No seu universo esteticamente perfeito
e equilibrado, Nandinho acreditaria quase até aos dez anos no Pai Natal e na
cegonha que traz os bébés de Paris.
No Pai Natal, porque todos os
natais recebia presentes que se materializavam na chaminé da cozinha, segundo
os seus pais, trazidos pelo generoso velhinho de longas barbas brancas, que
gostava de crianças e assim as recompensava por terem sido boas ao longo do ano
– para além das prendas recebidas, o implícito e inegável reconhecimento do bom
serviço prestado pelo pequeno! E depois, as prendas estavam lá, não estavam?
Prova aceite.
Na cegonha dos bébés, porque
sempre lhe tinham dito que era assim que os bébés eram trazidos aos pais. Além
disso, quando a irmã nasceu na mesma clínica onde ele tinha nascido, e o
levaram a vê-la pela primeira vez, lá estava num lugar de destaque do hall de
entrada, uma estátua em tamanho gigante de uma cegonha com uma fralda no bico e um bébé pendurado na dita, tudo isto em sinal de homenagem - prova
aceite.
Uma pura ingenuidade infantil
- por pouco adolescente - que o fazia viver num universo mágico de fantasia, ilusoriamente
fácil.
Mas era um universo como todos,
em evolução, revolução e mutação, à medida que foi descobrindo as cruas verdades
da vida.
A fenda que iniciou o
esboroar desta percepção perfeita, superprotegida, foi o seu primeiro contacto aos
quatro anos com a morte de alguém muito próximo. O seu grande amigo Reis tinha
ido de repente para um lugar incompreensível. Um lugar onde lhe diziam que ele
estava bem mas de onde não podia regressar. Toda a gente gostava do Reis e ele
não tinha feito mal nenhum a ninguém, era o seu melhor amigo, companheiro
protector de aventuras diárias. Os pais e a Nênê adoravam-no e ele tinha-se ido
embora para um sítio de onde não podia voltar, mesmo que quisesse?! Então
porque é que ele tinha ido para lá? Depois, os pais ainda lhe tinham dito para
não perguntar à Nênê pelo Reis, porque assim ela ficava ainda mais triste. Mas o
Reis já não gostava dele nem da Nênê? Coisa estranha e dolorosa que iria permanecer
por algum tempo na sua prateleira mental dos assuntos pendentes.
Até entender a morte. Até
começar a perceber que a vida não era só alegria e um torpor de sedosa
suavidade.
O contacto com as outras
vertentes da vida, fá-lo-iam valorizar todas as coisas que tinha tido como inquestionavelmente
certas.
Ele não viveria para sempre e as
pessoas de quem gostava também não.
O Pai Natal não existia.
Os bébés não eram trazidos de
Paris pelas cegonhas.
Há muitas coisas que não fazem qualquer sentido. Completamente incompreensíveis.
As pessoas podiam errar sem
querer, propositadamente, ou por convicção.
Ele também.
O conforto material não era acessível
a todos.
Aquilo que é certo para uns,
não o é para outros.
Muitos não aceitam essas
diferenças, a ponto de matar.
Poderiam ser diferenças
culturais, políticas, étnicas, religiosas, racistas, desportivas, de opção de
orientação sexual, e muitas mais numa listagem interminável.
Diferenças sem fim, que em vez
de tornarem o mundo mais diversificado, mais colorido e interessante, abriam valas
e erguiam muros entre pessoas, entre povos, muitas vezes por motivos extraordinariamente fúteis, sem
importância, ou por outros igualmente incompreensíveis como a ganância, a
arrogância, a soberba, o desejo de domínio sobre tudo e de todos sem olhar a
meios.
As diferenças, quando não se
sabem respeitar, tolerar, aceitar em coexistência, têm um potencial ilimitado para escravizar os mais
fracos ou acabar com aquilo que se tem de mais valioso quando se nasce e
enquanto por cá se anda, cada qual no seu Universo.
A preciosa
Vida.
Hélder
Hélder
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