segunda-feira, 15 de agosto de 2011
SOLIDÕES
Se deixar a janela entreaberta ainda sou capaz de ouvir os teus passos. Ainda sou capaz de imaginar o tempo esquecido em que tudo se perdeu e a realidade se esgueirou por uma corrente de ar a caminho da rua. Nostalgia? Saudades? Saudades de quê? De um cigarro tranquilo na calada da noite, antes de adormecer. Da voz de um bêbado que cantava sempre o mesmo fado. Uma letra triste e trágica da história de alguém. Se a janela falasse, ainda poderíamos chegar a uma conclusão. Rectificar pormenores, refazer a história triste de alguém. Mas a janela não quer conversas, limita-se a abanar conforme o vento, talvez concordando, talvez não. Mostra-me as estrelas e a Lua sem comentários, acariciadas pelas nuvens, que de noite se parecem com lençóis de cetim a caminho do mar. E os teus passos que se sucedem através dos meus dedos num teclado escuro, mesmo por baixo de um ecran iluminado. O vizinho do outro lado da rua que se mantém sentado em frente da televisão, o vizinho que dorme um sono triste e espanta as imagens enquanto ressona. O casal jovem que vigia o sono do filho à espera que acorde para poder tomar o leite antes que todos possam voltar a dormir de vez. O adolescente que se escreve num programa de rádio de musicas calmas e sonha mundos que ainda irá descobrir, enquanto deita o canto do olho aos manuais insuportáveis da escola. A maldição colectiva sobre todos, cuja única variante é a idade, a fase em que a atravessam. Onde estarão os passos deles? Se tudo tivesse acontecido de outra maneira, se tudo tivesse decorrido com alguma lógica e bom senso, talvez houvesse espaço para nostalgias e saudades. Assim, da forma que foi, não. Há sons que se adivinham apenas porque já foram ouvidos anteriormente. O que há é uma solidão absoluta e triste que corre o bairro e se torna mais visível durante a noite. Naquele tempo em que todos falamos sozinhos sem esperar por uma resposta. Naquele tempo em que uns ressonam, outros cantam fados antigos e outros ainda escrevem histórias tristes sobre pessoas sós. A janela mostra o céu e o céu mantém-se na mesma. Um mundo de estrelas e de luas flutuantes, constelações, galáxias. Um universo de solidões como as nossas noutro bairro maior que este. Por ali julgo que já consegui ouvir os meus passos. Tão silenciosos que transformam o andar num lençol de cetim a caminho do mar.
Artur
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7 comentários:
Meu querido amigo, agora que finalmente conheci este espaço, conseguiste que o queira conhecer post a post... Só espero não bater com a cabeça em nenhum, porque dói muito: Experiência infantil adquirida da pior maneira!...
Abraço!
Há lugares tão escondidos dentro de nos que dentro deles podemos ouvir coisas que os barulhos deste imenso e fugaz UNIVERSO não nos deixa ouvir... e mesmo com todos esses barulhos podemos tocar as solidões e como bem disse nas linhas finais - Por ali julgo que já consegui ouvir os meus passos. Tão silenciosos que transformam o andar num lençol de cetim a caminho do mar.
É sempre assim.
Lindo desenhar de palavras.
Abraços
Helder,
Espero que as tuas visitas se comecem a tornar um hábito, bem como os comentários. Por aqui "What yo see is what you get". Tentamos postar matérias agradáveis e interessantes. Não fosse a estatística e não saberíamos que algumas dessas matérias já chegaram a nº 1 no motor de pesquisas da google. Grande abraço.
Malu,
É sempre um prazer conhecer novos leitores/consumidores deste blog. Já visitei o seu e já percebi que o negócio é poesia. Actividade que muito admiro, principalmente por ser um imcompetente na àrea. Desejo que nos continue a visitar e a deixar comentários. Aconselho o blog Escrevinhices de um elemento da nossa equipa, bem como I blog Your Pardon, um excelente blog de poesia de um amigo nosso. Até sempre
Artur
"Mas a janela não quer conversas..." será por isso que escreves assim Artur?:) é o vento em ti, ou a brisa...
Gosto muito desta tua crónica, já a copiei para um dos meus livros pretos... um dia vou saber melhor porque gosto tanto dela... é isso que acontece com as palavras mais certeiras... eternizam-se e vão fazendo cada vez mais sentido ao longo do tempo... do nosso tempo... é preciso perceber com o tempo as coisas que nos vão acontecendo na vida...
Uma coisa eu já percebi: gosto mesmo do que escreves!!!:)
LINDO....
* Adorei conhecer este cantinho. Vou voltar mais vezes.
Clarice,
Agora deixaste-me engasgado. Vais passar o texto para um caderno teu. Bolas...Sinto-me honrado. Espero que o vento me continue a ajudar a escrever e a ter leitores como tu. Bjs
Rute, Bem vinda a este canto. É sempre um prazer ter novos visitantes. Já vi o teu blog e as belas imagens acompanhadas de belos poemas. Aparece e fica à vontade.
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