Um raio de Sol oblíquo desenha no chão a grelha das frestas
do estore. Encostado a um cigarro tranquilo distraio-me com as argolas de fumo
que a boca vai expelindo em contracções mecânicas. A televisão desligada com o
sinal vermelho de presença, por cima a estante dos livros, soldados de chumbo
alinhados em parada dos tempos, bibelôs, alguns retratos. Mais a um canto a
mesa com as fotografias dos que já foram, o meu avô muito magro, a minha avó
com vinte e poucos anos, uma jovem linda vestida com um vestido leve em
paisagem campestre. O Sol que se vai deitando lentamente, a grelha que se
alarga até ser sombra, cada vez mais sombra, o cigarro a apagar-se ao fim da
tarde. Títulos e mais títulos de romances inventados a esta hora do dia,
Outonos preguiçosos, contemplativos, paisagens campestres inocentes, mulheres
jovens a preto e branco, homens magrinhos com chapéus de aba redonda, que
sorriem. Venerandos farfalhudos de suíças arrebitadas em uniformes de gala,
tias com penteados altaneiros e óculos de modelos estranhos parecidos com o
Batman. Eu todo nu sem dentes com um caracol em cima da testa e olhar
apreensivo (talvez frio), a minha irmã em pose assustada a protestar contra um
flash inesperado, o meu irmão sentado ao colo do Pai Natal a chorar baba e
ranho, os livros a cantar títulos outonais para uma plateia de soldados de
chumbo pouco participativa, a televisão em modo escuro, a tarde que vai
morrendo lentamente em esplendores de luz espalhados pelo tapete da sala. Um
dia tudo isto não vai passar de uma recordação, um dia eu não serei mais do que
uma recordação, talvez um jovem magrinho a segurar um peixe ridículo de panamá
na cabeça ao lado do meu tio, um caracol a sair do panamá, o meu tio de bigode,
a televisão muda. Um dia tudo isto não será mais do que…qualquer coisa.
Qualquer coisa entre a memória e o prazer, a meditação e o nada. Um dia tudo
isto será qualquer coisa, qualquer coisa como um filme guardado nos arquivos de
uma cinemateca qualquer, terá existência real mesmo que ninguém saiba que
existe. Estará enrolado numa caixa metálica circular e identificado com uma
etiqueta. Um título outonal, o filme de um gajo, a sala de um gajo, as
fotografias e os livros, enquanto o Sol se deita lentamente. Uma mulher nova a
preto e branco, um filósofo antigo sentado na estante com as pernas a abanar
- A continuidade? Uma chachada…
A despejar o cachimbo distraído sobre a cabeça dos soldados
de chumbo,
- A memória, a continuação, o presente…uma valente chachada.
o peixe ridículo a reclamar que quer voltar para casa, o
antepassado farfalhudo desconfiado a esticar o olhar sobre uma garrafa de
whisky, o meu tio sem bigode numa cama do hospital a arfar para uma máquina, um
soldado mais atrevido para o filósofo
- E se fosses cagar a puta da tua mãe ?
Um dia tudo será um nada que será qualquer coisa, qualquer
coisa que se apaga lentamente ao sabor do sono do Sol, como a sombra que vai
crescendo no tapete enquanto apaga os últimos raios de uma tarde de Outono.
Assim se apaga o cigarro, os livros, os soldados de chumbo, as fotografias dos
que já foram, as fotografias do que já fomos, as memórias. Assim se enrola um
filme antes de o acondicionar cuidadosamente numa lata circular, colocar uma
etiqueta de identidade e arrumar numa arrecadação de uma cinemateca qualquer,
esperando que um dia alguém o encontre numa tarde de Outono. Que alguém o
encontre e resolva pôr a tocar num ecran mudo por baixo de uma estante. Que
alguém acenda um cigarro e fique ali simplesmente a olhar, enquanto o Sol se vai
deitando devagar e a sombra cresce sobre a luz do tapete.
Artur
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