A filosofia europeia tem o seu grandioso final no pensamento de Friedrich Nietzsche ; a partir dele, outros rebuscaram as ruínas, escavaram nas lixeiras, negociaram com os resíduos, por vezes muito habilmente, mas também com a consciência de que a época dos grandes sistemas tinha passado à história. Porque Nietzsche apresenta à sociedade uma questão fundamental : o importante não reside na oposição pessimismo/optimismo, nem sequer no confronto entre transcendência e imanência, mas na sua superação, a qual, de algum modo, introduz a dialética hegeliano-marxista no terreno da especulação errática própria da modernidade. O que conta não é o facto de não se acreditar em nada, mas sim que tal suponha a entrega ao desespero. Não acreditar orgulhosamente em nada, conscientes de que esse vazio é a matéria com se que faz o sujeito contemporâneo. E este materialismo do superhomem converte-se, no fundo, num materialismo transcendente, no qual o imediato conduz à experiência da dor de viver como via de conhecimento. Freud aparece também aninhado nas pregas desta interrogação ansiosa de todos os sistemas. Como diz George Steiner em "O Castelo do Barba Azul":
Existe a aquiescência estóica de Freud, a sua suposição, sombria e fatigada, de que a vida humana é uma anomalida cancerosa, um desvio entre vastos estados de repouso orgânico. E existe a alegria de Nietzsche face ao inumano, a percepção tensa, irónica de que somos, sempre fomos hóspedes precários de um mundo indiferente, com frequência homícida, mas sempre fascinante. A teoria da linguagem de Ludwig Wittgenstein é o complemento ideal desta tendência jubilosa em direção ao nada. As palavras dão forma ao mundo, que em si mesmo não tem sentido.
A teoria da linguagem de Ludwig Wittgenstein torna-se o complemento ideal desta viagem jubilosa em direcção ao nada. As palavras dão forma ao Mundo que, por si mesmo, não tem sentido. A literatura centro-europeia de finais do século XIX e princípio do século XX atêm-se a este axioma e não o larga nunca. Para Hermann Broch os edifícios narrativos podem construir-se e destruir-se a gosto, sem que tal signifique o seu conforto terno ou o seu desaparecimento. Estão simplesmente aí, para serem moldados, tal como a vida. Para Robert Musil tudo é questão do pormenor ignorado, que de repente explode e ocupa o lugar do relato, convertendo-no numa narração que-pensa-por-si-mesma. Para Robert Walser, o mesmo pormenor retrai-se e nega a sensção do pensar, que passa a fazer parte da vagabundagem metafísica típica do século. Também na música ocorre algo de parecido, sobretudo a partir do momento em que Arnold Schönberg desconstrói o sinfonismo à força de lhe insuflarem traços de cabaret surrealista, o mesmo método mediante o qual Anton Webern ou Alban Berg recuperam o lied e a ópera para os minimizarem e dessacralizarem. A cultura burguesa europeia entrou assim no seu último beco sem saída.
Teremos que olhar para o cinema como um objecto estranho que interfere neste processo. Há nele algo de bastardo, de intruso, de ladrão que recolhe as migalhas do saber ocidental para lhes arrebatar o último alento de transcendência mal compreendida. Só faltava ver, mas não bastava a fotografia, na qual os mortos continuam imóveis. Havia que observar como se agita e move o fantasma, como pode sobreviver para além de si mesmo, como os restos arqueológicos da grande cultura se reúnem num último arranjo. A coisa real passa a ser uma alucinação, que por sua vez nos devolve o mundo tal como o conhecemos. É um movimento circular que regressa a Nietzsche : amar as sombras, abraçar a dúvida para além de si mesma e transformar essa acção numa imagem que permanece. O cinema nasce, pois, com o estigma da morte estampado na sua fronte, mas também com uma transformação do seu sentido: morrer é renascer, refazer, refanzendo-se. Tudo foi concebido para que a reprodução não tenha fim. E por isso o cinema teve sempre que conviver com a ameaça da sua própria morte. Imagem do desaparecimento contínuo, o cinema morre cada vez que um écran transmite um contorno, mas também renasce das cinzas com o próximo fotograma. Uma forma que pensa, ou uma forma que sente, depois do desabar do pensamento e da lingaugem ?
Nos últimos tempos essa "morte do cinema" enfrentou violentamente a sua versão optimista, a "mutação": o cinema não morreu, apenas mudou de aspecto. À melancolia, ao luto de um Serge Daney, responde o entusiasmo, por exemplo, de Jonathan Rosenbaum. Afinal, é uma questão política, já que à derrocada das ideologias, ao fim da História - e da história - imposto por aqueles que se arrogam como detentores do poder da sua narração, sucedeu a inocência fotocopiada das neoutopias, daquelas que necessitam de acreditar em si próprias, para que outros acreditem. Mas essa necessidade de crença é fomentada a partid o poder, que também requere desesperadamente contrapesos de si mesmo para que não se sinta só na sua capacidade de gerar ilusão. A grande ilusão do neocapitalismo, então, dá lugar às ilusões das neoutopias, comparável a um parque temático do progressismo anti-sistema. Como superar essa nova dualidade a partir do cinema, a partir da imagem, negando a sua morte e, simultaneamente, o seu futuro ? De que modo podemos desejar o cinema do presente sem o mitificar, penetrando na sua matéria feita de transcendência de forma a que a dor se converta em prazer transversal ? Não haverá, depois de tudo, um supercinema capaz de superar a esperança num pós-cinema, um fluxo de origem nitzscheano (o superhomem) e freudiano (superego) capaz de crer apenas em si mesmo como simulacro transcendente ?
2 comentários:
"experiência da dor de viver como via de conhecimento"!
Frase lapidar e reveladora da importância do "conhecimento" no percurso do "homem " enquanto entidade espiritual a viver uma experiência humano. Este sofrimento que nos leva ao encontro do que "na verdade somos", à unidade do ser e ao encontro com a nossa chama divina
ou com Deus em nós! Assim dizem os budistas : " a vida é sofrimento"! Vamos então "viver" a alegria!
Neste vazio secular do homem
"pós-atómico" o cinema tem a sua função a cumprir: despertar consciências sacralizando o mundo e a existência!
Obrigado Arnaldo pelo teu interessante e revelador artigo.
Forte Abraço. Fernando
Machado
Considerando a crença na centelha divina (outra coisa não me faz sentido ao falar de tal), talvez a experiência da dor no viver tenha por detrás a "saudade gnóstica" em que a experiência é aceite como necessária mas sempre dolorosa. Já a via hermetista, encara essa mesma experiência como a alegria, um privilégio.
Obrigado pela partilha
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