrativa é justamente a frieza absoluta de Jim, tão vazio que já não é capaz de sentir qualquer emoção. E não falo só da ausência de empatia pelo sofrimento dos outros; falo também da indiferença em relação à sua própria dor. Em “Men Of Good Fortune”, Jim expressa bem o seu niilismo: “o filho do rico espera que o pai morra/ o pobre apenas bebe e chora / e eu, nada disso me interessa”. De onde veio todo este desencanto?
Quando gravou Berlin, Lou tinha recaído outra vez na heroína e nos speeds, afundando o seu casamento pelo caminho. Matéria-prima autobiográfica mais fresquinha seria difícil. Mas podemos ir ainda mais longe no nosso exercício de psicanálise selvagem. A sua adolescência nos conservadores anos 50 não fora fácil. Desde cedo, Lou escandalizava os pais com os seus gestos efeminados e as suas tendências bissexuais. O austero senhor Reed não fez mais nada: internou o pobre do miúdo num hospital psiquiátrico para “tratar” a sua homossexualidade. O “tratamento” consistiu nos bárbaros electrochoques, uma experiência traumática que Lou nunca conseguiu ultrapassar. Nunca perdoou os seus pais pela selvajaria e nunca mais confiou inteiramente em ninguém. O seu mau feitio épico encontra aqui uma possível explicação.
O corolário é inevitável. Lou Reed seria Jim se não fosse salvo pelo rock’n’roll. Compreendemos melhor agora as suas célebres palavras: “Sou judeu mas o meu deus é o rock’n’roll. É um poder obscuro que pode mudar a tua vida.” Não mudou também a nossa?

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