terça-feira, 31 de março de 2020

Diário da Peste 19/3/2020

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Pelo mundo, a imbecilidade de muitos líderes estúpidos irá custar centenas de milhares de vidas. E se tal estultícia se deveu ao facto de ignorarem a ciência, o que isso significa é que a sua impreparação intelectual, não tendo evitado a sua eleição, será responsável por muitas vidas de pessoas que neles confiaram e votaram. É irónico e cruel e triste e tanta disfunção só tem a solução de se voltar a prestar atenção às humanidades, nem que seja como uma verdadeira propedêutica para o pensar. Por isso, afirmo aqui, que todos aqueles que desdenham das humanidades perguntando pela sua utilidade, pelo seu valor económico e de um modo ou de outro promovem o seu amesquinhamento (e que cortam com determinação radical o seu financiamento) que se estão agora assustados, se temem pela sua saúde e pela sua vida então também são responsáveis pois só a promoção e valorização da Cultura como dimensão integrada da ciência, da técnica e das humanidades permite a verdadeira emancipação, a capacidade crítica, o rigor e a exigência que devia ter a sua expressão nas urnas. E isto também vale para Portugal porque se está seguindo aqui tal movimento de erosão das humanidades.
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Contudo, a declaração do Estado de Emergência foi a correcta, por mais perigos políticos e sociais que isso acarrete, porque há um largo consenso científico em torno da necessidade imperiosa de impor isolamento. São questões de vida ou de morte, de um transe que tem de ser ultrapassado mesmo que os riscos impliquem a possibilidade de uma viragem em direcção ao populismo. Para os mais desconfiados há um argumento lógico de difícil refutação: há uma certeza que é a desta peste e uma incógnita quanto à evolução política e até económica. E  se essas forem batalhas que se haverá de travar, neste momento não são, ainda, inevitáveis. Por isso há-que agir com a certeza de que obrigar todo o país a uma «quarentena» está de acordo com as melhores práticas conhecidas enquanto tudo o mais é uma incógnita.
De resto, se for caso disso e se nessa altura forças tivermos, cá estaremos para o combate.

segunda-feira, 30 de março de 2020

Diário da Peste 18/3/2020

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O conceito de normalidade é flexível, fluido, pois um estado-de-coisas pode instalar-se muito rapidamente. Tão célere que fica a sensação (com reflexos existenciais óbvios) que tudo pode acontecer. No entanto, nada acontece por acaso e é possível a análise histórica, sociológica e filosófica de uma transformação. É essa actividade crítica, num sentido específico que provém do Iluminismo, que importa exercer. Talvez, o que estes tempos requeiram, numa necessidade urgente, seja aquele tipo de intelectual engagé que parecia já extinto. Aliás, com a exigência acrescida de uma extrema abertura de pensamento, o qual tem de abarcar também alguma informação científica que tantas vezes é tão técnica que chega a ser críptica. Porque não bastará apenas uma atitude heurística. Há que proceder à análise e para isso não não é suficiente o manejo das ideias que pertencem ao cânone humanista.
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Sublinha-se, contudo, o conceito de complexidade, ou acreditarão que, hoje, haverá uma qualquer forma de inteligência comunitária que, de um modo mágico (porque o que desafia a compreensão é da ordem do pensamento mágico) ou automático, garante uma racionalidade ponderada? Todavia, por uma razão prática, talvez o paradigma de um pensamento crítico individual esteja porventura em crise. Tal razão é linear: como pensar criticamente se há demasiada informação? 
Chamo a isto o Complexo de Borges, no labirinto de uma biblioteca infinita nunca se chegará à verdade, ainda que da ordem do meramente provável ou razoável.

domingo, 29 de março de 2020

Diário da Peste 17/3/2020 (segunda parte)

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Além disso, a União Europeia revelou, uma vez mais, a sua inépcia, a ausência de verdadeira entreajuda e a impotência para traçar uma política integrada e eficaz para resolver este problema de saúde pública. A ver vamos se conseguirá responder a nível económico.
Teme-se que talvez se dissolva no rescaldo de mais este fracasso porque as pessoas não irão, provavelmente, esquecer todo o sofrimento que tanta incompetência gerou.
3
Mesmo em Portugal, tudo se passou em câmara lenta e se, amanhã se decretar o Estado de Emergência isso só significa que se falhou nas medidas destinadas a conter esta peste. 
É que não adianta dizer-se que se não sabia nem podia saber-se que as coisas se iriam passar deste modo. O conhecimento existia, apenas aconteceu (aqui como em tantos outros países) que não houve uma adequada articulação entre as evidências científicas, o poder político e as estruturas económica com as suas exigências e a jurídica que permitiu tanta desarticulação. 
Basta pensar no escândalo dos aeroportos para entender, de uma vez por todas, que são um bem estratégico cuja gestão jamais deve ser retirada da esfera pública. 
Isto leva a colocar um problema epistemológico: a ciência e uma versão degradada da doxa (opinião) são, hoje, não só incompatíveis mas tal dessintonia é profundamente perigosa.

sábado, 28 de março de 2020

Diário da Peste 17/3/2020 (primeira parte)

1
O que falhou? Basicamente, tudo. Sabia-se qual o potencial destrutivo desta peste porque, pela análise e experiência de outros surtos virais recentes, conheciam-se todas as principais variáveis. Com modelos matemáticos de propagação, análises genéticas de vírus da mesma família, compreendendo os factores ecológicos, demográficos e sociológicos que permitiam ao vírus, estando num reservatório animal, ultrapassar a barreira da espécie para infectar os humanos e a partir daí propagar-se pelo orbe devido às viagens aéreas transcontinentais. Com toda essa informação chegou, por exemplo, a propor-se a investigação e desenvolvimento de uma vacina genérica contra esta família de vírus que, depois, seria muito mais facilmente adaptada a este agente em concreto. Ao que parece, neste caso, decidiu-se ignorar esta pesquisa de base porque não havia nela uma expectativa segura de lucro, até porque esta pandemia era só uma possibilidade. Assim, os laboratórios que estavam interessados nessa investigação não conseguiram captar os fundos necessários para se chegar a um resultado útil e agora corre-se o risco de só se conseguir uma vacina tarde demais. Por isso, houve a falha de um complexo científico-farmacêutico totalmente submetido a um hiper-capitalismo hegemónico e totalitário. Também o Estado Chinês, politicamente totalitário (em vias de se tornar a primeira tecno-distopia) que pela lógica perversa de um regime musculado decidiu, ao que consta durante 20 dias, ignorar o problema dando origem a um surto de uma violência e de uma gravidade sem precedente nas nossas vidas. Depois, houve a completa desorientação das democracias ocidentais para lidarem com uma crise pandémica. Era por demais conhecido que as sementes desta peste seriam disseminadas pelas viagens aéreas e só quando foi demasiado tarde se começaram, um pouco por todo o mundo, a proibi-las. Aceitar o desastre levou tempo. Um tempo precioso que custará caro.

quarta-feira, 25 de março de 2020

Diário da Peste 16/3/2020

1
A dinâmica do pesadelo é muito semelhante a esta situação. É o esgotamento de todas as linhas de fuga para escapar a uma angústia obsessiva. E uma angústia que não vem de uma dinâmica interna mas que é implacavelmente alimentada por uma realidade exterior em desagregação, como será se, daqui a dois dias, por decreto, for declarado o estado de emergência, sendo certo que, de qualquer modo, segundo modelos matemáticos muito bem estabelecidos a curva epidemiológica continuará em ascensão. 
Assim, o grande remédio contra a angústia de génese interna que é o confrontar a realidade externa e comprovar que, de um modo geral, esta é benigna deixa de funcionar. A realidade externa passa a ser o motor da ansiedade, um motor cruel quando a situação se agrava na tal evolução geométrica e se vão multiplicando as consequências directas e indirectas que, com o passar do tempo se vão tornando mais preocupantes e mais gravosas. Aliás, é uma verdadeira inversão desse modelo de benignidade: a realidade externa, nestes estranhos tempos, será sempre pior do que as dinâmicas paranóicas. 
Quantos mais não sentirão o mesmo?
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Também há a questão do trauma. Porque, depois do trauma é necessário um longo trabalho para se voltar a uma percepção pré-traumática. Pois o trauma é profundamente transformador. Isto, no sentido em que a dor que o origina passa a ecoar, em permanência e como fantasmagoria, na consciência. O drama do trauma é que uma vez passado o transe (e este parece vir a ser longo, talvez longuíssimo; porventura, vá exigir um convívio esquizofrénico com a peste, isto é, ela estará presente numa aparente normalidade, a exterior normalidade da sua banalização) ele continuará vivo e operante nas suas dimensões obsessivas e negativas. 
Mais uma vez pergunta-se, quais as dimensões traumáticas, pessoais e colectivas, disto? 
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Ainda a questão do καιρός (kairós, oportunidade). Quanto será perdido, truncado, pervertido pela peste? Para além da perda, do trauma e da neurose, muito será, seguramente, desviado do seu caminho. 

segunda-feira, 23 de março de 2020

Diário da Peste 15/3/2020 (segunda entrada)

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Assistir a um desenrolar rapidíssimo de um apocalipse (de um ambiente apocalíptico) enquanto se dilata o tempo para a solução que só acontecerá quando a peste seguir o seu rumo ou a ciência, em contra-relógio, conseguir uma vacina ou uma terapia. Há uma perversão da temporalidade comum: o terror do isolamento, da escassez, do bio-fascismo, do tédio, o imenso tédio de não poder (de não dever sair à rua), significa que é a instalação da temporalidade da peste que é de angústia e ansiedade radicais.
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Uma questão fundamental: até quando, qual o prazo em que é possível manter a paralização total das cidades, dos países, de toda a colectividade?
Quando são decretados os estados de emergência são colocados nas ruas os meios repressivos dos Estados. Quando tais medidas se tornarem insustentáveis poderá haver toda a sorte de conflitos entre a sociedade civil (ou os cidadãos individuais saturados de isolamento) e as forças de autoridade ou, mesmo, entre cidadãos. Ainda que se cumpram os requisitos de limitação temporal desses estados de excepção, caso a epidemia se prolongue, o que acontecerá? Chegaremos a um estado de indiferença pelo desespero, em que as pessoas prefiram a peste à paralisia? 

domingo, 22 de março de 2020

Diário da Peste 15/3/2020 (primeira parte)

1
É estranho como, por vezes, o cérebro humano leva algum tempo a adaptar-se a uma forte subversão da realidade enquanto quadro estável de referências dentro do qual pode pensar e agir.
É, certamente, este o caso. A cada dia, a cada hora o pesadelo adensa-se, o que era impensável há algumas semanas (a bem-dizer, há alguns dias) é, hoje, a normalidade. E são tantos os múltiplos aspectos que constituem essa referência que, a todo o tempo, nos temos de ajustar a uma nova e fluida e mutante normalidade.
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Não se sabe quais os aspectos desta perversa normalidade serão perenes e quais reverterão para um estádio prévio a esta peste.
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Outra preocupação é saber até que ponto vai o projecto europeu resistir à destruição (esperemos que temporária) das suas bases mais profundas como a da livre circulação sendo certo que, mais uma vez, tardou a dar uma resposta unificada ao problema. Num certo sentido tais bases correspondem a mais do que a uma utilidade prática de livre circulação mas à consciência de que há um verdadeiro espaço geográfico comum que nega as potências niilistas do nacionalismo, mesmo que, em muitos aspectos o ideal europeu tenha, desde há alguns anos, sofrido grande erosão. O problema e o receio é que as forças entrópicas do populismo que já estão muito bem posicionadas, a nível europeu e transnacional, perpetuem este fechamento de tempos de peste, aliás, auxiliadas por um hipercapitalismo que retornará porventura com mais força e que convive muito bem com elas.

sábado, 21 de março de 2020

Diário da Peste 14/3/2020

Isto poderá ser um Evento Transformativo Civilizacional. É imprevisível, ainda, em que medida o será. Mas é, por exemplo, uma antevisão da catástrofe ecológica, do aquecimento global que os cientistas prevêem. Na verdade, esta é uma bio-catástrofe que paralisou as sociedades e deixará sequelas psíquicas (na psique individual e colectiva), económicas e, talvez, políticas.
É grande a vontade de normalidade mas, o medo, o bom-senso cívico e científico impõem uma cautela de tempos de peste, uma torção violenta da normalidade que, nos tempos mais próximos, não retornará.

Diário da Peste 13/3/2020

1
O medo, o medo, o medo. A angústia como desinstalação civilizacional no esquizofrénico-colectivo. As pulsões niilistas na sua máxima expressão. A hiper-ansiedade é isso: a radical incerteza, quando a convivência com a peste, enquanto estrutura psíquica da civilização, se perdeu com o advento da ciência moderna. Não são só os anticorpos que inexistem perante uma nova peste, são também as estruturas mentais e culturais para lidar com ela que foram esquecidas.
2
As linhas de transformação civilizacional são múltiplas (são em número indefinidamente extenso) e em inter-relação umas com as outras, pelo que apenas pode haver um vislumbre das mutações que se irão operar. Uma dessas linhas transformativas respeita ao paradigma do trabalho que deixará de ser presencial para ser virtual. Como pensar essa metamorfose se ela está no cerne (directa ou indirectamente e mesmo para os desempregados) da relação do homem com o mundo e com os outros?
3
A dimensão da catástrofe é medida pela penetração perturbadora de um acontecimento nos sistemas e estruturas sociais. Tal perturbação pode ir, desde a disrupção de todos os hábitos quotidianos (o que já está a acontecer) até ao desencadear de situações (para além da infecção que é um perigo em si mesmo) que põem em risco a sobrevivência. 4 É uma nova era de escassez: a escassez patogênica em que haverá, doravante, a possibilidade de um bio-fascismo repressivo.

sexta-feira, 20 de março de 2020

Diário da Peste 12/3/2020 (segunda parte)

3
É certo que, em poucos dias, se foi violentamente expurgado do tempo. Há uma semana viveu-se um passado longínquo. Talvez, irrecuperável.
Entrou-se, de qualquer modo, num presente de suspensão civilizacional, um presente sem hora que é já o futuro.
4
Aquilo que mais impressiona, assim, é a extensão da transformação, a sua rapidez, a sensação invasiva que se experimenta, sem qualquer transição, um futuro distópico. É um longo pesadelo, lento até para um pesadelo, pois não ficará resolvido numa noite, nem se sabe, agora, quando se irá dele acordar, essa a distopia presente que se instalou de súbito e sem avisar.
5
As coisas ainda irão piorar antes de melhorarem. Resta saber quão fundo se irá chegar, o grau de disrupcão que se vai experimentar e que direitos serão postergados. Deus queira que não haja um fechamento radical como em Itália.
6
A consciência de que se está a viver um pesadelo e uma situação de total imprevisibilidade permite duas posturas opostas: a esperança do alívio quando tudo passar e a preocupação de que a distopia se agrave ou perpetue.
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É impressionante a fragilidade de tudo. O desmoronar quase instantâneo, ante o perigo e o medo, das estruturas sociais pondo a nu a sua inefável fragilidade.

quinta-feira, 19 de março de 2020

Diário da Peste 12/3/2020 (primeira parte)

1
Isolamento social. Quão depressa mudam os costumes. O indivíduo, uma ilha rodeada de vírus por todos os lados.
2
Um tempo de radical incerteza, já se sabe, tem uma dinâmica própria. Há uma suspensão do acontecer mas isso induz a um acumular de potencialidades que, enquanto dura o transe, não se manifestam, pelo menos, não expressamente. Porém, essa suspensão irá produzir mudança, as coisas talvez não voltem a ser as mesmas ainda que o possa parecer. Na realidade, a acumulação de forças transformativas impõe um choque rápido em que algumas dessas várias potências constituirão um tempo novo. Ora, a imprevisibilidade não deixa sequer entrever o que sairá vitorioso mas há motivo para apreensão pois há, naturalmente, certas tendências que já existem e que estão na posição ideal para se tornarem dominantes, ou até, hegemónicas.
Quando este problema passar — resta saber com que sequelas e traumas e crises, económicas e não só — qual será a dinâmica repressiva motivada por uma desconfiança radical do outro, o poder de um Estado entretanto tornado autoritário pela exigência sanitária, porém, ensaiado num Estado de excepção continuado, a atomização social e o fechamento do indivíduo na sua esfera privada, cada vez mais impotente para agir no contexto do todo colectivo e dos países nas suas fronteiras, a própria mutação das relações sociais em que, após um período de medo e de isolamento social se passa a uma cautela social reforçando os factores do «fascismo higiénico»? São, por isso, grandes motivos de apreensão. Isto, sem falar de outras incógnitas mais vastas, fenómenos à escala global que, de tão vastos, são ainda mais difusos.

Desenho (variação)


quarta-feira, 18 de março de 2020

Diário da Peste 11/3/2020

1
Possivelmente o estado mundial de excepção vai ao encontro das reivindicações, expressas ou implícitas, da extrema direita populista. Assim, por via do reacender de certo «fascismo higiénico» (um «bio-fascismo»?) instalar-se-á um populismo, propriamente, político.

2
O estado de excepção implica uma torção da ordem normal das coisas. Isto pode vir a criar, se o estado de excepção sanitário se prolongar, uma predisposição natural e psicológica para um permanente estado de excepção político-cívico, trazido pelas novas correntes de um tecno-fascismo que é sinónimo dos populismos de direita (desde que eles as saibam aproveitar). Aqui serão cruciais as dimensões de higiene social como nova moralidade, a «higiene cívica» que pode vir a implicar a perseguição de minorias ou de «cidadãos impuros», a criação de párias como reflexo de uma moralidade penal, a imposição de uma ordem tecno-distópica que não poderá ser questionada. E uma irreprimível pulsão para o fechamento, de fronteiras, de ataque ao cosmopolitismo, da intelectualidade como movimento de abertura do pensamento e de isolamento ou «distanciamento» individual pois é na atomização dos indivíduos e com o reforço da comunicação virtual (que, aliás, pode ser facilmente interceptada, monitorizada, controlada) que se criará a nova ordem social aceite.
Esperemos, claro está, que isso não aconteça.

Diário da Peste - Introdução

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Comecei este diário no dia 11 de Março quando esta pandemia se começava a impor na ordem existencial de todos, quando ainda havia a esperança (talvez um pouco ingénua) de que pudesse ser contida. Tal não aconteceu (escrevo esta introdução no dia 18 de Março). De qualquer modo, as ideias são de análise e de um esforço para antever o que será, o que é um exercício sempre arriscado mas que, neste caso, é inevitável. Infelizmente, alguma dessa antevisão já se cumpriu com uma velocidade surpreendente embora se desejasse, a todo o momento, que o engano significasse uma perspectiva mais positiva e que assim estes escritos fossem mais um exercício de fantasia literária do que de realidade histórica.

2
Por que se chamou «Diário da Peste»? Porque o propósito do título é inscrever esta pandemia numa tradição cultural que, durante muitos séculos, foi a da «peste», com toda a ressonância simbólica que esse termo adquiriu. Na verdade, com a ausência de vacina e de terapia específica, num certo sentido, voltou-se a um estado pré-moderno e pré-médico onde as medidas que restam são as adquiridas ao longo de uma larga história da «peste» como sejam o isolamento e as quarentenas.

3
Isto não é um exercício nem apocalíptico nem pessimista mas, o que contiver de violência e de pessimismo, é também um contágio destes estranhos tempos sem que se tenha, ainda, uma visão distanciada e, por conseguinte, mais serena.

domingo, 15 de março de 2020

Diário Laboratório 9/2/2020

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Às vezes, até os abismos do desespero têm algo de reconfortante. Verter isso em escrita, é um propósito como outro qualquer.
2
Nada há de tão difícil na arte do que pensar o impensado. Descobrir a ideia, se quisermos evocar o platonismo, deduzi-la se enveredarmos por um método racionalista. Ou, pura e simplesmente, tropeçar nela. 
O resto, enfim, requer trabalho, paciência mas é, comparativamente, simples.
Ser-se artista é enceta a busca dessa ideia-fundamental, é também estar preparado para nunca a encontrar.
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O desenvolvimento espiritual, se lhe retirarmos toda a transcendência, resume-se à procura da serenidade.

quinta-feira, 12 de março de 2020

Diário Laboratório 8/2/2020

A dança da vida, a dança da morte. Dança, contra-dança. Uma, um corrupio, a outra, tão mais violenta.

segunda-feira, 9 de março de 2020

Diário Laboratório 7/2/2020

Renovação da vida, mas de vida-toda-nova. Para quando, porém? Tantas vezes, tantas vezes o propósito ficou inacabado.

sábado, 7 de março de 2020

Diário Laboratório 6/2/2020

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As lágrima que de era-má são o sossego. Não se deve, porém, sempre viver rememorando.
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Vejo-me, nesta demencial fragmentação de escrita como num espelho quebrado que só reflectisse o esgar e o grito suspenso do que quereria dizer num murmúrio.

sexta-feira, 6 de março de 2020

Diário Laboratório 5/2/2020

Na escrita as fórmulas vagas são as melhores porque permitem evitar a vertigem do absoluto, do concreto, e do definitivo.

quarta-feira, 4 de março de 2020

Diário Laboratório 3/2/2020

1
A perfeição é a sensação do irreversível. Nada a mais e nada a menos, porque o que está é inevitável e bom. Que maravilhoso seria ter isso na escrita, eliminar todo o non sequitur que é o que acontece quando há resíduos que se imiscuem na tessitura textual, ou quando o propósito falha completamente porque enferma de vícios ou, afinal, quando a ideia anda à deriva, de si, do leitor ou, mesmo, do próprio autor. Nesses casos, subjaz a suspeita que há algo espúrio, ou por excesso ou por defeito, e que por ali não andaram os anjos, os daimones nem as musas ou, talvez, as Moiras ou as Parcas lhes tenham cortado os fios.
Sem ela, tudo é reles, tudo é triste, tudo é frustre e tudo é pouco.
2
Repito: a escrita deve dar a sensação de que cada palavra é, naquele sítio, inevitável. Por isso é coisa demorada, de radical e funda ponderação.

terça-feira, 3 de março de 2020

MAIS CRÓNICAS DO BAIRRO…











Um escritor é um tipo que faz do centro da sua vida a Literatura, que respira, digere, anseia, chora e ama literáriamente, que explora a linguagem enquanto ferramenta, que se dedica à nobre arte da escrita desde que se levanta até que se deita. Outra coisa, outro conceito completamente diferente é o de "contador de histórias". O contador de histórias é um tipo que só escreve quando tem tempo ou lhe apetece, que gosta de fazer mais actividades, que nunca tem tempo, que não consegue uma palavra de reconhecimento pelo seu trabalho nos meios especializados e, por fim, um tipo que gosta de misturar a realidade e a ficção como quem faz um bolo para o lanche. O objectivo é encantar, distraír, recordar, estimular emoções, despertar sentidos. Neste blog é possível encontrar estes dois conceitos entre o trabalho do João Matos e o meu. Eu sou um contador de histórias, um cozinheiro de ficções e realidades e, nas horas vagas, um cronista libertário.
Serve a presente introdução para voltar aos tempos de onde nunca saí, aos tempos em que não havia dinheiro mas havia tempo, gargalhadas, invenção permanente. Tempos em que tudo era chupado até ao tutano, gasto até à extinção até não haver mais nada para fazer ali e partir para a próxima experiência. Tal como em serões de "família" com os nossos filhos e sobrinhos, já não nos preocupamos em explicar realmente o que aconteceu. Já nos habituámos aquelas expressões tipo: "ou estes tipos eram completamente virados da marmita ou são uns grandes mentirosos". Nem uma coisa nem outra. Somos apenas aquele bando de adolescentes que de vez em quando gosta de voltar ao pátio do recreio e…recordar. Posto isto, passemos à crónica de hoje.
Tinha passado mais um ano e o Johny (todos os nomes são fictícios; quem se lembra identifica, quem não sabe segue a orientação) decidiu que não queria estudar mais. Antes de comunicar aos pais ofereceu-se voluntário para os comandos. Assim ganhava tempo de se desviar de uma bolachada ou de um sermão maior acerca dos níveis de desemprego e um questionário cerrado acerca do "que é que pensas que vais fazer a seguir? vais viver do ar?", etc, etc. Só que a jogada de antecipação correu relativamente bem até certo ponto. A incorporação nos comandos só iria ocorrer em Março e ainda se estava nos princípios de Janeiro. Seriam três meses à boa vida se o pai dele estivesse distraído. Só que não estava e para não sustentar madraços até à Primavera o Johny tinha que arranjar trabalho até lá. Ou arranjava ele ou o pai o punha nas obras. Tinha uma semana. E pronto, estava montada a tragédia. Não sei como nem porquê havia alguém que conhecia alguém que poderia saber de uma vaga não sei aonde…a rede do bairro começou a operar . Antes de terminado o prazo dado pelo pai do Johny abriu uma vaga numa escola de crianças deficientes, a escola Jean Monet que matriculava na sua maioria crianças com trissomia 21. O habitual condutor da carrinha tinha-se reformado e a escola estava com dificuldade em arranjar outro. Fintando o pai e as obras o Johny recebeu um cruzamento milimétrico para o golo e arranjou contrato até chegar a data da incorporação. Os tempos foram passando e a relação com os directores e o Johny cresceu favoravelmente. Era um tipo educado, pontual, e, sobretudo muito estimado pelos alunos que transportava bem como pelos monitores. Ao fim de um mês o Johny sugeriu levar a carrinha à oficina do Manel Sem Pescoço para afinar o ralenti. Mas como a utilização durava todos os dias úteis só era possível fazê-lo ao fim de semana. Sem cobrar nada. No primeiro fim de semana a carrinha voltou não só na melhor das afinações como vinha lavada e a brilhar por dentro e por fora. Em breve, de quinze em quinze dias a carrinha passava a fazer uma estadia na oficina do Manel Sem Pescoço ao fim de semana. Só que a essa estadia não era de repouso permanente, era preciso experimentá-la, fazer ensaios ao motor, estabelecer rotas como por exemplo desde o bairro até ao 2001 no autódromo do Estoril, ou até ao Mister Green a caminho da costa, ou ao Seagull ou ao Tunel. Para verificar as afinações claro está… E foi assim que o nosso grupo resolveu o problema do transporte da cidade para algumas catedrais da diversão fora de portas. Tudo correu sem incidentes até o Johny entrar para a tropa. Carrinha devolvida, salário em dia e a promessa de recolocação no regresso à vida civil.
Houve apenas um pequeníssimo detalhe nesta história toda que podendo ter corrido mal acabou em bem. Numa noite de Sábado para Domingo aí pelas três da manhã a Brigada de Trânsito estava ali na àrea de Oeiras. Vendo uma carrinha de transporte escolar, coisa que não dava nada nas vistas mandaram pará-la. O Johny estava limpo, não bebia para não ser entalado. Apresentação de documentos, teste do balão, tudo nos conformes. Ao ler novamente o livrete o guarda repetia em voz alta: "Transporte de crianças deficientes…muito bem." Depois espetou a cabeça lá para dentro e deu com cinco móinas, uns a dormir de boca aberta outros com o olhar no infinito. Virou-se para o Johny. "Então e aqueles?" O Johny com o mesmo ar de senhor educado e colaborante que costumava exibir quando se sentia apertado, olhou para trás e depois para o guarda.
"Aqueles ali…chumbaram."

Artur


segunda-feira, 2 de março de 2020