quarta-feira, 28 de setembro de 2011

RAY, NICHOLAS RAY



"Estás a despedaçar-me!"

(James Dean em "Rebel Without A Cause")

Porque foi Nicholas Ray tão admirado pelos críticos franceses dos anos 50, e uma tão grande fonte de inspiração para aqueles que viriam a tornar-se os realizadores da Nouvelle Vague ? A resposta reside, talvez, na observação muitas vezes repetida por Ray acerca do limitado contributo do argumento para o resultado final do filme - afirmação que ilumina a sua abordagem decididamente não-literária da arte cinematográfica - e no agudo sentido da dor pessoal e da angústia evocadas pela frase em epígrafe, retirada do seu filme mais conhecido.
Ray foi um marginal em Hollywood, um homem cujo profundo desapontamento com a sociedade americana em geral e com a indústria cinematográfica em particular veio a manifestar-se não apenas na sua conturbada relação com os estúdios cinematográficos, mas também no conteúdo dramático e na força impulsionadora da sua obra. Os seus filmes constituíram, em grande parte, poderosas e profundas contribuições pessoais para aquilo que foi, e ainda é, uma camisa de forças, especializada na produção de entretenimento de massas, homogeneizado e de sentido débil; expressaram a sua consciência de tormento íntimo, solidão e desespero, conflito e confusão, fazendo-o apenas através de meios cinemáticos.
Para Godard, Truffaut, Rohmer, Rivette e outros, Ray era o exemplo acabado de um "auteur", um admirável exemplo de um artista, cuja inteligência patente, intensidade de sentimento, e puro amor ao cinema asseguravam que a sua assintaura criativa podia ser viva e facilmente percebida entre toda a tralha constituída pelo cinema comercial norte-americano.
Para mim, para nós (um grande abraço ao Artur, esse maravilhoso cinéfilo, que descobriu e conheceu tantas coisas antes de mim), os seus filmes representam o triunfo do individual sobre a segura e branda conformidade do sistema, alinhando com Von Stroheim, Buster Keaton ou Orson Welles - talentos de ambiçaõ massiva ("bigger than life", outro título de um dos maiores filmes de Ray), originalidade e génio esmagados pela lógica implacável do sistema filistino que imperava em Hollywood.
Ray possuía aquilo a que os gregos chamavam "sabedoria de Sileno", ou seja, a capacidade de reconhecer o sentido trágico e pessimista da vida humana, de olhar com coragem essa condição e de a traduzir em expressão artística. As suas personagens falam muitas vezes por ele próprio - já referi numa postagem anterior a fabulosa frase "I always contradict myself" de "Bitter Victory" - e, assim sendo, poderia ser Ray a proferir a frase "I'm a stranger here myself", dita por Sterling Hayden em "Johnny Guitar". Esta estranheza, esta sensação de desenraízamento, poderá explicar em parte uma das características quanto a mim maiz bizarras do seu percurso artístico: a indiferença em relação aos gostos dominantes, ao polimento estético, ao equilíbrio ,contenção e outros modos de expressão mais convencionais e respeitáveis. Ao mesmo tempo, não foi particularmente inovador, quer em termos técnicos, quer formais; a maior parte das vezes trabalhou no contexto de géneros populares e tradicionais, como o western, o thriller, o filme de guerra ou o melodrama. E é precisamente essa tensão, entre a sua sensibilidade pessoal, e os constrangimentos do cinema comercial, que tornam a sua obra tão interessante, tão duradouramente moderna e de tal maneira influente na obra de sucessivas gerações de cineastas. A sua importância releva não apenas dessa influência, reinvindicada ou não, mas do facto de milhões de jovens continuarem a atestar o poder de "Rebel Without A Cause" na expressão de emoções, realçando o modo como Ray transcendeu o seu tempo com uma visão da vida que continua a afectar-nos: dor, ansiedade, incerteza, violência e solidão são elementos da condição humana, e poucos realizadores, especialmente em Hollywood, os confrontaram tão directa e intensamente, de um modo tão pouco comprometido como Nicholas Ray. Mesmo nos seus filmes mais convencionais, a sua sensibilidade perturbada pelo pessimismo constitui uma força activa na caracterização quer de indivíduos, quer da sociedade. É por isso mesmo que teremos que voltar sempre a esse "corpus"cinematográfico único e pungente que, apesar de tudo, de toda a angústia e mal-estar, celebra a singular e dolorosa preciosidade da vivência humana e da capacidade de alguns indivíduos resgatarem aquilo que resta de dignidade, liberdade e sentido na trágica condição humana. É por isso que sempre voltaremos aos filmes de Nick Ray, relembrando o fabuloso diálogo de "On Dangerous Ground" entre o detective protagonizado por Sterling Hayden e outra personagem:

" - Lixo, é tudo aquilo com que vivemos. Lixo ! Como é que consegues viver com isso ?
- Eu não vivo com isso. Vivo com outras pessoas"

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