Teve cem ofícios e
nenhum amigo. Ganhou dinheiro que gastou. Leu livros que falavam de um mundo em
que já não acreditava. Começou a escrever cartas que nunca soube como terminar.
Viveu contra sensações e remorsos. Mais de uma vez se aproximou à beira de uma
ponte ou de um precipício, contemplando o abismo com serenidade.
Carlos Ruiz Zafón
in “O Prisioneiro do Céu”
Antes de mais nada, gostaria de
dizer que gosto de tipos que escrevem parágrafos como o que se pode ler no
início desta crónica. Um gesto, uma maneira particular de sorrir, de contar uma
anedota, por vezes são suficientes para desejarmos ser amigos deste ou daquele
logo no primeiro contacto. Foi o meu caso com Zafón. Na eterna cidade da
Literatura (Barcelona) personagens vestidos de improviso e de mistério vão-se
cruzando uns com os outros e todos com as páginas da grande História enquanto
desenham a pequena história dos seus caminhos, das suas existências. O cenário
é sempre o mesmo, o filme é que vai variando de argumento e actores. Há
paragens obrigatórias em todas as histórias como o Cemitério dos Livros
Esquecidos, a livraria da família Sempere e as eternas calles da capital catalã. Seguindo a tradição do romance gótico,
género muito popular no séc. XIX, Zafón desdobra segredos escondidos e repletos
de magia desenvolvendo histórias paralelas através de uma escrita envolvente e
apaixonante. Há histórias a seguir a histórias que se multiplicam e se cruzam
como os caminhos da cidade mágica, histórias que dançam com as palavras e se
exibem como monumentos à imaginação para depois se rematarem em finais no
mínimo inesperados.
Em “O Prisioneiro do Céu”
assistimos ao regresso de Daniel Sempere e do seu amigo Fermín, os heróis de “A
Sombra do Vento”, que irão ser confrontados com um terrível segredo enterrado
há décadas na memória da cidade. Seguindo a linha intrigante e fantástica de “O
Jogo do Anjo”, o autor continua a empurrar os seus personagens para um destino
desconhecido, uma leitura de si próprios que, abalando o seu edifício de
certezas, nunca os deixará iguais ao que eram. Neste caso, Daniel descobrirá
que a sombra com que terá inevitavelmente de se confrontar acaba por ser aquela
que cresce dentro dele.
Com uma escrita cativante, o
autor sente-se confortável no cenário que montou como se de uma vulgar
realidade de bairro se tratasse. E aqui o leitor só conseguirá apreciar a sua
obra se aceitar à partida esta realidade, se sentir confortável com a repetição
de cenários e protagonistas. Como quem visita de vez em quando um universo
familiar, numa relação distante de parentescos, um lugar onde nos dirigimos
sempre que queremos ouvir uma boa história. Apesar de ninguém fazer ideia de
onde se situa o Cemitério dos Livros Esquecidos já todos percebemos que ele
existe, fica em Barcelona e que tem lá um livro à espera para cada um dos seus
visitantes. Tal como a obra de Carlos Ruiz Zafón, um universo gótico repleto de
magia e situações inesperadas, um universo onde temos a certeza de que saímos
sempre de uma forma completamente diferente daquela como entrámos. Em suma, uma
excelente leitura para aqueles que se gostam de deixar enfeitiçar pelas
possibilidades e encantos dessa dama tão rica e tão estranha a que chamamos
Literatura.
Artur
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