quinta-feira, 18 de setembro de 2008

JÁ ME LEMBREI (título provisório)

Não é por mal, nem por vingança. Para dizer a verdade nem eu sei muito bem porque razão é que o faço. Por qual motivo me preocupo em aliviar o fardo a alguém que me é praticamente um desconhecido. Alguém com quem nunca houve nenhum tipo de intimidade, de afecto, de qualquer coisa parecida com a relação obrigatória que os seres costumam ter quando são responsáveis por ter dado vida a outros seres. Pelo menos os bichos… A mesma cara, a mesma expressão com que olho para a enfermeira é a expressão utilizada quando um médico me perguntava: “E na família? Tem antecedentes? Pai, Mãe? “ Sei lá dos antecedentes, ficaram escondidos no sótão de alguém que ninguém conhece, na memória de quem não se lembra. Sei lá, pôrra. Trata-se de informação menos volumosa que a de um órfão. Se os pais dele morreram novos, a história clínica não teve tempo para se desenvolver. Mas a tua, não. Cresceu, desenvolveu-se, mas sempre longe do meu olhar. Por isso olho para a cara indiferente da enfermeira do lar com a cara indiferente que me é permitido exibir e, tremulamente balbucio uma banalidade qualquer enquanto lhe faço chegar uma nota amarrotada às mãos. “Veja se ele fica confortável, se não apanha frio, se…” E desvio o olhar dos olhos dela como se estivéssemos a ensaiar uma peça ainda com o guião à frente dos olhos. Não houve tempo de decorar textos nem de banalizar comportamentos. Ao menos os bichos não fingem, não fazem ensaios, não se interrogam sobre o sentido da existência. Morrem e pronto. Enquanto mexem, tudo fazem para se manter de pé. Depois caem para o lado resignados.
Se não consigo trocar duas palavras contigo quando te visito é porque nunca me deste nenhum texto para eu ensaiar, não me convocaste para nenhuma das tuas representações. Se não te consigo tocar é porque me esqueci de como se faz, esqueci-me se alguma vez me tocaste. Não é por vingança nem por indiferença. É apenas o resultado consequente do nosso passado. Um tempo nebuloso onde praticamente não nos vimos, não nos tocámos nem nos conhecemos. Se insisto em vir aqui visitar-te será por alguma razão desconhecida que me empurra, um princípio longínquo de solidariedade. Tal como um comandante em guerra, que não deve deixar nenhum dos seus para trás no momento da retirada. Esqueci-me de quem és quando olho para o teu rosto acabado, sulcado por linhas e linhas de alegrias e tristezas como o rosto de todos os velhos. Quais foram, escapa-me, tal como me escapa todo o sentido da tua vida, o rumo, o sumo, o Ser.
Limito-me a sentar-me na cadeira ao pé da tua cama e gerir o silêncio. Isso lembro-me perfeitamente como se faz. Gerir a ausência, manipular as contas do vazio no dia dos anos, no Natal, sempre. E a partir de certa altura toda a solidão faz sentido, porque se não fizesse era indiferente. Rebentar de solidão é tão estúpido como rebentar de diarreia ou de outra coisa qualquer. Está lá e não arreda. Mais vale aprender a viver com ela como um casamento católico infeliz.
Não sei porque o faço mas há algo em mim que me impede que sejas entregue ao teu destino. Há algo em mim que entende que deves morrer com dignidade, com aquela dignidade com que todos devíamos morrer. Confortável, com o mínimo de dor e tranquilidade. Não é por mal nem por vingança. É pela indiferença que não me consegues ser indiferente. É pela raiva que não te conseguiria odiar mesmo que quisesse, é por ti ou por mim ou por outra coisa qualquer, mas… não vou permitir que partas em total solidão.

ARTUR GUILHERME CARVALHO

6 comentários:

José Ceitil disse...

Artur...um abraço.

Artur Guilherme Carvalho disse...

Um abraço Zé.
ARTUR

redjan disse...

Dito assim, lido assim, parece que me fazes compreender certos buracos de pouca luz.

Abração grande chaval maluco!!

Vitor disse...

Passei por aqui, e que dizer…um abraço Artur!

Artur Guilherme Carvalho disse...

Red / Vitor : Um abraço, obrigado pela visita.
ARTUR

Clarice disse...

Já li este texto muitas vezes...e também engoli em seco as vezes que o li...prinipalmente com as palavras finais.

"...mas… não vou permitir que partas em total solidão."

Com os outros acabamos sempre por descobrir mais "bocadinhos" nossos, e neste caso um "bocadinho" a fazer toda a diferença.

Um abraço.