(Edição DVD Público)
Nem filme-soma nem obra testamentária, "Filme Socialismo", será antes um diário de bordo, tanto mais que três quartos do filme se desenrolam num cruzeiro. Qualquer cinéfilo evocará certamente "Um Filme Falado" (Manoel de Oliveira, 2003), ambos os filmes percorrendo o Mediterrâneo por razões comuns de referências à cultura original da nossa Europa ocidental (mitologia, línguas, democracia, artes...). No entanto, se o cineasta português insiste nas escalas em que a câmara segue sempre a heroína (simultaneamente mãe e professora de História), Godard não as evoca senão em duas ou três imagens para cada uma. Estamos assim no coração do estilo de Godard desde "Histoire(s) du Cinéma" : beber, nos fundos comuns da História, ideias e formas que o tocam pessoalmente a fim de criar associações muito subjectivas, parcelares, voluntariamente insolentes (reencontramos o seu sentido da fórmula brilhante, em vez de construir um discurso geral, teórico, filosófico ou militante.
Por outro lado, se "Um Filme Falado" terminava de modo radical ( o atentado terrorista), o tom de "Filme Socialismo é antes de decepção amarga, prestes a evocar a contradição, mas renunciando à virulência de outros tempos. Um tom amuado ? Sem dúvida um pouco, oposto de qualquer modo à revolta cínica de Oliveira.
Esta nova nave dos loucos para pessoas da terceira idade que dançam e se abismam num barulho infernal em todos os pisos (mesmo aí, num canto, onde se celebra a missa) é filmada da pior forma possível. Tal não resulta de uma vontade de realismo já que, na realidade, os néons coloridos não brilham como brilham os do filme e o vento não faz a chiadeira insuportável que produz o microfone mal protegido. Trata-se então da escuta e do olhar do pessimismo irredutível do autor que já não suporta a fealdade do mundo. Apenas o mar, o dia, o céu e a noite conservam um resíduo de beleza, e mesmo assim... Tudo se torna turismo de massas, inclusivamente as escadarias de Odessa.
Esta Europa é vista como uma gerontocracia decadadente. Muito poucos jovens, com efeito, somente uma africana, que repete "pobre Europa" e uma russa que não quer morrer sem tornar a ver a "Europa feliz". Maioritariamente alemães (ou judeus), os velhos são maquinadores sinistros ou ficam encerrados nas suas recordações de guerra e de sombrios negócios político-financeiros que já não interessam a ninguém, nem na sala nem no filme (o ouro do Komintern). Imagens, sons, palavras, citações, depois algumas pinturas e extractos de filmes são misturados a fim de apreender o real na sua totalidade, ou seja natural, mas já representada ou pensada. O todo é cortado/colado como as páginas de um jornal, uma bricolage de quatro anos de observações e de leituras diversas, mas todas centradas na Europa doente, aquela das nossas humanidades (a palavra regressa diversas vezes) pouco a pouco ocultadas pela finança internacional e pela dependência dos EUA. No filme, já não se põe a questão dos canalhas (que, aparentemente, serão hoje em dia sinceros) mas do socialismo. Com uma bela desenvoltura em face da dramaturgia, a três quartos do filme, Godard passa da esfera pública (a ideia da Europa e a multidão dos felizes reformados) à esfera privada (a família) acompanhando a equipa televisiva da FR3 Régions surgida de parte nenhuma (sobretudo não do argumento da primeira parte) numa estação de serviço improvável, propondo combustível biológico de origem vegetal que atrai um burro e um lama mas poucas viaturas. O garagista sofre de falta de compreensão entre gerações e os seus filhos decidem apresentar-se a eleições apenas com os nomes próprios para não terem que defender o nome de família ! A ficção documental caricatural no navio vira-se assim para a fábula burlesca e Godard abandona completamente o espírito sério para navegar ironicamente nos problemas do tempo. O seu ensaio já não é o panfleto de um sociólogo empenhado, tornando-se a reflexão de um moralista (mesmo assim cheio de facécia e aborrecimento), troçando de alguns traços dos costumes de uma época que ele sente já não ser a sua. Continua, no entanto, a estar nela interessado, como um observador longínquo que escolhe - desta vez, ou para sempre ? - não a julgar demasiado severamente. Será a sabedoria da velhice dos grandes artistas ? Seja como for, penso que "Filme Socialismo" se torna mais coerente quando visto em conjunto com "Adeus à Linguagem" (de que já falei aqui), sendo ambas as obras representativas e emblemáticas da liberdade total que Godard usufrui neste momento do seu processo criativo e que coalescem numa mesma vontade de reflectir o mundo ( o seu mundo) a partir das suas fundações. Apenas mais dois comentários sobre duas sequências do filme que me merecem alguns reparos:
numa delas Godard parece sugerir uma hipótese de paz para o Médio Oriente num belo plano de duas muito jovens trapezistas cruzando os seus saltos sobre um fundo de mar sonorizado pelas vozes das raparigas, uma cantando o Talmude e a outra o Corão. Bonito, efectivamente, mas será esse o sentido da sequência ? Mesmo Agnès Varda, a quem Godard tomou de empréstimo imagens (mas não os sons) não teria pensado em tal. Pelo contrário, Varda teria apreciado os dois gatos que parecem dialogar com vivacidade num video destinado a fazer compreender aos humanos os seus miares. Lógico, uma vez que a Godard não falta humor e quis sublinhar o seu interesse - um pouco zombeteiro - pela ecologia e pelos nossos irmãos animais : é o mundo dos homens como pode ser visto por um peixe no fundo do mar.
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