Um escritor é um tipo que faz do
centro da sua vida a Literatura, que respira, digere, anseia, chora e ama
literáriamente, que explora a linguagem enquanto ferramenta, que se dedica à
nobre arte da escrita desde que se levanta até que se deita. Outra coisa, outro
conceito completamente diferente é o de "contador de histórias". O
contador de histórias é um tipo que só escreve quando tem tempo ou lhe apetece,
que gosta de fazer mais actividades, que nunca tem tempo, que não consegue uma
palavra de reconhecimento pelo seu trabalho nos meios especializados e, por
fim, um tipo que gosta de misturar a realidade e a ficção como quem faz um bolo
para o lanche. O objectivo é encantar, distraír, recordar, estimular emoções,
despertar sentidos. Neste blog é possível encontrar estes dois conceitos entre
o trabalho do João Matos e o meu. Eu sou um contador de histórias, um
cozinheiro de ficções e realidades e, nas horas vagas, um cronista libertário.
Serve a presente introdução para
voltar aos tempos de onde nunca saí, aos tempos em que não havia dinheiro mas
havia tempo, gargalhadas, invenção permanente. Tempos em que tudo era chupado
até ao tutano, gasto até à extinção até não haver mais nada para fazer ali e
partir para a próxima experiência. Tal como em serões de "família"
com os nossos filhos e sobrinhos, já não nos preocupamos em explicar realmente
o que aconteceu. Já nos habituámos aquelas expressões tipo: "ou estes
tipos eram completamente virados da marmita ou são uns grandes
mentirosos". Nem uma coisa nem outra. Somos apenas aquele bando de
adolescentes que de vez em quando gosta de voltar ao pátio do recreio
e…recordar. Posto isto, passemos à crónica de hoje.
Tinha passado mais um ano e o
Johny (todos os nomes são fictícios; quem se lembra identifica, quem não sabe
segue a orientação) decidiu que não queria estudar mais. Antes de comunicar aos
pais ofereceu-se voluntário para os comandos. Assim ganhava tempo de se desviar
de uma bolachada ou de um sermão maior acerca dos níveis de desemprego e um
questionário cerrado acerca do "que é que pensas que vais fazer a seguir?
vais viver do ar?", etc, etc. Só que a jogada de antecipação correu
relativamente bem até certo ponto. A incorporação nos comandos só iria ocorrer
em Março e ainda se estava nos princípios de Janeiro. Seriam três meses à boa
vida se o pai dele estivesse distraído. Só que não estava e para não sustentar
madraços até à Primavera o Johny tinha que arranjar trabalho até lá. Ou
arranjava ele ou o pai o punha nas obras. Tinha uma semana. E pronto, estava
montada a tragédia. Não sei como nem porquê havia alguém que conhecia alguém
que poderia saber de uma vaga não sei aonde…a rede do bairro começou a operar .
Antes de terminado o prazo dado pelo pai do Johny abriu uma vaga numa escola de
crianças deficientes, a escola Jean Monet que matriculava na sua maioria
crianças com trissomia 21. O habitual condutor da carrinha tinha-se reformado e
a escola estava com dificuldade em arranjar outro. Fintando o pai e as obras o
Johny recebeu um cruzamento milimétrico para o golo e arranjou contrato até
chegar a data da incorporação. Os tempos foram passando e a relação com os
directores e o Johny cresceu favoravelmente. Era um tipo educado, pontual, e,
sobretudo muito estimado pelos alunos que transportava bem como pelos
monitores. Ao fim de um mês o Johny sugeriu levar a carrinha à oficina do Manel
Sem Pescoço para afinar o ralenti. Mas como a utilização durava todos os dias
úteis só era possível fazê-lo ao fim de semana. Sem cobrar nada. No primeiro
fim de semana a carrinha voltou não só na melhor das afinações como vinha
lavada e a brilhar por dentro e por fora. Em breve, de quinze em quinze dias a
carrinha passava a fazer uma estadia na oficina do Manel Sem Pescoço ao fim de
semana. Só que a essa estadia não era de repouso permanente, era preciso
experimentá-la, fazer ensaios ao motor, estabelecer rotas como por exemplo
desde o bairro até ao 2001 no autódromo do Estoril, ou até ao Mister Green a
caminho da costa, ou ao Seagull ou ao Tunel. Para verificar as afinações claro
está… E foi assim que o nosso grupo resolveu o problema do transporte da cidade
para algumas catedrais da diversão fora de portas. Tudo correu sem incidentes
até o Johny entrar para a tropa. Carrinha devolvida, salário em dia e a promessa
de recolocação no regresso à vida civil.
Houve apenas um pequeníssimo
detalhe nesta história toda que podendo ter corrido mal acabou em bem. Numa
noite de Sábado para Domingo aí pelas três da manhã a Brigada de Trânsito
estava ali na àrea de Oeiras. Vendo uma carrinha de transporte escolar, coisa
que não dava nada nas vistas mandaram pará-la. O Johny estava limpo, não bebia
para não ser entalado. Apresentação de documentos, teste do balão, tudo nos
conformes. Ao ler novamente o livrete o guarda repetia em voz alta:
"Transporte de crianças deficientes…muito bem." Depois espetou a
cabeça lá para dentro e deu com cinco móinas, uns a dormir de boca aberta
outros com o olhar no infinito. Virou-se para o Johny. "Então e
aqueles?" O Johny com o mesmo ar de senhor educado e colaborante que
costumava exibir quando se sentia apertado, olhou para trás e depois para o
guarda.
"Aqueles
ali…chumbaram."
Artur