Eis a semana de um homem vulgar:
Sábado: (manhã) Reunião com um grupo de Aikido na Várzea de Sintra: duas horas a praticar a nobre arte, de uma forma descontraída, alegre, quedas e mais quedas, por vezes sem motivo, só pelo prazer de cair. Este, como todos os outros prazeres, tem muito que se lhe diga.
O sábado, adiantada manhã, começa a degradar-se: compras, o afã das compras, a tortura do supermercado, tentando não gastar muito dinheiro (coisa difícil, quando temos que alimentar cinco pessoas, sendo duas deles uma nova espécie de lobos esfomeados, que devoram tudo o que não mexe (e às vezes também o que mexe...)).
Adio para o fim da tarde um passeio na praia com a Matilde e o cão. Finalmente, nem para o fim da tarde.
Domingo: Almoço. A única vez em toda a semana que consigo reunir à mesa toda a matilha. Aproveito para exercer a esvaída autoridade paternal, fazendo perguntas, dando conselhos, fingindo uma sabedoria que não possuo e que, não possuindo, não posso transmitir (lembro-me do verso de Camões: "Não está em meu poder dá-la nem quitá-la"). Proíbo pela enésima vez o uso de telemóveis à mesa. Uma conversa sobre futebol entre os dois mais velhos descamba numa acesa discussão, seguida de insultos verbais e ameaças de agressão física. A custo, ponho cobro aos desmandos e remeto-os para as suas vidas, dispensando-os do almoço familiar e da maçada de aturarem os velhos, a miúda, o cão, os sermões e as perguntas indiscretas. Apaziguados, voltam tranquilamente aos telemóveis, aos computadores e a quaisquer outras parvoíces a que os adolescentes de hoje se dedicam.Não por muito tempo. Daqui a pouco virão, mansos e cordatos, pedirem a subvenção para a gasolina e para "um café".
Finalmente, consigo chegar à praia. Está sol, mas o vento quase não deixa que nos ouçamos. O cão foge e vai incomodar um casal de namorados entretidos nas promessas mútuas e em outras brincadeiras. Fazem cara de poucos amigos. Seguimos em frente, isto é, para o lado, já que a ventania não deixa que façamos um percurso normal. "-Pai, estamos à espera da Primavera ? Sim. - E porque é que a Primavera ainda não chegou ? - Porque o planeta tem que rodar à volta do Sol, para que as estações mudem - Então, porque é que o planeta não fica sempre quieto e assim, era sempre Primavera, estava sempre bom tempo e muito quentinho..." Quem me manda a mim verter sobre mentes infantis os poucos conhecimentos científicos que possuo ? A lógica das crianças opõe uma barreira intransponível às grandes leis que gerem o Universo.
À noite procuro ajudar o do meio na interpretação de "Felizmente Há Luar". A obra de Sttau Monteiro provoca bocejos, olhadelas ansiosas para o telemóvel estrategicamente colocado na cadeira, e uma generalizada aversão a histórias que não metam lutas entre gangs rivais massacrando-se mutuamente com a ajuda de serras eléctricas e picaretas, surfistas capazes de vencerem ondas de 100 metros enquanto deglutem hamburguers e piscam o olho às fãs bronzeada em fio dental que, da praia, torcem e sofrem por eles ou de condutores de carros que circulam a duzentos à hora na baixa da cidade, em hora de ponta, toureando incólumes autocarros, peões, polícias e bombeiros, deixando atrás de si um rasto de destruição semelhante ao das cidades bombardeadas durante a II Guerra Mundial. A Literatura portuguesa não tem futuro. Finalmente, quando o gado menor recolhe aos aposentos (para mais meia hora de comunicação infrene com os membros da seita que não viam há meia hora e com quem hão-de estar logo de manhão, às oito horas) e a patroa, derreada, também se vai deitar, preparo-me para ver um filme, escolhido criteriosamente : "Una Giornata Particolare", de Ettore Scola. Adormeço no sofá, ao fim de dez minutos, ainda o Mastroianni não tinha conhecido a Loren, sua parceira desse dia "tão especial".
O Domingo aproxima-se do fim. Balanço : 1-1.
Segunda, terça, quarta, quinta,. sexta: Trabalho. Olho para esta casa, o local onde há 25 anos desenvolvo a minha actividade profissional e lembro-me dos tempos esplendorosos que aqui vivemos. Onde estão esses tempos ? Olho para os esforços que continuamos a fazer e pergunto-me como é possível continuarmos a desenvolver as nossas actividades, proteger o património e prestar serviço público, se tudo isso é considerado despesa supérflua ? Observo a estratégia da luminária das Finanças: estrangular e constranger as instituições até que elas, por si próprias, diminuam as suas actividades para o minímo dos minímos. Exaustas e esgotadas, hão-de render-se à sua evidente inutilidade. Pois desengane-se, sr. Gaspar: daqui a uns anos ninguém se lembrará de si (a não ser pelo pormenor de ter conseguido destruir o país) e a Cinemateca e outras instituições ainda andarão por aqui; os especatdores continuarão a vir às salas de cinemas, os investigadores e académicos continuarão a procurar a nossa biblioteca e haveremos de continuar a restaurar e guardar os filmes que as gerações anteriores nos deixaram para que os legássemos às gerações posteriores.
Amanhã é sábado. Tudo recomeçará. "It's all the same fucking days !"
1 comentário:
Caro Arnaldo, acho que é comum ficar frustrada aquela sensação de um fim de semana vitorioso, em que os objectivos e as perspectivas são plenamente atingidos, como tempo de qualidade passado com aqueles que mais nos importam. São demasiadas variáveis à espera de oportunidade para estragarem os nossos sábios planos. Sem dúvida, que de quando em vez esse objectivo se ganha, é uma sensação de saciedade altamente gratificante.
Quanto ás coisas da cultura e não só, lembro-me recorrentemente da imagem da canoa de competição onde se tenta optimizar a sua performance, dando cada vez mais importância ao tipo que dá voz de sincronização dos remadores, e para a canoa ficar mais rápida se vai cortando no peso dos remadores até ficar só o da voz afónico e sem ninguém para remar, e a canoa, muito mais leve, inerte, a ir inevitavelmente na corrente para a catarata que a há-de engolir. Enfim, decisões e prioridades que hipotecam o futuro da cultura (e não só) de um povo.
Amanhã? Amanhã tudo será melhor.
Abraço.
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