sábado, 6 de setembro de 2008
MORETTI : UM IMORTAL DO DESASSOSSEGO
“ Quem fala mal, pensa mal e vive mal.
As palavras são importantes .”
DA AGITAÇÃO AO VAZIO
Descendente directo dos despojos e mitos do Maio de 68, Moretti abre os olhos para o mundo no contexto de uma geração, por um lado perplexa e por outro plena de força e energia, pronta a mudar o estado das coisas ao mesmo tempo que as aprende. A política torna-se personagem central dos seus primeiros filmes. Mas como Maio tinha acabado numa cortina de incertezas e verdades inconclusivas, Moretti atira-se em busca da transparência, da clareza, das certezas por encontrar. Por isso, em vez de ridicularizar a direita, os conservadores e a Democracia Cristã ( o que seria demasiado fácil), resolve fazê-lo com os seus amigos, o seu ambiente, o lado daqueles que ainda procuravam chegar a algum lado.” O que é que falhou ? O que é que se está a fazer mal ? O que é que falta fazer ?” Perguntas básicas e essenciais que percorrem IO SONO UN AUTARCHICO, ECCE BOMBO e SOGNI D’ORO. A geração formada nas ideologias dos anos 60 é-nos retratada numa paralisia aflitiva, cujos espaços de comunicação e de vida se encontram despojados de movimento real. As relações desgastam-se, desfazem-se como cinzas ; os rituais de comunicação, à força de tanto se repetirem, esvaziam-se de sentido . Moretti é um ser errante, um autosuficiente inseguro, um perseguidor obssessivo da essência das coisas que nunca chega ao destino pretendido.
Em ECCE BOMBO, um grupo de amigos combina passar uma noite em claro para assistir na praia ao nascer do dia. Mas o Sol acaba por se levantar nas costas do grupo, no lado oposto... Esta busca frenética e insatisfeita de Moretti nos seus primeiros três filmes, episódios caricatos à mistura, longe de alcançarem alguma conclusão, transformam-se em testemunhos de dor e sofrimento onde, « a vida passa num flash » , como numa cantiga dos UHF. Em vez de pensamentos arrumados, certezas embrulhadas e uma moral padronizada, os filmes de Moretti são interrogações incómodas, caricaturas de desconforto, duvidas que nos obrigam a pensar... Como um espelho que nos é colocado à frente, acompanhado da pergunta : “ O que é que vês ?” Seja o que fôr que cada um possa ver, é unânime que não se consegue agarrar, como areia que escorre pelos dedos. No fim, algumas gargalhadas e uma angústia pesada. A auto-ironia retratava uma geração enganada, desorientada e desiludida. Da agitação do crescimento ao vazio da desilusão, enquanto caminho de aprendizagem.
DO VAZIO Á SOLIDÃO
Os anos 70 são a “ressaca” dos dez anos anteriores. O Paraíso anunciava-se ao virar da esquina, entre um “charro”, uma viagem de LSD e dezenas de jovens nus a correr por um parque verdejante. E tal como Pasolini havia profetizado : “ ...hoje lutam com a policia, amanhã estarão a beijar-lhe o cu. “ Para onde foram todos esses jovens verdejantes ? Ocupar as cadeiras dos pais nas empresas, na política, nas secretarias de Estado, nos jornais, etc, etc. Tornaram-se espirituais, vegetarianos, macrobióticos, yuppies, pais de familia. O mundo resolvia-se mais tarde. De fora ficaram os de boa-fé, aqueles que sempre acreditaram que o mundo se resolvia mais cedo. Sozinhos e desamparados, com o relógio da existência a passar dos 30, caíram no abandono ou, como ultimo fôlego, iniciaram os “anos de chumbo”. Moretti acusa o peso dessa década nos seus dois próximos trabalhos. Em BIANCA através de uma intolerância extrema e castigadora que não perdoa a traidores. Em LA MESSA É FINITA na pele de um amigo preso por pertencer a uma organização terrorista. Moretti está só e desiludido, mas acredita ainda que é possível mudar o mundo, resgatar um conceito de felicidade que se perdeu algures no caminho. Nem que seja à bofetada. Os seus alvos são todos os que ameaçam ou se desviam dos ideais de estabilidade ideológica e sentimental. Os que se venderam à mentira ,à falsidade e à mediocridade merecem morrer. O professor de matemática de BIANCA não resiste à mediocridade nem às contradições dos tempos modernos. O final de BIANCA é um cortejo de confissões em que Michelle solta todas as suas obsessões. As coisas deixaram de ser claras. As pessoas traiem-se, tornam-se más. Obcecado com o pressuposto de uma moral quase elementar, Moretti julga e condena, sem dó nem piedade.
LA MESSA È FINITA, o filme onde sofremos de forma divertida. A solidão do protagonista radicaliza-se. A violência inverte-se, passando de um professor violento para um padre desnorteado e impotente que assiste ao desagregar do mundo à sua volta. A desesperada vontade de compreender os outros dilui-se num universo incompreensível para D.Giulio que vê familia, amigos e o seu próprio passado esmagados pela vertigem da solidão. Uma solidão contagiante que o acabará por possuír também, materializando-se no seu exílio voluntário. D. Giulio parte, cansado e farto do retorno às origens.
E chegamos à síntese dos dois ultimos trabalhos, ou seja, a PALOMBELLA ROSSA. Metáfora do PCI no rescaldo da queda do leste comunista, mosaico estilhaçado de um percurso político generoso, comprometido e empenhado, caricatura dos grandes meios de comunicação, tentativa de compreender o homem nas suas dimensões individual e colectiva... e muito mais. PALOMBELLA ROSSSA utiliza a piscina e um desafio de pólo aquático enquanto espaço encenado de uma história, de um percurso, de uma encruzilhada, de uma consciência que luta desesperadamente na linha de àgua entre o passado e o presente, a respiração e a falta de ar, o ser e o nada... A dificuldade de ser comunista e a necessidade de o ser. Agora que uma parte do mundo caíu, terá caído também a vontade de o continuar a mudar ? O desinteresse começa a entorpecer as consciências. As pessoas deixam de ser cidadãos para se tornarem consumidores. A ganância sobrepõe-se à cidadania. Certo ? Não, enquanto a voz de Moretti continuar a berrar. A berrar sozinha, no monte ou na piscina. Pela razão, pela clareza, pela moral, pela própria mãe...
DA SOLIDÃO COLECTIVA À SOLIDÃO INDIVIDUAL
O velho leão atravessa a década de 90 cansado. A desilusão mora nele mas já não o perturba. Como um corolário lógico das mentes em permanente desassossego, companheira inseparável daqueles que não deixam de pensar. A História segue o seu caminho inexorável, inexplicável e indeterminado, que veda aos seus intervenientes a distância necessária para se poder compreender. Mas estar vivo é estar atento, sempre obcecado em chegar à verdade, mesmo nunca o conseguindo. A inocência dos derrotados fica para trás. A solidão individualizou-se, deixou de ser colectiva tornando-se território exclusivo. Não é possível obrigar os outros a aceitarem as nossas ideias, mas não é por isso que vamos deixar de pensar. Moretti, uma motorizada Vespa e as ruas desertas de Roma ao fim de semana, abrem-nos a porta para CARO DIARIO. O eterno desencantado apresenta-se pela primeira vez reconciliado consigo mesmo. Analisa a sua Itália e os seus amigos afirmando sempre o primado da liberdade, da crítica e da vida. Fechado um ciclo histórico, Moretti reafirma a liberdade e o preço a pagar por ela, a solidão. A solidão enquanto agente de melancolia mas também de energia. Os amigos, os filhos, as manifestações da solidão de cada um. E por fim, um cancro. O repensar da existência e do seu absurdo, as sessões de quimioterapia, os médicos, uma estúpida chuva miudinha num céu cinzento de Roma. Por fim, o milagre de continuarmos vivos sem certezas de coisa nenhuma, enquanto personagens de uma anedota colossal chamada Humanidade.
A intranquilidade e a insatisfação actuam enquanto elementos de análise primordial dos vários tempos vividos por Moretti, quer no caminho do mundo, quer no da sua própria existência. A perseguição das mistificações da linguagem e do absurdo da comunicação tornam a palavra a sua obsessão de estimação. O seu uso abusado, corrompido e repetitivo despoja-lhe o sentido. Por isso “as palavras sãoimportantes”. Um dos seus filmes mais solitários e mais narcísicos, a par com SOGNI D’ORO, foi APRILE. São talvez as duas obras menos conseguidas de toda a sua filmografia. Trata-se de um trabalho que podia ser apresentado em formato doméstico, estilo video familiar. A ausência de ideias para fazer um filme novo, o nascimento do filho e o drama de uma esquerda que se continua a afundar constituem os principais eixos deste trabalho. Nenhuma novidade, nada a assinalar além do bocejo. Como se Moretti ensaiasse qualquer coisa ainda longe da sua forma final. Uma « qualquer coisa» que acaba por surgir de forma brilhante em LA STANZA DEL FIGLIO, consagrando-o definitivamente na galeria dos imortais do cinema europeu.
Para trás fica uma estrada de risco e aventura, desafio e inovação, onde ficaram registadas três décadas. Três décadas de História, política e filosofia de uma Europa agitada, inconstante e incerta que procura a todo o custo uma nova forma continental de existência.
ARTUR GUILHERME CARVALHO
NANNI MORETTI
(Filmografia - realização)
IO SONO UN AUTARCHICO (76)
ECCE BOMBO (78)
SOGNI D’ORO (81)
BIANCA (84)
LA MESSA È FINITA (85)
PALOMBELLA ROSSA ( 89)
CARO DIARIO (93)
APRILE (98)
LA STANZA DEL FIGLIO (01)
IL CAIMON (06)
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7 comentários:
O desassossego traduz-se em excelência.
Grande texto! - e não me refiro só à sua extensão. ;)
Belo texto “desassossegado” por exaltar a grandeza de quem questiona, de quem ousa desembrulhar o que vai “cá dentro” de cada um de nós.
* ”As Partes do Todo” já estão lá, onde escreve a Clarice. É para clarear ideias! ;)
Só conheço o Caro Diário e nele Roma está (e é) tão bonita, tão vulgar... Sempre de lambreta.
Dassssssss Art ... és um poço !!!
Sofia,Clarice, Carlos, Red: Obrigado pela visita e pelas vossas palavras. Moretti é de facto um Criador/Pensador dos mais importantes no cinema europeu dos últimos tempos. Acompanhar a obra dele é importante para entender uma certa dinâmica do cinema europeu, sempre asfixiado pela máquina americana que segue a política do eucalipto. VIVA O CINEMA EUROPEU:
ARTUR
Tenho andado distraído…magnifico blogue…cultura da boa…fará parte do meu roteiro com certeza!
Vitor, obrigado pela sua visita, bem como pelas suas palavras. Sinta-se em casa e disfrute das imagens e das palavras.
ARTUT
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