segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

A MARCA AMARELA

 

Ficava na secretaria da catequese da igreja de Sto. Condestável. Um grupo de álbuns de banda desenhada que era normalmente utilizado por aqueles a quem os pais se atrasavam a vir buscar. Entre vários, a minha curiosidade concentrava-se n’ “A Marca Amarela”. Saía das aulas da catequese em linha recta para a secretaria e não descansava enquanto não deitava mãos aquele álbum que me fascinava sem ter as razões concretas para tal deslumbramento. Infelizmente a minha avó não demorava muito a vir-me buscar com grande tristeza minha. Durante alguns meses nunca conseguia passar das primeiras vinte páginas onde os amigos Blake e Mortimer deambulavam por uma cidade de Londres escura e chuvosa, cavaleiros andantes na senda das ameaças e dos mistérios que colocavam em perigo o mundo inteiro. Mais tarde o meu pai, também ele apreciador do género, acabava por me oferecer esse álbum (a que se seguiram outros) dando-me finalmente a possibilidade de chegar ao fim naquela fantástica aventura. Anos depois a minha tia Paula emigrou para Inglaterra, onde casou e teve o seu único filho. Com esta família passei alguns dos melhores e mais felizes natais da minha vida a começar pelo dos meus doze anos, a primeira vez que visitei Londres. Nessa estadia lembro-me perfeitamente de uma tarde em que o meu tio Frank me levou a visitar a Torre de Londres (onde tudo começa n’ “A Marca Amarela”) e a paisagem urbana envolvente. Não faltava ali nada, a chuva, o frio, a noite escura e antecipada de Inverno, o rio Tamisa, Waterloo Bridge, Westminster. A minha fascinação pré-adolescente dizia-me que estava dentro do universo de Blake e Mortimer e que seria perfeitamente plausível que a silhueta de um deles aparecesse ao virar de uma esquina. Anos mais tarde (92), os Rádio Macau lançaram um álbum com o mesmo nome. Numa das poucas vezes que falei com o Alex perguntei-lhe se o título havia sido retirado do livro de Edgar P. Jacobs. Já não me lembro o que é que ele respondeu mas era capaz de jurar que confirmava a minha suspeita, em homenagem ao fascínio sentido na nossa infância. Em diferentes épocas da minha vida o universo de um álbum clássico da banda desenhada visitou-me, surpreendendo-me sempre de cada vez que o fazia com algo novo.

O Passado é uma maneira de nos lembrarmos de alguma coisa mas tem uma função ainda mais importante que é o facto de nos ajudar a construir quem somos, a estruturar o Ser. As memórias ficam dentro de nós enquanto inquilinos permanentes sem os quais a definição de identidade fica irremediavelmente incompleta e, consequentemente, seriamente comprometida. Talvez porque este blog entrou numa modalidade de nostalgia, talvez porque já há muito tempo que queria falar n’ “A Marca Amarela” e de como ela se inscreveu várias vezes no meu caminho, aderi ao season spirit. Com as memórias de estreia do Hélder e o brilhante texto do Arnaldo sobre o Cinema Europa, o certo é que me vi á vontade para explorar este campo.

As memórias, nunca é demais dizê-lo, ajudam a estruturar quem somos. Elas fizeram-nos e nós fabricamo-las um pouco todos os dias tornando-as propriedade nossa. Á medida que o tempo passa, o acto de lembrar é a ferramenta ideal (se calhar a única) que não nos permite afastar, ir para muito longe de nós mesmos. O cinema da infância que foi demolido não deixou por isso de existir. Ficou gravado na imaginação da época, primeira porta aberta para o mundo. O café da adolescência não encerrou definitivamente com grande tristeza nossa apesar de nos últimos dez anos lá termos passado duas ou três vezes. E, por fim, o Passado não é um país distante. É antes uma casa na qual vivemos quase todos os dias (vá lá, todas as semanas), um espaço de onde saímos frequentemente porque temos de ir trabalhar, visitar outros, tomar conta de partes da vida que vivemos em comunidade. O Passado é um amigo silencioso que nos deixa recados espalhados pelos cantos da casa, talvez em pequenos post its amarelos, sendo essa a cor da sua assinatura...a marca amarela…

 

Artur


2 comentários:

Hélder Martins disse...

Um dos handicaps de se viver na província dos anos 70, era o acesso a coisas que nos grandes centros urbanos estavam garantidas. Nesta época eu vivia numa vila a norte de Coimbra, e álbuns destes faziam parte do imaginário. Haviam revistas do Tintin e era onde se tomava algum contacto com eles ao ritmo de uma página de cada álbum por revista. Como não se compravam todas as semanas, o que ficava para trás e o que se ia passar a seguir ficava ao critério da imaginação. Bons tempos!... Abraço.

Artur Guilherme Carvalho disse...

O Tim tim era uma espécie de Time out da banda desenhada, uma ideia de génio de onde dois directores foram o Vasco Granja e o Dinis Machado. Através dessa revista semanal era possível ter contacto pela 1ª vez com uma série de heróis e aventuras que de outra forma seria muito mais difícil. Devia haver um livro sobre o Tim tim. Abraço Hélder