domingo, 26 de maio de 2013

O PRISIONEIRO DO CÉU


 

 
Teve cem ofícios e nenhum amigo. Ganhou dinheiro que gastou. Leu livros que falavam de um mundo em que já não acreditava. Começou a escrever cartas que nunca soube como terminar. Viveu contra sensações e remorsos. Mais de uma vez se aproximou à beira de uma ponte ou de um precipício, contemplando o abismo com serenidade.

                      Carlos Ruiz Zafón in   “O Prisioneiro do Céu”

 

Antes de mais nada, gostaria de dizer que gosto de tipos que escrevem parágrafos como o que se pode ler no início desta crónica. Um gesto, uma maneira particular de sorrir, de contar uma anedota, por vezes são suficientes para desejarmos ser amigos deste ou daquele logo no primeiro contacto. Foi o meu caso com Zafón. Na eterna cidade da Literatura (Barcelona) personagens vestidos de improviso e de mistério vão-se cruzando uns com os outros e todos com as páginas da grande História enquanto desenham a pequena história dos seus caminhos, das suas existências. O cenário é sempre o mesmo, o filme é que vai variando de argumento e actores. Há paragens obrigatórias em todas as histórias como o Cemitério dos Livros Esquecidos, a livraria da família Sempere e as eternas calles da capital catalã. Seguindo a tradição do romance gótico, género muito popular no séc. XIX, Zafón desdobra segredos escondidos e repletos de magia desenvolvendo histórias paralelas através de uma escrita envolvente e apaixonante. Há histórias a seguir a histórias que se multiplicam e se cruzam como os caminhos da cidade mágica, histórias que dançam com as palavras e se exibem como monumentos à imaginação para depois se rematarem em finais no mínimo inesperados.

Em “O Prisioneiro do Céu” assistimos ao regresso de Daniel Sempere e do seu amigo Fermín, os heróis de “A Sombra do Vento”, que irão ser confrontados com um terrível segredo enterrado há décadas na memória da cidade. Seguindo a linha intrigante e fantástica de “O Jogo do Anjo”, o autor continua a empurrar os seus personagens para um destino desconhecido, uma leitura de si próprios que, abalando o seu edifício de certezas, nunca os deixará iguais ao que eram. Neste caso, Daniel descobrirá que a sombra com que terá inevitavelmente de se confrontar acaba por ser aquela que cresce dentro dele.

Com uma escrita cativante, o autor sente-se confortável no cenário que montou como se de uma vulgar realidade de bairro se tratasse. E aqui o leitor só conseguirá apreciar a sua obra se aceitar à partida esta realidade, se sentir confortável com a repetição de cenários e protagonistas. Como quem visita de vez em quando um universo familiar, numa relação distante de parentescos, um lugar onde nos dirigimos sempre que queremos ouvir uma boa história. Apesar de ninguém fazer ideia de onde se situa o Cemitério dos Livros Esquecidos já todos percebemos que ele existe, fica em Barcelona e que tem lá um livro à espera para cada um dos seus visitantes. Tal como a obra de Carlos Ruiz Zafón, um universo gótico repleto de magia e situações inesperadas, um universo onde temos a certeza de que saímos sempre de uma forma completamente diferente daquela como entrámos. Em suma, uma excelente leitura para aqueles que se gostam de deixar enfeitiçar pelas possibilidades e encantos dessa dama tão rica e tão estranha a que chamamos Literatura.

 

Artur

 

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