(à memória de Primo Levi )
Vim para aqui em pequeno com os
meus pais e os meus irmãos. Deram-nos uma extensão de terra onde poderíamos
ficar a viver e uma linha, um perímetro que não podíamos ultrapassar. Todos os
anos aparece cá uma delegação do Presidente, ou chefe da tribo dos brancos.
Sentam-se numa mesa e registam quantos somos, quantos morreram e apontam tudo
nuns papéis. Antes de se irem embora garantem que não voltarão a encurtar esta
extensão de terra onde nos deixam habitar. E todos os anos nos retiram um bocado
mais. Tenho filhos no colo e adormeço à noite a ouvir as barrigas da fome, os
cânticos dos guerreiros embriagados, os gemidos dos doentes. Em cada ano que
passa aumenta um ano de fome e miséria em nós. Fora da reserva os colonos e os
animais embriagam-se da vida que desaparece do lado de cá. Os mais velhos
envergonharam-se com a derrota e assinaram a capitulação. Nem querem ouvir
falar em guerra. Mas se rapidamente não se começar outra guerra vamos
desaparecer todos até não sermos nenhum e a reserva não passar de um terreno
vazio varrido pelo vento. Não sei se consigo continuar a ver o meu povo a
morrer um pouco todos os dias sem fazer qualquer coisa. Antes morrer defendendo
a vida do que viver na antecâmara da morte.
O barco é uma canoa gigante onde
nos amontoaram uns por cima dos outros em prateleiras de madeira enquanto
atravessamos o grande lago. Os cheiros misturaram-se num só, um permanente
sentido de morte que nos vai abafando a raiva. Ás vezes vêm-nos buscar. Os
insurgentes ao princípio, depois os doentes e por fim todos os mais fracos. Já
não lhes servem para nada e aliviam o peso na canoa gigante. Sabemos, aqueles
que tiverem a sorte de chegar ao fim desta viagem, que seremos vendidos, que
nos levarão para outros lugares como escravos. Mal me consigo mexer nesta
prisão de madeira entalado entre outros dois corpos que respiram envergonhados.
Ontem deitaram mais um borda fora. Ouvi
o corpo dele a bater na água. Os gritos terminaram no mesmo instante. Depois, o
silêncio. Aquele nunca mais volta a sofrer. Estranhamente começo a desconfiar
que teve muito mais sorte do que eu.
Ninguém consegue explicar bem,
muito menos compreender, a razão de tanto ódio. Começaram por nos alojar a
todos no gueto, pouco depois de nos encerrarem as lojas, queimar os livros,
obrigar a andar identificados com uma estrela de David na roupa. Sucederam-se
as rusgas, as prisões, a algazarra e todas as línguas do ódio nos lamberam não
escapando ninguém. Espancam velhos, matam crianças. Um grupo de homens não
aceitou esta matança sem sentido e pegou em armas contra os alemães. A
ferocidade deles aumentou em sucessivas vagas cada vez maiores de soldados e
explosões. Já não há grandes dúvidas. O desequilíbrio de forças é absurdo.
Temos que sair daqui de Varsóvia. Fugir para outro lugar e continuar a
resistir. Porquê? Se calhar por estarmos vivos e querer continuar assim. Se
calhar porque o que todos os homens desejam no fundo é viver em paz.
Principalmente porque não há razão nenhuma para uma população inteira ser
exterminada só porque uma outra parte dessa população assim o determinou. Um
camarada de armas despede-se do pai na noite antes da partida. O velho, um
rabi, não vê com bons olhos a opção do filho, não aceita a violência por mais
que veja o seu povo a sucumbir às mãos dela. O filho pergunta-lhe: e quando
estivermos todos mortos? Fará sentido alguma coisa?
Se não for eu por mim, quem
será por mim?
E mesmo quando eu pensar em
mim, que sou eu?
E se não agora, quando?
Artur
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