A noite vai escorrendo entre as sombras e as luzes da
cidade, arrepiada de frio, molhada nas poças que os carros vão espalhando ao
acaso. Um homem sentado no café olha lá para fora depois de um café duplo e um
folhado seco que lhe serviram de jantar. Agarra no telefone e ensaia uma
mensagem mas arrepende-se de imediato e volta a olhar através da vitrina. Uma
mulher arruma o pano da louça numa cozinha iluminada por uma luz fraca. O filho
saiu para a faculdade e a casa ficou vazia, silenciosa. Senta-se na sala
indiferente à televisão, pega num livro, lê duas frases e põe-no de lado. Um
sem abrigo procura um lugar seco e abrigado para poder passar a noite, levando
debaixo do braço um molho de cartões que lhe servirão de cama. Parece que pensa
por vezes, mas não pensa nada, não espera nada, caminha apenas em busca de um
lugar para passar a noite. O homem do café brinca distraído com o isqueiro,
puxa a gola do casaco para cima antes de enfrentar a rua. Outra mulher fixa-se
na internet, atenta a novidades, a frases novas que possa comentar.
Amanhã será…qualquer coisa. Qualquer coisa que se escapa
entre sombras e luzes de uma noite que amanhece. Amanhã será mais um dia a
caminho de lado nenhum. Os sonhos morreram espalhados no vazio pelas rodas da
vida de todos os dias. O sonhos foram ontem quando tudo era possível, na idade
em que era permitido sonhar. O homem do café, a mulher que acabou de arrumar a
cozinha, o sem abrigo, a mulher da internet, já todos foram rostos, já foram
corpos cheios de energia e esperança. Estiveram todos juntos numa noite como a
de hoje, indiferentes ao frio. Foram actores numa pequena peça teatral, num
pequeno filme onde se ouvia música que parecia vinda directamente do paraíso.
Foram amantes insaciáveis em noites sem cansaço, criadores de sonhos e de
esperança. Jantaram entusiasmados mal tendo tempo para se ouvir no meio da
algazarra de estudantes. Hoje limitam-se a observar a cidade com o olhar vazio,
esvaziados de ambições. Umas vezes por escolha própria, outras por escolha do
tempo, ou da sobrevivência. Caíram e levantaram-se muitas vezes, caíram e
levantaram-se vezes demais. Agora empurram os corpos em busca de uma noite, de
um sono redentor que os liberte desta cidade sem nome. Não esperam nada, não
querem nada, e por mais lágrimas que imaginem já não as conseguem produzir.
Esqueceram-se como era chorar. Esqueceram quase tudo. Agora vivem indiferentes,
empurrados pela lógica dos dias a caminho de nada.
A cidade vai escorrendo a noite por entre sombras e luzes
fugidias, permanente, indiferente, implacável. Os homens e as mulheres que nela
habitam vão-se arrastando a caminho de mais um dia. A cidade não lhes pertence.
Só a solidão é deles e as lágrimas que querem chorar, não choram porque se
esqueceram de como se faz.
Artur
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