quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

A DISSOLUÇÃO DA PERFEIÇÃO



No seu universo esteticamente perfeito e equilibrado, Nandinho acreditaria quase até aos dez anos no Pai Natal e na cegonha que traz os bébés de Paris.

No Pai Natal, porque todos os natais recebia presentes que se materializavam na chaminé da cozinha, segundo os seus pais, trazidos pelo generoso velhinho de longas barbas brancas, que gostava de crianças e assim as recompensava por terem sido boas ao longo do ano – para além das prendas recebidas, o implícito e inegável reconhecimento do bom serviço prestado pelo pequeno! E depois, as prendas estavam lá, não estavam? Prova aceite.
Na cegonha dos bébés, porque sempre lhe tinham dito que era assim que os bébés eram trazidos aos pais. Além disso, quando a irmã nasceu na mesma clínica onde ele tinha nascido, e o levaram a vê-la pela primeira vez, lá estava num lugar de destaque do hall de entrada, uma estátua em tamanho gigante de uma cegonha com uma fralda no bico e um bébé pendurado na dita, tudo isto em sinal de homenagem - prova aceite.

Uma pura ingenuidade infantil - por pouco adolescente - que o fazia viver num universo mágico de fantasia, ilusoriamente fácil.

Mas era um universo como todos, em evolução, revolução e mutação, à medida que foi descobrindo as cruas verdades da vida.

A fenda que iniciou o esboroar desta percepção perfeita, superprotegida, foi o seu primeiro contacto aos quatro anos com a morte de alguém muito próximo. O seu grande amigo Reis tinha ido de repente para um lugar incompreensível. Um lugar onde lhe diziam que ele estava bem mas de onde não podia regressar. Toda a gente gostava do Reis e ele não tinha feito mal nenhum a ninguém, era o seu melhor amigo, companheiro protector de aventuras diárias. Os pais e a Nênê adoravam-no e ele tinha-se ido embora para um sítio de onde não podia voltar, mesmo que quisesse?! Então porque é que ele tinha ido para lá? Depois, os pais ainda lhe tinham dito para não perguntar à Nênê pelo Reis, porque assim ela ficava ainda mais triste. Mas o Reis já não gostava dele nem da Nênê? Coisa estranha e dolorosa que iria permanecer por algum tempo na sua prateleira mental dos assuntos pendentes.

Até entender a morte. Até começar a perceber que a vida não era só alegria e um torpor de sedosa suavidade.

O contacto com as outras vertentes da vida, fá-lo-iam valorizar todas as coisas que tinha tido como inquestionavelmente certas.

Ele não viveria para sempre e as pessoas de quem gostava também não.
O Pai Natal não existia.
Os bébés não eram trazidos de Paris pelas cegonhas.
Há muitas coisas que não fazem qualquer sentido. Completamente incompreensíveis.
As pessoas podiam errar sem querer, propositadamente, ou por convicção.

Ele também.

O conforto material não era acessível a todos.
Aquilo que é certo para uns, não o é para outros.
Muitos não aceitam essas diferenças, a ponto de matar.
Poderiam ser diferenças culturais, políticas, étnicas, religiosas, racistas, desportivas, de opção de orientação sexual, e muitas mais numa listagem interminável.
Diferenças sem fim, que em vez de tornarem o mundo mais diversificado, mais colorido e interessante, abriam valas e erguiam muros entre pessoas, entre povos, muitas vezes por motivos extraordinariamente fúteis, sem importância, ou por outros igualmente incompreensíveis como a ganância, a arrogância, a soberba, o desejo de domínio sobre tudo e de todos sem olhar a meios.

As diferenças, quando não se sabem respeitar, tolerar, aceitar em coexistência, têm um potencial ilimitado para escravizar os mais fracos ou acabar com aquilo que se tem de mais valioso quando se nasce e enquanto por cá se anda, cada qual no seu Universo.

A preciosa Vida.

Hélder


1 comentário:

Anónimo disse...
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