quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

UNIVERSO COLAPSANTE



Na rua os cabelos e barbas estavam a crescer, reflexo de um misto de cultura “ye-ye” e de um simbolismo contestatário do sistema.

Lá por fora, uma revolução estudantil e um enorme evento musical enlameado, tinham ecos agitadores nas mentes mais esclarecidas e com maior acesso à informação.

Aos poucos ia-se sentindo uma baforada mais fresca, primaveril, que se prestava dentro de alguns anos a arejar o mofo de décadas de uma sociedade arrebanhada.

Naquele final dos anos 60, as saias usadas pelas jovens estavam a ficar com falta de tecido, talvez pelo uso excessivo dele pelas mais velhas, talvez por causa de uma irreverente Mary Quant.

Algures queimavam-se soutiens.

Vozes mais destemidas tentavam em surdina, um pigarreio que lhes permitisse exprimir de maneira mais clara o desacordo por um sistema e por uma guerra que levava aqueles que estavam na primeira linha da vida para abrir caminho a um futuro que se desejava melhor. Uma geração mais preparada, mais instruída do que as anteriores, lançada para selvas devoradoras de homens e almas. Isso e outras coisas que não se podiam questionar. As tais coisas sagradas pelas quais se cometem as maiores atrocidades: Deus, Pátria, Família, sendo que a sobrevivência da última era dada como motivo asfixiante para alimentar os das outras duas.

De vez em quando ouvia-se o lamento sumido de alguém que recebia um estropiado, um enlouquecido, uma morte. Nos Estados Unidos era a guerra do Vietname. Portugal tinha várias versões do seu Vietname na Guiné, Angola e Moçambique, que de tão insanamente reais para os que lá estavam, mesmo convertidas em escrita ou filme, nada deviam à americana. Este império a colapsar também tinha a sua Alcatraz no Tarrafal, reactivado em 1961 depois de um encerramento de sete anos, como Campo de Trabalho do Chão Bom, para receber os prisioneiros das colónias.

Uma brutalidade ilógica como todas as guerras, que em crescendo se tornava mais cruel e infindável, e por isso, a cada dia mais presente na vida de todos.

Uns anos antes em 1961, quando as colónias africanas se prestavam a agitar com a bandeira da independência, já o pai recebera ajudas de custo e guia de marcha para a India. No entanto, por um desígnio providencial livrava-se à ida. Na vertigem de ir para uma guerra anunciada, ele e os camaradas gastaram todas as ajudas de custo, criando-lhe uma chatice imprevista e de resolução tramada. No dia anterior à partida, ficou a saber que estava tudo cancelado e teria de as devolver. Valeu-lhe nova guia de marcha para Angola, trocada pela vontade de um camarada seu em ir na sua vez, poupando-o a uma página negra da história portuguesa.

O contingente português na India tinha-se rendido: o general Manuel Vassalo da Silva, o último governador do Estado Português da India, último governador-geral de Goa, Damão e Diu, poupara a vida de 4400 homens e evitara a destruição de Goa, numa clara afronta ao velho mais poderoso da nação que lhes exigia o sacrifício da vida na defesa do nome da pátria.

Seria o general Vassalo da Silva votado ao mais profundo desprezo por uma pátria que tinha servido com empenho, depois de recusar a sugestão do suicídio dada num encontro com um lacaio político na prisão indiana, que lhe tinha deixado em cima da mesa da cela um frasco com cianeto. Voltar à sua terra, só morto. Manuel Vassalo da Silva tinha trazido a Goa um desenvolvimento extraordinário nos últimos três anos de governação. No entanto, e tal como na segunda grande guerra tinha acontecido a outro grande português, o cônsul em Bordéus Aristides Sousa Mendes, que salvou muito mais altruisticamente do que Schindler milhares de judeus, a pátria mãe era madrasta com aqueles se atreviam corajosamente a desafiar, e efectivamente contrariar o poder instituído.

Anos mais tarde o velho cairia de uma cadeira, no Forte de S. Julião da Barra.

O miúdo tinha a sorte de ter uns pais que compraram uma televisão quando ele tinha oito meses, ouviam rádio e assinavam o Século Ilustrado, uma revista de actualidades onde a imagem era parte importante. Uma Time à portuguesa, embora com as “devidas correcções” do lápis azul. O garoto ainda não sabia ler, mas as imagens que via na televisão e nas revistas, a maioria delas de significado incompreensível para si, eram-lhe estimulantes e atraíam-no por coisas que não via no seu universo palpável.

Nunca se esqueceria, por toda a liberdade e equilíbrio que afortunadamente tinha na sua vida, do choque que teve, por uma chamada de atenção apavorada da Nênê. Tinha dito bem alto na rua a palavra “Rússia”!

Não era nenhuma asneira, porque essas aprendia-as com os primos mais velhos das Caldas da Rainha, que afincadamente se entretinham a fazê-lo repetir palavrões, como se de um papagaio se tratasse. Divertia-os disponibilidade dele para os satisfazer naquele chorrilho de impropérios inconsequentes. A ele divertia-o ser o palhaço de serviço, o actor principal que dava alegria à ampla plateia de uns quinze. Quando os pais depois o ouviam repetir aquelas palavras, diziam-lhe que eram palavras muito feias e para não as repetir, o que lhe causava alguma estranheza. Nosso Senhor zangava-se com os meninos que diziam aquelas coisas. “Palavras feias”… mas afinal elas faziam rir e eram feias?! Se faziam rir e rir era indiscutivelmente melhor que chorar, como podia Nosso Senhor ficar zangado por uma coisa que era boa? Ainda tentava com a Nênê e o Reis mas a reacção era a mesma, e assim ficava com dois carimbos de certificação, em como sabia que não as devia dizer a ninguém - bem, ao pé dos primos podia ser. Por isso, estranhou aquele susto da sua ama na reacção a uma palavra, que não estava no léxico das que lhe foram ensinadas pelos primos. Jamais se esqueceria.

Mais tarde, não muitos anos depois, haveria de compreender porquê.

Mas para aquele pequeno selvagem livre, o primeiro contacto com a censura, mesmo em versão protectora, a sensação foi inesquecível, momentaneamente castradora. 

Uma gaiola sem grades.

Hélder

2 comentários:

Paula disse...

Que tal escrever um livro? :) fico à espera do resto da história

Hélder disse...

Agradeço humildemente o incentivo. :)