terça-feira, 3 de janeiro de 2023

É PRECISO QUE TUDO MUDE

 


 

A tarde ia a meio, o Sol descia pela abertura da porta dando aquele espaço um brilho que nunca lhe pertenceu. À volta da mesa os reformados batiam as cartas sobre a mesa de mármore amolecida pelas poças do tempo e do vinho. Atrás do balcão o dono inclinava a cabeça na direcção da televisão enquanto desenhava círculos esquecidos com o pano sujo. Às vezes lá fora o ruído de um carro, ou de uma mota. Às vezes lá fora uma mensagem do futuro em forma de anúncio. Outras vezes na televisão em enquadramentos de promessas. E depois, tudo a regressar ao interior daquela taberna, a mesma taberna de sempre. Escura, húmida e velha como a maioria das vidas que por lá passavam. As promessas de dias melhores às vezes passavam por ali mas ninguém fazia caso delas. De uma maneira ou de outra voltava tudo a ser como era… como sempre tinha sido. Quando uma nuvem negra desaparecia a televisão vomitava outra nova, baldes de medo e ansiedade eram despejados todas as semanas e esses demoravam sempre mais tempo a passar. Guerra, doenças, instabilidade, economia, impostos, crime, catástrofes em geral. Ao fim de algum tempo ganhava-se imunidade a tudo aquilo. Ficava-se mais velho, mais sábio, mais corajoso, mais indiferente. Um jogo de cartas com os amigos, uns copos de tinto, ou umas bagaceiras valentes nos dias mais frios. A velhice tornava os homens de tal maneira sábios que se esqueciam das próprias maleitas, tendo às vezes que cansar a memória de forma prolongada até se conseguirem lembrar em que parte do corpo tinha sido a última dor que os levou ao médico. Uma vez por outra alguém deixava de aparecer. Sentia-se uma falta, desfiava-se uma recordação e semanas depois não se voltava a falar nisso. Outro viria preencher o lugar à mesa das cartas e do vinho. A televisão continuaria acesa ininterruptamente a um ponto de já ninguém se conseguir lembrar quando é que tinha sido comprada .  Naquela tasca não mudava nada a não ser o tempo, a sucessão das estações, o tempo de cada um desde que começava a frequentar o estabelecimento até deixar de o fazer. O resto continuava eterno e sem grandes variações. Havia o tempo dos homens e havia o tempo do resto…que era sempre o mesmo. Várias vezes se sentia a necessidade de mudar mas era apenas uma necessidade, nada mais do que isso. Ninguém lhe dava muita importância. As necessidades são como gemidos breves libertados pelo sono, ansiedades que não se conseguem perceber. Na tasca onde por vezes era preciso que tudo mudasse, tudo acabava por mudar para que tudo pudesse ficar na mesma.

 

Artur

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