Em Agosto a cidade descontrai-se
num adormecimento confortável e apaziguador. É possível circular por ruas
desertas e respirar como se a solidão nos envolvesse num abraço morno
aconchegante. De dia ou de noite sobram os passeios, as árvores e a paisagem
urbana em geral despida de pressas, frenesins, obrigações de ir daqui para ali.
Tal como na abertura de um filme de Moretti, uma Vespa elegante e pachorrenta
percorre as artérias romanas num fim-de-semana de Verão permitindo uma melhor visualização
de paisagens e locais. Há tempo para parar, há tempo para observar melhor,
encontrar pormenores ocultos, há tempo, enfim. No café do bairro dois ou três
solitários partilham o espaço agora enorme entre pires de tremoços e imperiais
cansadas que se vão beberricando com o passar das horas. Ninguém espera nem
ninguém anseia por coisa nenhuma. Está-se para ali como sempre se deveria
estar. Olhar perdido em lado nenhum, uma televisão esquecida sem som, ciclistas
a pedalar lá dentro à volta de qualquer coisa. De França, de Portugal, de uma
tira interminável de alcatrão. Às vezes campeonatos de atletismo em cidades que
ficam longe, muito fora do alcance do calor que se faz sentir aqui. Um caderno
aberto com uma frase suspensa, uma sessão vespertina de cinema com mais uma ou
duas pessoas, mulheres de meia-idade a atrasar o almoço no café da Avenida de
radar ligado em redor procurando candidatos a uma tarde animada. Caderno a
vadiar nas mãos com a frase suspensa lá dentro. Os ciclistas na televisão, os saltadores
em altura, memórias de um tempo em que o almoço do café da Avenida era uma
aventura excitante em perspectiva, um filme de acção animado que nunca se
conseguia ver totalmente. Outro tempo a outra velocidade, memórias de calções e
cortes de cabelo marados, after shave roubado do armário da casa de banho. A
volta á França e um som a tocar, o último disco que não havia cá ainda.
Memórias, tempos passados que nos devolvem a credibilidade daquele tempo. Volto
para casa em passada lenta, acendo a televisão. De novo os ciclistas, os
campeonatos de atletismo, mudo de canal. Jazz numa cidade distante do leste da
Europa, sons de embalar por músicos de excepção, improvisos, jam sessions, um
som que ainda não havia na minha cabeça, a frase suspensa que me desafia do
alto da sua imprevisibilidade. Tranquilidade, silêncio, sou o único habitante
daqui desta chafarica, posso fazer o que quiser, até lembrar-me de tempos idos
para me certificar que sou real, que apesar de tudo até existo por aqui…às
vezes. Posso fazer tudo o que eu quiser mesmo que não me apeteça fazer nada. A
minha cidade é longe do mundo, longe de corridas de bicicletas, campeonatos de
atletismo e festivais de jazz. A minha cidade não é deste mundo, está apenas
ligada a ele através de uma televisão que tanto me dá o tempo de agora como o
tempo que já foi há muito tempo. Está apenas ligada por uma frase suspensa que
me desafia sem grande convicção porque lá no fundo sabe que a vou agarrar pela
cabeça, torcer-lhe a vaidade e pô-la a cuspir o que eu quiser. Porque estamos
em Agosto na Grande Cidade e sobram os passeios e as árvores, sobra a lentidão
dos meus passos, sobram as memórias, sobro-me eu deitado sobre um pires de
tremoços em frente a umas imperiais vagarosas, sobra-me o passado e o presente,
sobra-me o mundo que fica a duas galáxias daqui e que por mais que queira não
me consegue incomodar. Não há melhor mês para estar em Lisboa do que este de
Agosto.
Artur
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