Ficava na secretaria da catequese
da igreja de Sto. Condestável. Um grupo de álbuns de banda desenhada que era
normalmente utilizado por aqueles a quem os pais se atrasavam a vir buscar.
Entre vários, a minha curiosidade concentrava-se n’ “A Marca Amarela”. Saía das
aulas da catequese em linha recta para a secretaria e não descansava enquanto
não deitava mãos aquele álbum que me fascinava sem ter as razões concretas para
tal deslumbramento. Infelizmente a minha avó não demorava muito a vir-me buscar
com grande tristeza minha. Durante alguns meses nunca conseguia passar das
primeiras vinte páginas onde os amigos Blake e Mortimer deambulavam por uma
cidade de Londres escura e chuvosa, cavaleiros andantes na senda das ameaças e
dos mistérios que colocavam em perigo o mundo inteiro. Mais tarde o meu pai,
também ele apreciador do género, acabava por me oferecer esse álbum (a que se
seguiram outros) dando-me finalmente a possibilidade de chegar ao fim naquela
fantástica aventura. Anos depois a minha tia Paula emigrou para Inglaterra,
onde casou e teve o seu único filho. Com esta família passei alguns dos
melhores e mais felizes natais da minha vida a começar pelo dos meus doze anos,
a primeira vez que visitei Londres. Nessa estadia lembro-me perfeitamente de
uma tarde em que o meu tio Frank me levou a visitar a Torre de Londres (onde
tudo começa n’ “A Marca Amarela”) e a paisagem urbana envolvente. Não faltava
ali nada, a chuva, o frio, a noite escura e antecipada de Inverno, o rio Tamisa,
Waterloo Bridge, Westminster. A minha fascinação pré-adolescente dizia-me que
estava dentro do universo de Blake e Mortimer e que seria perfeitamente
plausível que a silhueta de um deles aparecesse ao virar de uma esquina. Anos
mais tarde (92), os Rádio Macau lançaram um álbum com o mesmo nome. Numa das
poucas vezes que falei com o Alex perguntei-lhe se o título havia sido retirado
do livro de Edgar P. Jacobs. Já não me lembro o que é que ele respondeu mas era
capaz de jurar que confirmava a minha suspeita, em homenagem ao fascínio
sentido na nossa infância. Em diferentes épocas da minha vida o universo de um
álbum clássico da banda desenhada visitou-me, surpreendendo-me sempre de cada
vez que o fazia com algo novo.
O Passado é uma maneira de nos
lembrarmos de alguma coisa mas tem uma função ainda mais importante que é o
facto de nos ajudar a construir quem somos, a estruturar o Ser. As memórias
ficam dentro de nós enquanto inquilinos permanentes sem os quais a definição de
identidade fica irremediavelmente incompleta e, consequentemente, seriamente
comprometida. Talvez porque este blog entrou numa modalidade de nostalgia,
talvez porque já há muito tempo que queria falar n’ “A Marca Amarela” e de como
ela se inscreveu várias vezes no meu caminho, aderi ao season spirit. Com as
memórias de estreia do Hélder e o brilhante texto do Arnaldo sobre o Cinema
Europa, o certo é que me vi á vontade para explorar este campo.
As memórias, nunca é demais
dizê-lo, ajudam a estruturar quem somos. Elas fizeram-nos e nós fabricamo-las
um pouco todos os dias tornando-as propriedade nossa. Á medida que o tempo
passa, o acto de lembrar é a ferramenta ideal (se calhar a única) que não nos
permite afastar, ir para muito longe de nós mesmos. O cinema da infância que
foi demolido não deixou por isso de existir. Ficou gravado na imaginação da
época, primeira porta aberta para o mundo. O café da adolescência não encerrou
definitivamente com grande tristeza nossa apesar de nos últimos dez anos lá
termos passado duas ou três vezes. E, por fim, o Passado não é um país
distante. É antes uma casa na qual vivemos quase todos os dias (vá lá, todas as
semanas), um espaço de onde saímos frequentemente porque temos de ir trabalhar,
visitar outros, tomar conta de partes da vida que vivemos em comunidade. O
Passado é um amigo silencioso que nos deixa recados espalhados pelos cantos da
casa, talvez em pequenos post its amarelos, sendo essa a cor da sua
assinatura...a marca amarela…
Artur
2 comentários:
Um dos handicaps de se viver na província dos anos 70, era o acesso a coisas que nos grandes centros urbanos estavam garantidas. Nesta época eu vivia numa vila a norte de Coimbra, e álbuns destes faziam parte do imaginário. Haviam revistas do Tintin e era onde se tomava algum contacto com eles ao ritmo de uma página de cada álbum por revista. Como não se compravam todas as semanas, o que ficava para trás e o que se ia passar a seguir ficava ao critério da imaginação. Bons tempos!... Abraço.
O Tim tim era uma espécie de Time out da banda desenhada, uma ideia de génio de onde dois directores foram o Vasco Granja e o Dinis Machado. Através dessa revista semanal era possível ter contacto pela 1ª vez com uma série de heróis e aventuras que de outra forma seria muito mais difícil. Devia haver um livro sobre o Tim tim. Abraço Hélder
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