quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

UMA CEIA DE FANTASMAS



Uma noite de Natal pode ter mil e uma aplicações, desde uma simples mudança no estado de espírito até servir de espaço para um romance inteiro. A noite de Natal é sempre essa mistura de recordações e de personagens que fomos e somos e ainda a tímida chama de um futuro que se deseja de esperança. No tempo que vivemos assemelha-se a uma ceia de fantasmas ou de formas que desaparecem um pouco todos os dias. A mesa encolhe do lado da realidade viva e alarga-se na parte das memórias, do grupo dos que já marcharam. Tudo isso faz sentido, sempre fez. Chama-se “a ordem natural das coisas” e rapidamente percebemos isso a partir da primeira morte. O que não faz sentido nenhum é o desaparecer da sala de jantar, da casa, da caixa de memórias, o que não faz sentido é desaparecer a dinâmica da renovação, pura e simplesmente ver extinta essa “ordem natural das coisas”. O que não faz sentido é ver morrer Portugal. Viver num lugar onde os velhos escolhem todos os dias se hão-de comer ou comprar remédios, os jovens são obrigados a partir para fora se quiserem ter direito a uma vida, e em todos é construído um sentimento de culpa por simplesmente querer viver, como num sofisticado campo de concentração, numa reserva sem recursos. Viver num lugar sem identidade, sem memória e sem língua materna é viver em lugar nenhum, é não ter nenhum canto a que se possa chamar seu. Por isso esta noite é maior o espaço para os fantasmas se sentarem à mesa do que o da realidade viva. Em breve toda a mesa será ocupada na exclusividade por fantasmas. Em nome das razões mais estúpidas, mais mentecaptas e mais esquizofrénicas que podemos imaginar anula-se uma cultura, extermina-se um povo, encerra-se um país. Em nome da “competitividade” funda-se uma colónia de escravos, em nome do “crescimento” extermina-se um terço da população, em nome dos “orçamentos equilibrados” coloca-se uma pedra em cima de uma nação. Quando toda a mesa estiver ocupada por fantasmas espero não estar cá para ver. Custa-me muito fazer parte do ultimo capítulo da longa história da realidade onde nasci. E custa-me ainda mais por saber que o meu esforço foi inútil, incompleto, não serviu para nada.
Um bando de psicopatas continua a decidir o destino de milhões. Umas vezes transformando esse destino em destino nenhum, outras dando a escolher em que árvore é que o enforcado quer a corda.
Mas quem não se defende, quem não reage, quem nada faz a não ser ter medo não merece o chão que pisa nem o ar que respira. A extinção é o seu destino. Assim se cumpre a “ordem natural das coisas”. Tenham um Feliz Natal.


Artur

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