domingo, 7 de dezembro de 2008

UM RIO, DUAS FAMÍLIAS


O “catamaran” atravessa o Tejo no seu roncar aparente de vagar, que o faz andar depressa. Deixou o Seixal às 6:15, como previsto no horário. À medida que a penumbra do amanhecer toma conta do estuário, a luz artificial da embarcação vai ficando cada vez mais fraca com a entrada pujante dos primeiros raios de Sol através das janelas. Algumas pessoas lêem as primeiras notícias do dia para passar o tempo. Outras cruzam os braços deixando tombar as cabeças para a frente, na tentativa de recordar o sono interrompido. Há vários anos que Ana Rita vê o dia nascer no meio do rio. Tantos que já lhes perdeu a conta. Pelo canto do olho tenta ler os títulos das notícias do jornal do homem do lado. Depois ajeita o saco vazio das compras que ainda vai fazer à praça, antes de se dirigir à casa onde trabalha. Uma casa onde começou como mulher-a-dias, mas que, com o passar do tempo, foi acumulando as tarefas de cozinheira, ama do pequeno André e governanta. As três casas que fazia como mulher-a-dias deram lugar a uma só, com a inevitável melhoria de pagamento. O tempo ensinou-a a dedicar-se àquele espaço de pai e filho sem mulher como quem adopta uma segunda família. No princípio dos seus 40 anos não encontrava muitas razões para se queixar da vida. Estabeleceu com ela uma relação de esforço e de trabalho com um retorno equilibrado. Os seus dois filhos eram já homens. Um estava a acabar o curso de engenharia no Técnico e o outro dava os últimos passos no ensino secundário. O marido era condutor de autocarro na cidade. Homem dedicado ao trabalho, uma vez por semana gostava de deitar abaixo umas “litradas” de cerveja com os amigos. Nessas noites, Ana Rita, em vez de maldizer os efeitos nefastos da bebedeira, agarrava no corpo do seu homem, deitava-o e aproveitava a sua momentânea debilidade para dar largas ao seu desejo. Umas vezes seguindo instruções do “Correios Sentimental” de ma publicação feminina que costumava ler, outras por intuição própria, o certo é que nessas noites chegava a ter dois e três orgasmos. Por isso não se lamentava quando ele não esperava por ela, ou simplesmente nem conseguia comparecer ao encontro dos corpos.
O seu patrão era uma rapaz uns anos mais novo, extremamente educado e atencioso, mas completamente distraído. Podia-lhe ter roubado a casa toda, móvel por móvel, que ele nunca iria perceber. Talvez por trabalhar nos aviões não conseguisse muitas vezes trazer a cabeça para a terra no regresso. Em certos aspectos era ainda uma criança e isso fazia-a ter ainda mais ternura por ele e pelo filho, com toda aquela tragédia da D.Mariana.
Segundo diria uma tia de Ana Rita, que tinha nascido em Benguela, quando uma criança fica órfã muito nova é responsabilidade de toda a tribo a sua educação e amparo. Em adulta será sempre importante para os destinos da aldeia. Era uma das poucas histórias de África de que Ana Rita ainda se lembrava. Tinha dezasseis anos quando se deu a descolonização em Angola. Apesar das dificuldades que se seguiram após a fuga para Lisboa com os pais e os irmãos, não se cansava de agradecer a Deus todos os dias por não ter lá ficado. África para ela era a fome, a guerra e a injustiça a martelarem os dias das pessoas. Um pesadelo que não queria voltar a ter. Restavam-lhe breves recordações da infância e algumas histórias de tribos que nunca tinha visto, contadas pela geração mais velha. Como era oriunda de África, o patrão trazia-lhe de vez em quando um pano, uma pulseira ou ma estatueta de madeira, de cada vez que voava para aquele continente. Ela fingia-se feliz e aceitava com um grande sorriso. Não tinha coragem para lhe explicar que não queria saber de África para nada, com medo de o ofender.
Se a tia de Benguela tinha ou não razão nas histórias que contava, era difícil de dizer. Para Ana Rita as macumbas, as limpezas dos maus espíritos e as parábolas que a tia contava só deveriam ser levadas a sério se assim o entendesse o seu bom senso. A tia por vezes acusava-a de ter um “coração português”, como se fosse uma ofensa para a sua raça. E depois? O que é que estava escrito no seu bilhete de identidade ou no cartão de contribuinte? Que Ana Rita era uma cidadã da República Portuguesa. Era isso que ela era. Aqui trabalhava, aqui pagava impostos, aqui votava nas eleições. Não queria ser outra coisa. Por outro lado, aquela história das crianças que ficavam órfãs muito cedo fazia algum sentido. Em África como em qualquer outra parte do mundo. Daí a dedicação ao pequeno André como a um terceiro filho. Não era só vesti-lo, dar-lhe a comida e ficar com ele em certas noites quando os avós não estavam disponíveis e o pai fora. Era brincar com ele quando voltava da escola, contar-lhe histórias para adormecer e emprestar-lhe o colo, o peito, as festas e os beijos quando ele precisasse.
Quando desembarcou em Lisboa já o Sol iluminava todos os cantos do Cais do Sodré. Na noite anterior o André tinha ficado em casa da avó, por isso não foi preciso dormir em casa dele. Mas o pai chegava àquela hora e, depois e descansar, ia ter fome. Era preciso fazer uma sopa, ou uma salada e um bife para quando ele acordasse. Ana Rita deixou o cais de desembarque e misturou-se com a multidão a caminho do Mercado da Ribeira.


(Publicado na colectânea de contos “Histórias de Amanhecer”. Papiro Editora 2006)

2 comentários:

Clarice disse...

Há pessoas que "dão colo" a vida inteira, e é mesmo o melhor que sabem fazer na vida, dar!
Será que é por "ver o dia nascer no meio do rio", que a vontade de dar esconde o desejo de receber?

*amanheci outra vez!

Artur Guilherme Carvalho disse...

É destes seres que outros são possíveis na medida em que lhes aliviam o peso que carregam desde o dia que nascem.
ARTUR