sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

VOO NOCTURNO


Quando a morte passa perto de nós, ficamos com a sensação de andar distraídos há muito tempo. Paramos para pensar e repensar milhares de assuntos, como quem atravessa um túnel, chegando ao outro lado transformados em qualquer coisa muito diferente do que éramos.
Demora cerca de 11 a 12 horas para atravessar o continente africano num eixo Sul – Noroeste, de Joanesburgo a Lisboa. Pelo caminho, noite fora, são muitos os espaços de tempo vazio em que nada acontece no cockpit. A velocidade de cruzeiro do avião e o silêncio quase permanente das comunicações de terra deixam-nos as estrelas como única companhia. É nestas alturas que se pode pensar em todas as coisas, as mais insignificantes, e as outras.
A Mariana morreu há três meses e eu ainda não arranjei maneira de explicar ao meu filho porque é que a mãe nunca o foi visitar. Como é que se explica a morte a uma criança de quatro anos? Eu próprio não me lembro do que é que me disseram quando o meu pai caiu com o avião dele em Angola. Sei que não ouvi nenhuma das palavras da minha mãe, embora conseguisse ler nelas o sentido total da tragédia que acabava de nos entrar pela porta adentro. Parecia que o mundo tinha acabado naquele dia. Tinha sete ou oito anos, estava ainda na escola primária. Embora não visse o meu pai muitas vezes, sempre me senti bem ao pé dele. Quando partiu para a última comissão no Ultramar, não me acordou. Não gostava de despedidas, por isso fazia-as em casa. Na cabeceira da minha cama deixou-me um avião de miniatura que ele mesmo tinha montado. Um “Fokker” Dr. II triplano, o mesmo modelo do Barão Vermelho pilotado durante a I Guerra Mundial, vermelho e branco, com a cruz da Força Aérea alemã pintada nas asas. Guardo esse avião até hoje, como a única coisa que me faz lembrar que alguma vez tive um pai. Isso e uma medalha em forma de cruz, semelhante às do avião, que um velho fardado da Marinha me pendurou no peito no Terreiro do Paço, num 10 de Junho cheio de militares, fanfarras, discursos, viúvas e órfãos como eu. Sempre entendi que devia dar a miniatura do “Fokker” ao meu filho e sempre me recusei fazê-lo. Talvez porque no meu íntimo acreditasse que isso implicaria a minha morte. Uma superstição que, tal como todas as superstições, nascem na terra de ninguém e tomam conta de nós, às vezes de uma forma absurda.
A última marca sobre território de Angola está assinalada na noite pela chama dos poços de petróleo de Cabinda. Segue-se o Congo e o Zaire quase ao lado um do outro. O avião do meu pai caiu algures para Leste, nas terras da Lunda. Nem um nem outro foram alguma vez encontrados. Quando estava a terminar o liceu, meteu-se-me na cabeça a ideia de ir lá à procura. Alugava um jipe, contratava um guia e voltava com um pedaço de chapa do Fiat, um osso ou o capacete de voo. Qualquer coisa para que a minha mãe e os meus irmãos pudessem olhar, tocar e ter memória. Qualquer coisa que, de alguma maneira, o fizesse voltar a casa… para lhe poder agradecer o avião que me deixou na cabeceira antes da última partida.
Lá em baixo a noite escurece o solo, vendo-se esporadicamente pequenas linhas de fogo. São as queimadas da vegetação seca a preparar futuros espaços de pastoreio. Atravessamos o Golfo da Guiné na direcção de Abidjan, Costa do Marfim. Direcção: Senegal. Depois o deserto do Sara. Um brilho metálico e frio mergulhado no azul aveludado da noite. Visível na planura da sua aridez por uma Lua Cheia prateada, que por instantes nos faz esquecer a fome, a sede, a doença, a guerra e tantas outras tragédias que assolam há décadas o continente mártir. A imagem do deserto fez-me lembrar outra vez a Mariana. Lembrei-me de um tempo em que tudo corria bem, em que éramos só nós dois. Um fim-de-semana no Algarve, a praia, o fazer amor entre as dunas abraçados pelo vento, embalados pelo bater das ondas. Julguei ser capaz de resolver o seu problema. Julguei que um filho podia mudar definitivamente o rumo da sua vida. Enganei-me. Nada aconteceu como eu julgava que iria acontecer. Na manhã em que a vi no Tribunal de Família para receber a custódia do miúdo, percebi. As nossas vidas circulavam por estradas diferentes. Ela na mesma estrada que o meu pai, anos antes. Embora com encenações diferentes, seguiam a mesma rota, o mesmo caminho minado, pronto para lhes explodir na cara a qualquer momento. Nem por isso os deixei de amar e de transportar comigo a sua memória até ao fim dos meus dias. As montanhas do Atlas desenhadas no radar servem de último sinal de trânsito que me avisa estar a chegar ao fim do continente africano. Em breve começam os procedimentos de descida a caminho de Lisboa. O discurso da assistente para os passageiros dá-lhes as últimas informações antes da aterragem. Horário no destino, diferença horária do ponto de partida e temperatura. Mais uma vez lembra-se que devem apertar os cintos. Quando a manhã se levanta, a cidade abre-se à minha frente, espraiada ao longo do rio em tons de azul-turquesa. A luz do Sol e a aterragem recarregam-me a adrenalina. Como se tivesse acordado depois de uma noite normal de sono. “Trem em baixo. Flaps!” O comandante olha-me de relance, certificando-se da minha concentração. A aterragem é minha. Chamo a Torre. “Autorizado a aterrar na pista 03”. A segunda circular passa debaixo da barriga do avião quase a roçar o solo. Ainda não há grandes filas de carros. O toque do Airbus A-340 na pista é seguro e normal, sem preocupações. Segue-se a ruidosa inversão de motores para complementar a travagem do aparelho. Lá atrás ouvem-se palmas. Duzentas e setenta almas regressam à Terra ao fim de quase 12 horas de voo.
Quando chegar a casa vou buscar a miniatura do “Fokker” triplano e vou dá-la ao meu filho. Ele que faça o que quiser com ela. Já perdi o medo de morrer como o meu pai. Depois da morte da Mariana libertei-me das superstições. Não há repetições na vida, apenas factos. Coisas que acontecem porque acontecem, muito simplesmente. Do meu pai vou guardar apenas a medalha do 10 de Junho. Para não me esquecer do porquê da sua morte.
Entro no estacionamento e corto os motores. Termino o parking check-list . O voo acabou, podemos ir para casa.

(Publicado na colectânea de contos Histórias de Amanhecer, Papiro Editora 2006)

3 comentários:

Clarice disse...

Também aterrei, quando dei pelo fim deste belíssimo pedaço publicado na colectânea de contos que gostava muito de ler.


"Quando a morte passa perto de nós, ficamos com a sensação de andar distraídos há muito tempo."

*Com a morte ao nosso lado, passamos a estar "atentos" de uma outra forma... há uma liberdade interior maior e uma maior clareza nas nossas escolhas. Perder, faz-nos querer encontrar de um outro jeito, e às vezes aos olhos dos outros isso é muito estranho...

Soube-me muito bem ler estas palavras, hoje particularmente!
Agora até apanhava já um avião... :)

Artur Guilherme Carvalho disse...

Clarice, obrigado pelas tuas palavras. Este conto insere-se em mais três, onde as vidas de quatro pessoas se vão enlançando. A primeira edição está esgotada. Estou a tentar uma 2ª com a editora. Entretanto, se calhar, vou publicar os outros três aqui no blog. É que há leitores que merecem. Obrigado, Bjs
ARTUR

Carlos Lopes disse...

Este eu conheço e tenho. Autografado, ainda por cima. É 5 estrelas.
Um abraço.