quarta-feira, 21 de setembro de 2011


TRILOGIA DA AUSÊNCIA


(A tribute to RAMONES)

Dedicado aos meus companheiros de Blog, Arnaldo, Sofia e João



A.

Tenho uma enorme dificuldade em dar um nome, em nomear uma data à maior parte dos acontecimentos da minha vida, excepto neste caso. Lembro-me perfeitamente que tinha 19 anos, que estava no último ano antes da Faculdade (o 12º), e que o ano lectivo era 1980/81. Estávamos numa escola pré-fabricada em Algés junto ao rio, mesmo ao lado da Doca Pesca. Uma escola que já não existe. Para lá chegar, tínhamos que passar por um túnel subterrâneo, mesmo por baixo do apeadeiro da estação de comboios. Um corredor escuro e fundo atravessado por milhares de pessoas a caminho do trabalho, das aulas, de outro comboio noutra linha. Uma massa anónima e adormecida de seres, mortos-vivos automatizados pela tirania da rotina, do quotidiano, do imperioso almanaque das leis da sobrevivência. Por cima os comboios arrastavam-se num ruído aterrador de aeroporto, a lama e a poeira decoravam o piso consoante a época do ano, máquinas de néon vendiam produtos estranhos, cigarros, bilhetes, pastilhas elásticas. O mais poético som que se conseguia ouvir era o piar das gaivotas à volta dos barcos que regressavam da pesca. Até o rio cheirava mal. Tal como o ronco de demolição dos comboios, a crise anunciava-se em todos os cantos da existência. Entrava como um nevoeiro intrometido e ocupava todas as frestas, todos os espaços, corroendo tudo o que pudesse cheirar a esperança. Colocava uma cancela em todo o tipo de ambições, um peso absoluto no bater dos corações.
Percebia-se a realidade, percebia-se tão bem e de forma tão nítida que não havia nenhuma vontade de querer fazer parte dela. Todas as desculpas e todos os esquemas eram válidos para estar ausente, longe dali. Tudo era tão infinitamente absurdo e desprovido de sentido, tudo era tão pesado e tão doloroso, tudo era uma condenação sem julgamento. O único crime era estar vivo, existir, pensar. E no entanto estudávamos. Mais para manter a inteligência acordada e em forma do que para chegar a algum sítio.
Atravessávamos aquele túnel todos os dias, os comboios desmoronavam-se por cima de nós, os neons das máquinas iluminavam a parvoeira dos nossos dias. Numa parede um grafitti de um boneco feio e um poema ao lado: “I don’t care, about this world, about that girl, about this words, I don’t care…”
E essa era a leitura do dia, a leitura de todos os dias, o farol de nevoeiro que gritava para manter a consciência acordada, o Ser em alerta, a criação em perspectiva. A canção dos Ramones era a única parte daquele túnel que fazia sentido, o único objecto de atenção digno de registo, o único pensamento válido, a única luz sobre as trevas.
Foi portanto com redobrado entusiasmo que recebemos a notícia. O Bruno tinha lido no jornal, não era mentira. E enquanto fumávamos o “charro” das 5 atrás da sala 32, a última sala da escola, jurámos que nem que o mundo caísse, nem que a vaca tossisse, nem que nos fuzilassem logo a seguir, iríamos lá estar. Os Ramones vinham tocar a Cascais e ainda nem sequer estavam no fim da carreira, como a maioria dos que por cá passavam. Era preciso arranjar bilhetes, acima de tudo era preciso conseguir financiamento para comprar os bilhetes. Umas idas à Feira da Ladra com um saco de tralha inútil arrancada do fundo da arrecadação, umas lavagens de carros a vizinhos com pouco tempo, umas tardes a servir no café do bairro, uns caldos Knorr vendidos a putos a fazer de haxixe, era preciso pôr a cabeça a funcionar. Arranjar o dinheiro não foi difícil. Os dias passavam a ter algum sentido, algum propósito. Até o túnel por baixo da estação dos comboios parecia animado nas manhãs mais cinzentas. O irmão mais novo do Camilo tinha 13 anos e também queria ir. Como os pais se opusessem de forma veemente, decidiu fazer greve de fome. Ao terceiro dia o pai do Camilo, um antigo preso político, foi sensível à pretensão do filho. Quando levantou a proibição, no entanto, o miúdo estava tão debilitado que caiu à cama com uma febre enorme. Já não pôde ir.
E finalmente chegou o dia do concerto. Eu e o Camilo embarcámos na estação do Cais do Sodré para uma viagem alucinante. Eram centenas e centenas de pessoas que tinham o mesmo destino, cada um mais alucinado que outro. O comboio era um autêntico circo, um lugar mágico onde as pessoas normais nem se atreviam a entrar. Cabelos compridos, rapados, mulheres com roupas extraordinariamente curtas, vestes negras, música aos berros a saltar de vários rádios, algazarra, coxos, zarolhos e droga, droga de toda a qualidade e feitio que escorria pelas paredes. Comprimidos, erva, haxixe, heroína, ácidos. A Feira circulava pelas carruagens em grande animação. Um cheiro indecifrável a Patchouli e frangos assados. Á nossa frente sentaram-se três tipos mais velhos. Percebia-se que eram veteranos da guerra pelas tatuagens que exibiam nos braços. “Guiné 1969 – 71”, “Os Fantasmas” com a cabeça do personagem da banda desenhada, uma G3 por baixo da frase, “Deve-te a vida…” Eram tipos calados com o olhar vazio, não falavam com ninguém nem ninguém se metia com eles. Instintivamente todos os respeitavam. Tinham estado num quotidiano de inferno. O maior inferno que um homem pode aguentar. Conviveram com as atrocidades, o sangue, o cheiro da morte. O que tinha o cabelo até aos ombros, de vez em quando sacava de um saco de plástico com uma espécie de caramelos derretidos lá dentro. Apertava uma porção com muita paciência até a tirar para fora. Depois comia-a. A seguir passava o saco aos amigos dele. Não conseguíamos tirar os olhos dali. Depois de Oeiras, já na terceira vez em que o saco saiu cá para fora, o dos cabelos compridos ofereceu. Hesitámos. Ele insistiu, tirou um pouco para fora e ofereceu outra vez. Eu comi, o Camilo comeu a seguir. Olharam para nós e foi a única vez que os vimos a rir. – Óleo de haxixe. Vai-vos fazer bem.
Quando chegámos a Cascais já o chão fugia a correr debaixo dos nossos pés. Parecia que tínhamos acabado de viajar na galáxia, de um planeta para outro. O Bruno encontrou-nos à porta da estação. Eu falava com ele com dificuldade.
- Então meu? O que é que estás a fazer num programa de televisão?

1 comentário:

Hélder disse...

É sempre um prazer ler estas partilhas da tua galáxia! :D
Abraço!