“Procuro retratar o
que não deveria ser possível
como se fosse.
Ozu retrata o que
deveria ser possível
como se fosse.”
Kenji Mizoguchi
Considerado no seu país como o
mais japonês dos realizadores japoneses, cujos filmes só teriam interesse para
um auditório exclusivamente doméstico, Yasujiro Ozu (1903 – 1963) e a sua obra
foram um segredo bem guardado ao longo de muitos anos do passado século, tendo
alcançado o reconhecimento universal já após a sua morte. De facto, tendo como
tema central a família, e utilizando sempre o mesmo enquadramento sociológico,
a classe média, poderíamos facilmente atribuir-lhe de forma muito superficial a
categoria de “telenovela” da realidade nipónica. A simplicidade aparente dos
seus filmes transforma-se numa reflexão profunda acerca dos problemas de todos
os homens independentemente da sua cultura ou origem social. Os conflitos
internos de cada um, as relações familiares, a impossibilidade comunicacional,
a gestão da frustração, a separação e perda inevitáveis aquando das passagens
pelo matrimónio ou pela experiência da morte. Dramas vulgares de gente vulgar
sob um manto de aceitação contida e resignada, efeito muito criticado pela
geração de cineastas que se lhe segue.
Nos filmes de Ozu não há heróis
nem vilões, os sentimentos ilustrados são tudo menos grandiosos, extremos.
Todas as pessoas são pessoas comuns. Se bem que haja variações de acordo com as
suas condições económicas, as relações familiares e os seus dramas são
idênticos. Os seus mundos vagueiam em círculos concêntricos, toda a gente se
conhece e todos gostam de todos. Quem não pertence à família directa é vizinho,
colega da escola, camarada da guerra, professor, colega no trabalho.
Numa primeira fase (1927 – 33),
ainda no período do cinema mudo, Ozu irá realizar cerca de duas dezenas de
filmes que se dividem entre a comédia e o realismo social. Desta fase é de
destacar o seu primeiro êxito tanto comercial como a nível da crítica, falamos
de NASCI, MAS… (Umarete wa Mita Keredo) de 32, um filme que ilustra o tema
fundamental da sua obra. Dois irmãos insistem na ideia de que o seu pai é o
maior e decidem dar uma sova no filho do seu patrão para o provar. Em reacção à
atitude de humilhação e subserviência do pai, que se desdobra em pedidos de
desculpas na sequência da briga, resolvem entrar em greve de fome. Ao
observá-lo a entrar para o carro do patrão de manhã, todo contente, percebem
que afinal ele será sempre um empregado que nunca chegará a patrão. Embora bem
definidas as diferenças de níveis de vida nenhum dos lados é mais ou menos
favorecido por causa disso. Tão ridículo é o pai dos miúdos a fumar e a fazer
exercício como o patrão a brincar com a sua máquina de filmar atrás da porta do
escritório e de uma placa que diz “Privado”. Da relação e do desequilíbrio
social para o conflito pai-filho, vemos uma fila indiana de crianças na escola
na aula de educação física e caímos logo a seguir numa outra fila, agora de uma
série de empregados de escritório sentados às suas secretárias exibindo expressões
de sonolência. As instituições que nos absorvem a todos, a escola e o
escritório, impõem uma ordem sem sentido independentemente do estatuto
económico-social.
O conteúdo dos filmes de Ozu ao
longo dos anos 30 tem sido catalogado de “realismo consumado” ou “confirmado”.
Numa época em que floresce a literatura proletária, em que cineastas como
Mizoguchi realizam filmes de leitura nitidamente esquerdista, pondo em causa
toda uma estrutura injusta e diferenciada de classes sociais, Ozu mantém-se fiel
aos dramas típicos de um classe média baixa composta por gente comum. Se bem
que a pobreza faça parte do seu quotidiano, tal como as diferenças de classe, a
mensagem que se pode ler é de aceitação. Uma aceitação alvo de muitas críticas.
Mas se Ozu se afastou dos dramas da classe mais pobre no pós-guerra, mais tarde
acabou por continuar a mergulhar os seus personagens nos mesmos problemas de
sempre. Ozu nunca viu a vida como especialmente desesperante ou particularmente
alegre. Nalguns casos foi através da alegria que encontrou alguma verdade no
homem insignificante. Nos anos 30 o homem “insignificante” foi apanhado no meio
da Grande Depressão; nos anos, 50 não. A preocupação de Ozu com as dificuldades
da vida em ambos os períodos foi muito além das contradições da economia e da
sociedade para se focar num outro nível. O da gestão das expectativas e das
frustrações, da desilusão e da aceitação, do enquadramento do homem através do
cenário familiar. Não se trata de uma questão de ideologia mas de opção artística.
DIÁLOGO, CENÁRIO E A CÂMARA NO CHÃO
Os diálogos eram de um
importância extrema no método de Ozu, sendo mesmo a primeira fase de qualquer
dos seus trabalhos. Eram escritos em parceria com o seu argumentista de muitas
décadas (Noda) focados em actores específicos. Assim como o tempo fílmico está
sujeito à sequência do diálogo, também o espaço por onde os personagens se vão
revelando está sujeito a padrões ou arquétipos geográficos. O lar, o salão de
chá, o restaurante, o bar são os espaços onde não só tem lugar o diálogo como
influenciam e adequam o estado de espírito dominante em que esse mesmo diálogo
tem lugar. Recordações e preocupações
sociais no restaurante, desilusões e nostalgia no bar, problemas domésticos em
casa. Os cenários, sempre limpos e bastante iluminados, não são muito
diferentes de um filme para outro. O despojo cenográfico apenas reforça o papel
dos diálogos. Por outro lado a paisagem, o Plano Geral é também secundarizado
em benefício dos actores e das suas palavras. Em PRIMAVERA TARDIA (BASUHN,
1949) Ozu nunca nos mostra a famosa vista sobre a cidade da varanda do templo
de Kiyomizu, antes filmando virado para dentro mostrando os personagens a
apreciarem a paisagem. Em O FILHO ÚNICO (HITORI MUSUKO, 1936) e A HISTÓRIA
(VIAGEM A) DE TÓQUIO (TOKYO MONOGATARI, 1963), as únicas paisagens urbanas que
visualizamos dizem respeito a um indiferenciado aglomerado de prédios atrás dos
carros ou através das janelas dos autocarros. Sobrepondo-se ao tempo e ao
cenário, a prioridade máxima recaía sobre os actores e o seu modo de
representar. Ozu exigia máxima concentração no mais banal dos movimentos,
evitava a representação demasiado emotiva ou denunciada, criando um clima de
extrema contenção. Por vezes o cenário apresenta-se despido de actores que ou
já saíram de cena ou ainda vão entrar. São momentos de silêncio mas ao mesmo
tempo janelas de reflexão, pausas narrativas que indicam um universo que existe
e respira para lá dos personagens.
A extrema formalização da técnica
de Ozu traz consigo um pormenor até hoje longe de ser consensual quanto à
interpretação. Falamos do ângulo baixo de filmagem. De facto, em nenhum filme
de Ozu os seus personagens são vistos de cima. A colocação da câmara ao nível
do chão, em vez de corresponder ao ângulo de visão de um japonês acomodado no “tatami”
da sua casa, observa-o de baixo. Seja uma visão do corredor, um ângulo da mobília ou alguém deitado no chão, a
perspectiva obriga o espectador a observar de baixo para cima. Masahiro Shinoda chamou-lhe o “ponto de vista de uma entidade
divina inferior a observar a acção humana”. O efeito corresponde a obrigar o
espectador a uma reverência involuntária face à celebração da vida de todos os
dias. Se por um lado o universo de Ozu é composto por personagens contidos,
respeitadores da vida e agentes de um quadro emocional mediano sem oscilações,
por outro, ao fazer a apresentação desse mesmo universo ao público, obriga-o a
venerar essa mediania resignada.
CONCLUSÃO
O desenvolvimento formal da obra
de Ozu consiste essencialmente na refinação e apuramento dos problemas básicos
do quotidiano através de arquétipos, quer de situações quer de personagens. Em
pleno tempo de guerra, 1941, HAVIA UM PAI, o problema essencial é a separação
entre pai e filho. Em 1959, OHAYO a família confronta-se com dificuldades por
causa da disparidade entre o mundo dos adultos e o das crianças. Em TOKYO STORY
os pais confrontam-se com a desilusão causada pelo desenvolvimento da vida dos
seus filhos. Os pais na sua contínua apreciação da vida tentam provar que a
felicidade é ilusória. Nada acontece a não ser porque tem que acontecer, apesar
de ser incontornável uma enorme ausência de satisfação. Despojado da influência
do drama ou da felicidade, o que OZU procura é a ascensão do ser humano que
absorva e sinta a vida na sua totalidade independentemente da sua justiça, do
seu prazer, da sua dor. Uma postura muito influenciada pela cultura Zen do seu
país. A quietude e a aceitação, que não significam necessariamente
concordância, obrigam o ser a abarcar muito mais o mistério da vida do que
contrariando o estado das coisas. Daí a chegada tardia da sua obra aos ecrans
ocidentais. No entanto a recepção mundial dos seus filmes foi imediata. Talvez
pela admiração da atenção dada aos pormenores, talvez pela afirmação da
personalidade do realizador, talvez pela concordância com algumas das suas
fórmulas de apresentar a vida. Os filmes de Ozu não estavam destinados aqueles
que procuram soluções utópicas. No seu universo não há espaço para o amor
romântico e apaixonado, para o sucesso individual de quem triunfa na vida, e
muito menos para uma bem sucedida comunicação entre os seres. Apenas a
aceitação, nunca felicidade, fez parte dos seus personagens independentemente
de classe social, nível cultural ou género. Evitando o virtuosismo técnico e a
estrutura do drama foi directamente ao essencial da condição humana. A vida é
uma “estucha”…
Artur
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