quinta-feira, 12 de setembro de 2013

O TEMPO DAS HIENAS


 

 

Passos isolados num andar solitário pelas ruas desertas de mais uma noite sobre a cidade. Os cigarros sabem a vésperas de ataques cardíacos, o álcool acende os sinais vermelhos nos painéis da morte que se aproxima. Luto com todos eles, sento-me à mesa a negociar, a pedinchar mais um pouco de tempo, só mais um pouco, o necessário para acabar o próximo romance. Depois é o que se quiser, estou preparado para me ir embora sem mágoas, ressentimentos ou tristezas na bagagem. Sei que tem havido muita coirice da minha parte mas os estímulos são nada e tudo continua como sempre. Nada faz sentido, nunca fez, pensamento familiar de décadas. Porque é que haveria de fazer? Está escrito em algum lado? No céu, por exemplo, na eternidade? Alguém viu o sentido desta merda? Alguém o escondeu no bolso? Pouco importa. O sentido procura-se, combate-se por ele quando há força e ingenuidade para o procurar. Continuo a andar pela cidade adormecida com a guitarra aos ombros, amiga de muitas datas importantes, companheira de sempre, testemunha, cantigas com amigos numa arrecadação perdida de um prédio esquecido. Os poemas, as músicas, o resultado dessa procura. Resultado, não. Não resulta nada desta caminhada a não ser lágrimas e recordações. Caderno de memórias é o mais apropriado. E, no fundo, é nisso que nos convertemos…em registadores de memórias. O pensamento chegou cedo para não mais partir. Os olhos que viam o mundo aos vinte anos são os mesmos olhos que observam agora. Um país a sair lentamente dos escombros de uma ditadura, um assomo de progresso, ideias mais humanitárias e uma corja eterna a vigiar pela sombra, sem nome nem rosto, uma corja imortal que se esconde à espera da melhor altura para voltar à carga. As hienas que passam horas a observar a manada, seja ele de zebras ou búfalos, não importa. Este tempo é o das hienas, todo o tempo foi sempre delas. Nós, o resto, a manada, distrai-se com a brevidade dos pastos verdes a pensar que eles vão estar sempre ali. Só mais um bocado, cochicho eu com a morte qual amante desesperado a recuperar uma longa abstinência, só mais uma antes de partir, só mais um golo a coroar o festival de bola de um jogo fantástico. A nossa equipa…a nossa equipa não se senta á mesa das hienas, não tem direito às iguarias nem às lembranças, não pagou a factura da colaboração. E agora pouco importa quando tudo se desmorona e os cigarros começam a saber a ataques cardíacos, a passada uma contínua linha solitária, o sentido que não existe mas que sempre se procurou, as cantigas à volta da arrecadação clandestina, as histórias que a noite conta. A história que me falta fazer como testamento de qualquer coisa, tarefa acabada de uma missão que não foi confiada, o whisky com sabor de morte anunciada. Só mais um pouco. Só mais um pouco e partirei de livre vontade, feliz, sem estrabuchar. Partirei com o olhar dos outros que partiram antes, corolário lógico do sentido que nunca existiu. Mas também com as lágrimas deles, com o olhar da perplexidade da injustiça, com a raiva pela ignorância do sofrimento gratuito, da barbaridade inútil. Nada faz sentido, nunca fez. Talvez as canções, talvez as histórias que contamos uns aos outros em noites escondidas em arrecadações clandestinas.  Talvez… Por isso vejo-me obrigado a mendigar mais um pouco para acabar a próxima história, a última, não tem importância. Deixar terminá-la antes de fazer a mala. Nada faz sentido e tudo tem de acabar. Mas, só desta vez, deixem-me terminar.

 

Artur

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