Passos isolados num andar
solitário pelas ruas desertas de mais uma noite sobre a cidade. Os cigarros
sabem a vésperas de ataques cardíacos, o álcool acende os sinais vermelhos nos
painéis da morte que se aproxima. Luto com todos eles, sento-me à mesa a
negociar, a pedinchar mais um pouco de tempo, só mais um pouco, o necessário
para acabar o próximo romance. Depois é o que se quiser, estou preparado para
me ir embora sem mágoas, ressentimentos ou tristezas na bagagem. Sei que tem
havido muita coirice da minha parte mas os estímulos são nada e tudo continua
como sempre. Nada faz sentido, nunca fez, pensamento familiar de décadas.
Porque é que haveria de fazer? Está escrito em algum lado? No céu, por exemplo,
na eternidade? Alguém viu o sentido desta merda? Alguém o escondeu no bolso?
Pouco importa. O sentido procura-se, combate-se por ele quando há força e
ingenuidade para o procurar. Continuo a andar pela cidade adormecida com a
guitarra aos ombros, amiga de muitas datas importantes, companheira de sempre,
testemunha, cantigas com amigos numa arrecadação perdida de um prédio
esquecido. Os poemas, as músicas, o resultado dessa procura. Resultado, não.
Não resulta nada desta caminhada a não ser lágrimas e recordações. Caderno de
memórias é o mais apropriado. E, no fundo, é nisso que nos convertemos…em
registadores de memórias. O pensamento chegou cedo para não mais partir. Os
olhos que viam o mundo aos vinte anos são os mesmos olhos que observam agora.
Um país a sair lentamente dos escombros de uma ditadura, um assomo de
progresso, ideias mais humanitárias e uma corja eterna a vigiar pela sombra,
sem nome nem rosto, uma corja imortal que se esconde à espera da melhor altura
para voltar à carga. As hienas que passam horas a observar a manada, seja ele
de zebras ou búfalos, não importa. Este tempo é o das hienas, todo o tempo foi
sempre delas. Nós, o resto, a manada, distrai-se com a brevidade dos pastos
verdes a pensar que eles vão estar sempre ali. Só mais um bocado, cochicho eu
com a morte qual amante desesperado a recuperar uma longa abstinência, só mais
uma antes de partir, só mais um golo a coroar o festival de bola de um jogo
fantástico. A nossa equipa…a nossa equipa não se senta á mesa das hienas, não
tem direito às iguarias nem às lembranças, não pagou a factura da colaboração.
E agora pouco importa quando tudo se desmorona e os cigarros começam a saber a
ataques cardíacos, a passada uma contínua linha solitária, o sentido que não
existe mas que sempre se procurou, as cantigas à volta da arrecadação
clandestina, as histórias que a noite conta. A história que me falta fazer como
testamento de qualquer coisa, tarefa acabada de uma missão que não foi
confiada, o whisky com sabor de morte anunciada. Só mais um pouco. Só mais um
pouco e partirei de livre vontade, feliz, sem estrabuchar. Partirei com o olhar
dos outros que partiram antes, corolário lógico do sentido que nunca existiu.
Mas também com as lágrimas deles, com o olhar da perplexidade da injustiça, com
a raiva pela ignorância do sofrimento gratuito, da barbaridade inútil. Nada faz
sentido, nunca fez. Talvez as canções, talvez as histórias que contamos uns aos
outros em noites escondidas em arrecadações clandestinas. Talvez… Por isso vejo-me obrigado a mendigar
mais um pouco para acabar a próxima história, a última, não tem importância.
Deixar terminá-la antes de fazer a mala. Nada faz sentido e tudo tem de acabar.
Mas, só desta vez, deixem-me terminar.
Artur
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