sábado, 2 de fevereiro de 2013

O NEVOEIRO E AS SOMBRAS






Este texto tem origem na apresentação do livro "O Nevoeiro e As Sombras", de Artur Guilherme Carvalho", constituindo-se como uma extensão e aprofundamento dessa apresentação. Não representa uma leitura linear da obra, nem uma tentativa de hermenêutica fechada da mesma; pelo contrário, pretende ser um pequeno exercício muito pessoal de aproximação a algumas das temáticas que a leitura do livro evoca no espírito do leitor comum que sou, ou se quiserem, um testemunho. Assim, esta leitura não compromete o autor que, de qualquer modo, pode até nem se rever no todo ou em qualquer uma das partes deste comentário. Não que isso importe: o encontro de um livro com os seus leitores é um fenómeno que não é controlado pelo autor, e este é o aspecto mais fascinante dessa relação difusa e misteriosa. O texto escrito implica, entre o escritor e o leitor, uma promessa de sentido, sendo que aquilo que é prometido só pode ser cumprido na relação, o que significa que o sentido não se manifesta por antecipação, não está dado, não é óbvio: é antes uma conquista de cada leitor que, munido apenas dessa vontade de sentido, se procura apropriar da luz e afastar-se da sombra que cada obra projecta. Conta-se que Theodor Herzl e Adolph Hitler assistiram no mesmo dia a uma récita da ópera "Rienzi", de Richard Wagner, em Viena. Ao primeiro, a obra inspirou-lhe o ideal sionista e a redenção de todos os homens de boa vontade; ao segundo, a teoria da supremacia racial germânica e a urgência de exterminar os judeus e outros indivíduos não pertencentes ao ideal da raça ariana- Muitos anos depois, o filósofo francês Emmanuel Levinas, uma das vítimas do nazismo, escrevia um texto em que opunha as pretensões impostas e a forclusão da totalidade, do totalitário, e a promessa libertadora, essencialmente messiânica, do infinito.


I. Começarei por relembrar a violenta diatribe que Friedrich Nietszche  lança nas "Considerações Intempestivas" contra dois tipos de visão da História que considera catastróficas : a história monumental e a história antiquária, opondo-lhes a força plástica e estética de uma supra-história ou meta-história, que é a única capaz de resistir ao canto das sereias hegelianas dos grandes períodos , dos cumes de uma progressão teleológica das coisas e da promessa de um progresso infinito e indeterminado da história, a caminho da perfeição e da realização do Espírito, e às manias do antiquário que etiqueta as suas colecções e as arruma nas estantes de um passado morto ou domesticado. Essa supra-história encontrava-a Nietszche nas manifestações mais autênticas da arte, literária ou outra. Invoco estes pensamentos do filósofo alemão para me servirem de guia no comentário do âmbito da reflexão sobre a História - ou de uma filosofia da História - que encontro em filigrana no livro do Artur.

II. O passado não nos governa, nunca nos governou, isto é, não nos determina senão no sentido biológico ou genético. O que realmente nos determina são as imagens do passado, tão estruturadas e imperativas como os grandes mitos e as grandes narrativas. Elas encontram-se impressas na nossa sensibilidade à maneira de informações genéticas a que não podemos escapar e que não conseguimos iludir, sob pena de não nos reconhecermos, ou de nos perdermos numa identidade labiríntica. Esses ecos, são os meios através dos quais cada sociedade, em cada época, procura determinar a sua autoridade, a sua própria voz, a sua lógica. A nossa experiência do presente, os juízos tantas vezes negativos que fazemos do nosso lugar na História, vivem continuamente contra esse fundo de legitimação.
Apesar destas determinações, essas imagens do passado são como clarões que, uma vez entrevistas, correm o risco de desapareceram para sempre: a História afasta-se velozmente de nós e das nossas pretensões à perenidade e à duração. Como diz Walter Benjamin em "Dez Teses Sobre o Conceito de História": "Irrecuperável é ,com efeito, toda a imagem do passado que corre o risco de desaparecer com cada instante do presente que nela não se reconheceu". Esta operação de resgate das imagens do passado fundamenta o núcleo essencial de "O Nevoeiro e as Sombras", num sentido muito específico.

III. A época em que a trama narrativa da obra se desenrola é uma daquelas em que se verifica o fenómeno de aceleração do tempo histórico, provocando essa aceleração uma assincronia entre o tempo cronológico e o tempo histórico, ou seja, uma aceleração brutal do tempo vivido, por contraposição ao tempo transcorrido. Significa isso uma alteração da percepção, ou da experiência, dos indivíduos, ficcionais ou reais, resultando colectivamente numa estimulação tremenda das terminações nervosas de uma sociedade. As grandes tempestades do Ser, as metamorfoses violentas da paisagem histórica, provocam igualmente um adensamento da experiência humana. A grande mestria deste romance consiste, entre outras coisas, no entrelaçamento plenamente conseguido das vivências pessoais das personagens, os acontecimentos históricos e a percepção do tempo histórico na existência comum desses homens e dessas mulheres, numa altura em que a própria História se torna o meio de existência do homem comum. Por outro lado, Artur Carvalho capta o "zeitgeist" (espírito do tempo), naquilo que ele tem de mais angustiante: a experiência alargada de violência, instabilidade e medo, magnificados pela volatilidade política de uma sociedade de massas emergente. Em Portugal, a modernidade, imposta do exterior, ou por forças internas actuantes, provocou sempre uma experiência traumática a que não são alheios atavismos e forças de reacção muito poderosas. A estas determinações teremos que juntar as cicatrizes deixadas pela I Guerra Mundial, um outro nível de experiência traumática para a qual não estavam preparados os homens que nela participaram, os portugueses e os de outras nações, mais habituadas a modernidades tecnológicas e a essas sofisticações da civilização que tantas vezes redundaram na mais cruel das barbáries. O grande escritor alemão Ernst Jünger escreveu um livro sobre a sua participação no conflito e sobre os efeitos que ele provocou nos indivíduos, livro esse a que chamou "A Guerra Como Experiência Interior", entrando o termo "experiência" no vocabulário filosófico com um significado polissémico, múltiplo, mas sempre associado a efeitos muito violentos na sensibilidade e na consciência. Um outro combatente, o poeta francês Charles Péguy morto nas trincheiras da Flandres, chamou-lhe "tempestades de aço". O grande historiador inglês Arnold Toynbee considerou que o século XX começou em 1914. Franz Kafka disse algures que não valia a pena perdermos tempo com livros que não fossem como a machadada do alpinista que quebra o gelo dentro dos nossos crânios e das nossas consciência. A inauguração do buraco que há-de tornar-se o monumento aos combatentes da Grande Guerra é uma dessas machadadas.

 
IV As expectativas de progresso, de emancipação pessoal e social, que outrora se revestiam de carácter convencional, e muitas vezes alegórico, de um horizonte milenar (os amanhãs que cantam), tornaram-se na época descrita no livro extremamente próximas. A grande metáfora da renovação, da criação, como por uma segunda vinda da graça secular, de uma cidade justa e racional para o homem, adquire a urgência premente de uma possibilidade concreta. Imagino a continuação deste livro: o retrato do colapso das esperanças revolucionárias, a brutal desaceleração do tempo e das perspectivas radicais, deixando atrás de si um deserto, um amontoado de ruínas, uma enorme quantidade de energias turbulentas e sem escape. O país de Camilo Castello Branco, por instantes ressuscitado, volta a ser domesticado, regressando à mansidão do país de Eça de Queiróz, mais refinado, mas muito mais hipócrita, manobrador, quezilento e medíocre. Atenuam-se as violências e as paixões homicidas, substituídas pelo cheiro a ranço das sacristias e pelo fedor a mofo das velhas crenças e do sarro das boas consciências.

V. Heteronímia identitária, "incapacidade de inscrição", volatilidade das convicções e livre arbítrio: as personagens deste livro escolhem ser agentes dos processos de mudança social, heróis colectivos, canalhas sem redenção ou marionetas nas mãos de poderes ocultos, apenas entrevistos pelos mais argutos dentre eles. Ou, como diz Mário de Sá Carneiro num poema escrito por esses anos: "Eu não sou nem sou o Outro, / Sou qualquer coisa de Intermédio/ Pilar da ponte de tédio / Que vai de mim para o Outro".

VI. O Artur Carvalho é um moralista. De resto, todos os escritores o são, em maior ou menor grau: tenta a análise de uma sociedade que se condena a si própria por causa dos actos individuais (sabemos como esta história acabou); observa uma comunidade em decomposição e que, nas cidades ou nos campos, em todas as classes sociais algo está permanentemente errado, desacertando sistematicamente. Mas este não é o olhar de um moralista convencional, que compara os comportamentos com códigos éticos pré-estabelecidos, emitindo juízos; o moralista de "O Nevoeiro e As Sombras" é um grande narrador de casos humanos que ora observa com amargura e inquietação, ora com uma ironia fina que é, para todos os efeitos, uma forma de distanciamento que exclui a frieza do entomologista. A amargura e a inquietação são edificantes até um ponto: o lugar exacto em que uma obra literária pode ser pedagógica sem pretender sê-lo.

VII Qual é o efeito último deste tipo de obras ? Alicerçar as estabilidades clássicas da nossa inteligência e da nossa sensibilidade, inserindo-se de pleno direito na corrente daquilo a que Harold Bloom chamou com toda a propriedade "o canône ocidental"; mais um manifesto em prol da liberdade e da dignidade humanas, coisas de que ultimamente andamos falhos, ameaçados que estamos pelos movimentos centrífugos e anárquicos da política moderna.

4 comentários:

Artur Guilherme Carvalho disse...

Irmão, deixaste-me seco e imóvel, sem articular som nem mexer um dedo. Adoro-te, OBRIGADO.

A.Teixeira disse...

Muito bom!

Hélder disse...

Ainda vou a meio, infelizmente agora não consigo ler um livro num dia, como aconteceu por exemplo com o livro "Todos os Ventos do Mundo" do Manuel Gomes Martins. Não porque não queira, ou não me interesse. Pelo contrário - estou a adorar e identifico espantado coisas que me foram familiares na minha infância, nos momentos convividos com os meus avós. Eram excelentes contadores de histórias, num tempo em que a electricidade ainda não tinha chegado ás aldeias onde viviam. Eu ouvia-os o tempo que eles quisessem... Havia espaço e tempo para os sons, cheiros e magia, e para a contemplação das estrelas ao som das descamisadas do milho e do som dos petromaxes. O problema, em conseguir ler um livro de enfiada, é o raio do tempo que não dá para tudo e dos compromissos. O filme que estou a ver, só meu, egoísta, resultado do argumento deste livro, está-me a dar um prazer imenso. Pena que tenha de o ver em episódios, e não todo sem pausas!... Obrigado Artur pelo livro, e Arnaldo pela apresentação genial. (tentei ser sucinto...) ahahah

Hélder disse...

Agora que acabei de ler "O Nevoeiro e as Sombras", peço encarecidamente ao Artur que continue a gastar nomes de tios e tias para personagens das suas obras. E que nunca acabem! E quando, na eventualidade de os gastar todos, eu lhe posso emprestar uma extensa lista dos meus. Um livro fabuloso. Um final magistral. Obrigado meu querido amigo. Continua.