segunda-feira, 26 de dezembro de 2016
ESTADO LÍQUIDO
Estado líquido.
Os pavilhões do Parque D. Carlos I nas Caldas da Rainha, construídos inicialmente para albergar quem ia em busca de alívio para as suas maleitas, recorrendo ás águas sulfurosas do Hospital Termal, localmente referido como 'dos banhos', depois quartel onde o meu avô materno assentou praça, mais tarde escola secundária onde estudei durante um ano lectivo, estão num total estado de abandono e degradação.
É pena.
Um dia destes, se nada for feito entretanto, passarão do estado sólido ao estado de saudade.
E isso é líquido.
Hélder
sábado, 24 de dezembro de 2016
quarta-feira, 9 de novembro de 2016
ESCOLHAS ERRADAS/ RAZÕES CERTAS
Estupefacção, surpresa, admiração, espanto, desorientação em
geral. Este tem sido um ano de mudanças vertiginosas, umas atrás das outras, um
ano em que nada acontece como era suposto acontecer. Primeiro o Brexit e a
saída do Reino Unido da União Europeia e agora a eleição de Donald Trump para
Presidente dos Estados Unidos. Digamos que, de um modo geral, foram feitas as
escolhas erradas pelas razões certas. Não que estas referidas mudanças venham a
mudar grande coisa no panorama habitual da vida de cada um. O que é novidade é
que, a pouco e pouco as populações vão dando corpo a uma enorme frustração e,
ao mesmo tempo, a transmitir uma crescente repulsa pelo modo como as coisas
funcionam, um aviso sério a um sistema político e económico que está esgotado e
que vai perdendo de dia para dia a sua credibilidade. Pessoalmente não acredito
que Donald Trump venha mudar seja o que for. Será obrigado a ler e a seguir a
pauta que lhe será apresentada como todos os outros antes dele. Se se desviar
será afastado…de uma maneira ou de outra. O que não anula a intenção de milhões
de pessoas de ter votado muito mais contra um estado de coisas do que
propriamente na mensagem e nas ideias de um candidato.
De forma consciente ou não, a maioria das pessoas orientou
as suas escolhas tendo em conta as consequências de uma forma de fazer política
que dura há décadas e que veio gradualmente a asfixiar as suas vidas, a matar
as suas esperanças, a enterrar os seus sonhos. Um mundo onde a política se
submeteu à economia que por sua vez sucumbiu aos ditames do poder financeiro,
sem rosto, silencioso mas tremendamente actuante e eficaz. Uma política de
permanente invenção de um inimigo novo a cada dez anos, de grupos terroristas
que nascem do dia para a noite, de
atentados que eliminam homens comuns a caminho do trabalho, a assistir a um
espectáculo ou que simplesmente se sentam numa esplanada a beber um café.
Atentados que nunca deixam de acontecer e cuja única reacção é reduzir os
direitos de liberdade e circulação em nome do reforço da segurança. Uma obsessão
cantada a toda a hora de crescimento económico onde as grandes corporações são
os únicos beneficiados. Um mundo onde a evolução da tecnologia em vez de
aliviar a pressão do trabalho apenas amplia o desequilíbrio da sociedade e a
escravatura ao crédito por mais que se venda a ideia de liberdade individual
através de todo o tipo de maquinetas.
Basicamente, vendendo até ao enjoo o conceito do mercado
livre, do egocentrismo tecnológico, dos direitos das minorias, do “politicamente
correcto”, aquilo que realmente se promove é a transferência de riqueza do
indivíduo para as grandes corporações, a dependência económica dos bancos para
conseguir seja o que for para viver, a desagregação de todas as dimensões
comunitárias de solidariedade e coexistência pacífica, o enfraquecimento da
identidade colectiva. Numa palavra, a cobro de uma sociedade mais justa e mais
livre aquilo que temos é um asilo de alienados, uma multidão de miseráveis que
se vão odiando mutuamente num espaço cada vez mais controlado e cada vez menos
livre. A liberdade de expressão, a capacidade de discordar, a liberdade de
pensamento, tudo isso é diariamente combatido, diminuído, posto a ridículo a um
ponto em que qualquer ser livre comece a sentir vergonha e medo de o ser. Estas
são as linhas gerais da actuação de um sistema que nos tem governado nas
ultimas décadas. De forma consciente ou inconsciente as populações aproveitam o
seu ultimo espaço de liberdade (o voto) e começam a passar uma mensagem
importante. Já nem toda a gente está disposta a continuar assim, a colaborar
com todos os ditames, a acreditar em toda a propaganda, a ser escravizada
pacificamente. Donald Trump não será a resposta nem o agente que virá liderar a
mudança. Será mais um clone de um política impiedosa, gananciosa, sem rosto,
exterminadora da raça humana. No entanto o que importa é este sinal em que as
pessoas ignoraram a propaganda e votaram contra. Terão sido as escolhas erradas
embora pelas razões certas. E essas têm que ver com a Humanidade e a sua
vontade de viver livre e em paz. De não odiar só porque lhe dizem para o fazer.
De aceitar o outro e a diferença como uma parte do seu enriquecimento em vez de
medo pela sua extinção. Será um começo indefinido e tímido mas é seguramente o
arranque para qualquer coisa, um movimento numa nova direcção. O que sabemos é
que este sistema começa a ter os dias contados, esgotou os seus recursos e
aproxima-se do fim. O que virá depois é uma incógnita. O que é importante é as
lições que retiraremos com a mudança.
Aguardemos…
Artur
quinta-feira, 3 de novembro de 2016
UM ANO SILENCIOSO
Tem sido um ano parado aqui por estas bandas. De facto 2016
é um sério candidato ao ano em que menos se produziu desde que este blog
existe. Não posso falar pelos outros membros, apenas por mim. E por mim direi
que, sem querer explanar nenhum tipo de justificação, no essencial tenho passado
o tempo a observar e a tentar compreender aquilo que se vai passando à minha
volta. Em primeiro lugar direi que quando não tenho nada que entenda relevante a
partilhar me remeto ao silêncio. Estou a ficar velho com todas as vicissitudes
que este processo implica, nomeadamente de adaptação e recriação da postura
existencial. Faço parte de uma geração que viveu a juventude numa correria do
presente sem se preocupar se estaria viva com quarenta ou cinquenta anos.
Muitos estavam certos e gastaram as energias em tempo útil. Os outros, os que
atingiram esses marcos etários viram-se de repente em terras desconhecidas,
rodeados de novos desafios e novas tarefas para as quais não se prepararam
minimamente. Por isso tiveram que (se) reinventar. Substituindo a pressa e a
sofreguidão pela sabedoria e assertividade vi o pior da minha geração
destacar-se no palco da política, dando azo às mais mesquinhas e torpes
qualidades do ser humano. “Sinais dos tempos” dirão alguns. Sem dúvida.
Devíamos ter feito mais, devíamos ter feito melhor para mudar o estado das
coisas, devíamos não ter colaborado tanto com uma série de coisas que sempre
entendemos erradas, anacrónicas do ponto de vista humano. Pois devíamos. Quem
disse “não”, quem não colaborou, desapareceu. Não vou discutir quem é que
estava certo. Restou a música enquanto espaço de criação e solidariedade, um
espírito ainda hoje presente. Foi pouco? Não sei.
Por outro lado o mundo avançou a uma velocidade tremenda
reinventando praticamente quase todo o nosso quotidiano. A informação circula a
uma velocidade vertiginosa a par com a oferta cultural. O eixo de profundidade
do consumo de uma obra deslocou-se para um alargamento abrangente do horizonte
do conhecimento. As imagens da net sobrepuseram-se à leitura demorada de um
romance no que às massas diz respeito. Dantes ouvíamos um disco vezes e vezes
sem conta até saber quase de cor todas as músicas nele contidas. Hoje ouvem-se
dez minutos, duas faixas de um trabalho e passa-se ao acontecimento seguinte. O
conceito de cinefilia teve que voltar a ser escrito a partir do momento em que
praticamente todos os filmes se encontram à distância de um clique no youtube. Os blogs foram perdendo leitores e eficácia à
medida que que se instalava o Facebook. O lugar para a reflexão em geral foi-se
encolhendo.
As linguagens sucedem-se a uma velocidade vertiginosa. As
cassetes de fita magnética deram lugar aos suportes digitalizados, depois tudo
se encontra na net, deixando de lado o instinto de acumular exemplares em casa.
E é nesta vertigem do tempo que nos interrogamos, perdidos
em pressupostos que de absolutos passam a relíquias, para que serve escrever,
fazer filmes, escrever canções…tentar dominar uma linguagem que depois
desaparece.
Não sei. E foi precisamente por ter mais dúvidas que
certezas ao longo de toda a minha vida que decidi escrever, desenhar histórias,
partilhar entretenimento. Não desisto de o fazer porque não sei fazer mais
nada. Refugio-me na convicção que enquanto houver quem escreva histórias,
haverá quem as queira ler, ouvir, ver na fala das imagens. Talvez a um ritmo
mais lento, menos prioritário, enquanto tento descobrir outros aspectos da
vida. Mas continuarei. Aqui por este blog as histórias vão continuar, as crónicas
e as imagens também. Porque sim.
Obrigado a todos aqueles que nos visitam e continuam a
visitar. Obrigado a todos aqueles que deixam aqui a sua opinião, a sua mensagem.
Quando era novo não percebia nada desta vida. Hoje, a caminho de velho,
continuo a não perceber. Por isso escrevo e continuarei a escrever o que me vai
na alma, a inventar histórias, a desfiar memórias. Para quê? Para não me
esquecer que ainda estou vivo.
Um abraço das Partes do Todo.
Artur
domingo, 16 de outubro de 2016
sábado, 10 de setembro de 2016
CARTAS DA GUERRA
Ivo Ferreira
Portugal, 2016
Contrariando um pouco o título, CARTAS DA GUERRA é um filme de amor e transformação interna referenciado através da correspondência de um jovem médico para a sua mulher. Colocado no Leste de Angola durante dois anos (71 - 73) António vai enfrentar todo um cenário que, não lhe pertencendo o acaba por fazer pertencer à força da passagem dos dias. Ultimo reduto de compaixão e racionalidade é naquele apertado espaço das cartas que António tenta manter a sua sanidade mental, alimentar a sua capacidade de resistir e acesa a esperança de que tudo aquilo irá acabar um dia. E de facto, acabando nunca acabou nem nele nem em milhares de jovens que conservaram a sua passagem pela guerra por um vida inteira enquanto segunda pele. Do autor podemos saborear "Os Cus de Judas" em que todo o enquadramento é nesse período, embora uma parte substancial de toda a primeira parte da sua obra seja marcada de forma directa ou indirecta pelo mesmo tema.
Consciente de todo este processo de transformação que vai tomando conta dele, o jovem médico percebe que não sairá dali como entrou. E por isso faz da mulher a guardiã do António que era e que não volta a ser...que não se pode repetir no fim de tudo.
Pessoalmente entendo que este tipo de documento de uma vida (as cartas trocadas com a mulher) não deveria ser publicado antes da morte do autor. Por várias razões a começar pelo facto de serem demasiado íntimas e acabando na circunstância de pouco ou nada acrescentarem ao interesse colectivo. São momentos demasiado exclusivos ou demasiado intensos que tenham algum interesse em partilhar essa intensidade com outros. No entanto não deixam de ser a oportunidade para fazer um excelente filme onde revisitamos uma realidade histórica que devorou uma geração inteira, geração essa que está agora a chegar ao fim das suas vidas.
Com uma fotografia extremamente bem trabalhada ficamos perfeitamente esclarecidos com o deslumbramento de António pelas paisagens e pela exuberância da vegetação do continente africano. Acompanhamos a riqueza única da avaliação do elemento humano em condições extremas, seja dos portugueses seja dos naturais da terra. O melhor e o pior da espécie humana derramado e distribuído por todos em porções muito semelhantes sem espaço para julgar ou estabelecer prioridades. A consciência política que acaba impreterivelmente por vir ao de cima ao avaliar a glória de um império cansado e velho que insiste em não terminar, teimoso agarrado a qualquer coisa que o prenda no momento em que sopram os ventos da História.
Tudo visto e ponderado estamos perante uma história de amor num cenário de guerra, dentro da mutação de um homem que aprende à força as páginas negras da brutalidade humana, do escritor que nunca mais se esqueceu daquele tempo, do português que carrega consigo a herança, a responsabilidade e a memória de uma época. Um protagonista do seu tempo que manteve à tona da água a esperança na forma de um amor à prova de tudo, um homem que ainda hoje se sente parte daquele filme.
Artur
sábado, 27 de agosto de 2016
NÃO VÁS JÁ
Somos feitos de uma fragilidade
tão intensa e tão permanente que até irrita pensar nisso. E por isso não
pensamos. Ficamos de lado a representar o nosso papel, a fingir forças que
nunca tivemos a convencermo-nos da alegria e da felicidade que nos disfarçam as
lágrimas que vão caindo no escuro. A fragilidade estende-se como uma estrada
paralela à existência, um abismo terrível e tão profundo que temos poucas
hipóteses uma vez caídos lá para baixo. Vamos equilibrando sobre um muro
estreito para que isso não aconteça, viramos as costas ao mar e assim ele não
existe. Mas está lá…está sempre lá. Por isso, e não tão poucas vezes como isso,
de vez em quando há alguém que escolhe cair, tombar para as terras do “não
aguento mais” e do “quero que tudo isto se foda, vou mas é mudar de ares que
por aqui já tudo deu o que tinha a dar”. E partimos… antes do tempo, antes da
vez, mais cedo para não chegar atrasado, mas vamos de uma vez por todas. Nós,
os outros, os que cá ficam, arrepiam-se, choram alguém que se matou, cumprem os
rituais, borram-se de medo. Porque todos temos o mesmo abismo todos os dias, o
mesmo abismo que caminha paralelo a nós. E não sabemos quem será o próximo. Um
pé mal colocado, um dia carregado de “nãos”, um problema sem solução, uma
conversa que não chega a acontecer, uma tristeza da qual não regressamos e é
tudo. Pode ser qualquer um. De cima de uma ponte, de dentro de uma caixa de
comprimidos, depois de uma bala com o nosso nome, do alto de um prédio. E não
há “porquês”, nem estudos eruditos, nem especulações decorativas, nem tiradas
filosóficas nem lágrimas que cheguem. Há apenas uma enorme evidência que é o
vazio de um espaço. Há apenas um ser que deixou de estar, que deixámos de ver,
com quem não voltaremos a rir. Um ser que se quis ir embora e partiu. Um pavio que
não ardeu mais antes de explodir.
É nestas ocasiões que revejo
familiares e amigos, é nestas alturas que corro desesperado a abrir a caixa do
amor deles por mim e de mim por eles. Para me certificar que não caio, que não
vou já, que não me apetece sair mais cedo por vontade minha, para olhar para
trás e avaliar o comprimento do meu pavio. Para me certificar que ainda estão
cá todos e eu com eles.
Quando olho para trás reparo que
já não foram tão poucos como isso. Pessoas como eu, os mesmos sorrisos, as
mesmas lágrimas, o mesmo medo. Porque
afinal de contas um suicida é apenas um viajante apressado, alguém que resolve
saltar algumas estações antes da estação final. Para trás deixa alguma tristeza
naqueles que o amaram e discursos que louvam a sua coragem ou a sua cobardia
consoante os casos. Em comum todos querem apenas afastar-se o mais possível do
seu precipício pessoal, da sua vertigem particular.
Não te julgo nem te louvo, espero
apenas que tenhas encontrado a paz lá nesse lugar para onde foste. E que o peso
de existir se tenha tornado mais leve nos teus ombros. Ri-me várias vezes
contigo, gostava de ti e é tudo. Adeus Carmo. Um destes dias a gente volta a
ver-se.
Artur
domingo, 17 de julho de 2016
CREDO DE SORTE
Ontem, durante as mais de dez horas a caminho daqui, tive tempo de sobra para pensar sobre o que se passou em Nice.
E ao ler vários jornais, não fui deixando de me lembrar do que se passou na Noruega há uns anos, onde dezenas de jovens e professores foram chacinados numa ilha por um assassino. Não fui deixando de me lembrar dos assassínios recorrentes nas escolas da América do Norte. Não fui deixando de me lembrar dos ataques aos ônibus no Rio de Janeiro. E de outras coisas, onde a conjugação da questão do Tempo e do Lugar definem se se vive, ou se morre.
Exemplos do sucesso de psicopatas são demasiado frequentes. E nesta frequência de acontecimentos absurdos e bizarros, quando acontecem cometidos por ocidentais, o credo religioso não é chamado à baila.
Em Nice foi um terrorista muçulmano, dizem.
A começar por o tipo ser tão muçulmano, que segundo as notícias daquilo que diziam os vizinhos, fumava muito e apanhava constantes bebedeiras. Podia estar frustrado por não ver o amor dele por Allah correspondido, sei lá!... Mas que se Alá veda o consumo de álcool aos seus fiéis, o tipo sendo muçulmano, era poucochinho.
O que é certo é que de terrorista, tem tanto como o norueguês, ou os americanos que entram a matar nas escolas ou discotecas. E sim, é muito, mas não da forma como os que mandam nas notícias querem fazer crer.
Em três jornais, haviam fotos dele. Ao lado umas das outras, o indivíduo retratado não tinha nada em comum. Podiam perfeitamente ser três bem distintos.
Seria a face do mal, já que o mal não tem face?
Os absurdos, como este ou o norueguês, ou os americanos, ou outro estafermo qualquer nem nome deviam ter.
Atribuia-se um pseudónimo, uma alcunha, o que fosse, porque barbaridades destas, não deviam ter o nome de quem as comete, registado para a posteridade.
E uma vez mais, voltamos à questão da fragilidade da Vida e da imprevisibilidade do que nos espera, que está tão dependente da Sorte.
Saúde e Sorte.
Hélder
terça-feira, 5 de julho de 2016
domingo, 3 de julho de 2016
quarta-feira, 29 de junho de 2016
PÉROLAS DE SCOLA 5
CHE STRANO CHIAMARSE FEDERICO /
QUE ESTRANHO CHAMAR-SE FEDERICO
Ettore Scola
Itália, 2013
Para falarmos sobre um filme que
é essencialmente um manifesto de ternura poderíamos começar com uma imagem de
ternura. Uma imagem onde um miúdo de nove anos de idade descreve em voz alta a
interpretação de uns desenhos satíricos da autoria de Federico Fellini a um avô
cego. Dez anos depois de GENTE DI ROMA, contrariando todas as possibilidades,
Scola decide homenagear o seu amigo Fellini vinte anos depois da sua morte.
Para isso recorre ao seu depósito de memórias desde o momento em que chega a
Roma, o seu primeiro trabalho como caricaturista e o encontro com Federico na
redacção do jornal humorístico Marc’
Aurellio. Nessa altura já Fellini dava os seus primeiros passos no capítulo
da realização. Scola, onze anos mais novo, só mais tarde entrará na indústria
na qualidade de argumentista. E é este tempo de amizade e profunda admiração
que resulta numa deambulação a um tempo nostálgica e estética ao núcleo de uma
obra imensa de um dos maiores criadores cinematográficos de sempre.
Tal como ao longo de toda a sua
obra, Scola nunca se cansou de nos surpreender, encontrando sempre novas
fórmulas para apresentar as suas propostas. Neste caso, estando muito longe de
qualquer referência testamentária, de qualquer intenção de nos dar uma lição, o
que Scola nos deixa é a homenagem a um Mestre que o marcou definitivamente nos
mais tenros anos da sua aprendizagem. Uma homenagem à obra, à arte e à
personalidade de um génio. E, mesmo não sendo próximos da obra de Fellini,
qualquer um se consegue apaixonar rapidamente pelo seu trabalho. Este é talvez
o maior encanto do filme.
Escrito em parceria com as suas
duas filhas Paola e Sílvia, o filme vai levar-nos a uma visita guiada ao prazer
partilhado dos desenhos, de fazer filmes e aos amigos em comum (Mastroianni,
Ruggero Maccari, Emio Flaiano, Scarpelli, todos eles referências na história do
cinema italiano seja como actores, seja como realizadores ou argumentistas).
Estacionando no mítico estúdio 5 da Cinnecittá, onde Fellini rodou a maior
parte dos seus filmes nas décadas de 60 e 70 faz-se uma reconstrução de alguns
cenários à medida que somos introduzidos ao processo criativo do artista.
Misturados com extractos dos próprios filmes de Fellini há uma dimensão
documental a complementar a fantasia ou, melhor dito, o processo de criar
fantasias.
Por outro lado as noites sem fim
deambulando por Roma no Lincoln de Fellini que sofria de insónias. A mania de
dar boleia a quem encontrassem para ouvir a sua história e daí partir para a
construção de uma personagem ou de um novo argumento.
Recordando o amigo, exibindo a
admiração sem limites pelo génio, com uma narrativa fluida e funcional, CHE
STRANO CHIAMARSE FEDERICO acaba por ser um caderno de apontamentos partilhado
com o público onde a única intimidade que ficamos a conhecer é a do criador com
a construção da obra, a do génio com o empenho em tornar a vida por momentos
mais colorida e suportável, a do deslumbramento inesgotável do Ser pelas
possibilidades encontradas de fabricação da fantasia.
Obrigado aos dois…
Artur
sábado, 25 de junho de 2016
PÉROLAS DE SCOLA 4
BRUTTI, SPORCHI I CATTIVI/ FEIOS,
PORCOS E MAUS
Ettore Scola
Itália, 1976
Estamos na década de 70 do século
passado num bairro de barracas da periferia de Roma. Através de um lento e
englobante plano-sequência vamos sendo apresentados aos vários elementos do clã
Mazzatela à medida que se levantam para um novo dia. Uma jovem adolescente sai para a rua com uns recipientes na mão para ir buscar água. Saltita na
inocência dos seus 12/13 anos enquanto caminha por um cenário de porcaria,
feito de habitações precárias, poças de água e caos urbano em geral.Mais tarde
voltaremos a vê-la a recolher as crianças do bairro para um “infantário”
improvisado feito de uma cerca de arame semelhante a um galinheiro gigante.
Giacinto é o patriarca desta agremiação vagamente familiar composta por gente
que trabalha nem sempre nas mais nobres actividades. Por ter queimado um olho
com cal viva recebeu uma indemnização de um milhão de liras do seguro que
esconde avidamente. Um milhão que o resto da família cobiça urdindo toda a
espécie de malfeitorias para se conseguir apropriar dele.
Esta é em síntese a intriga
básica de (na minha opinião) uma das mais belas e mais brutais obras-primas da
história do Cinema por ser pouco comum na abordagem, cruel na descrição e impiedosa na análise.
O filme acompanha um grupo de
marginais em geral que enquanto tenta sobreviver tudo faz para ocupar ou destruir o espaço alheio. O dia da pensão da avó é o dia de festa dos netos que
rapidamente dividem o dinheiro à porta dos serviços na presença de uma anciã demente
que passa os dias em frente à televisão. O dinheiro ocupa o lugar do filtro
maior ou, se calhar, do filtro absoluto em que se desenvolvem as suas
existências. Não há espaço para identidade, dignidade ou sequer consciência
porque isso seria perder tempo, ficar para trás, deixar de ser ou de estar
vivo. As análises filosóficas ou sequer sociológicas ficam na gaveta deixando à
vista o osso duro da condição humana que encarna o “espírito do tempo” onde
tudo é dinheiro, vantagem, sobrevivência pura e dura. Nada que não seja feito
no resto da sociedade pelas outras camadas só que essas têm tempo para
construir álibis, desenhar teorias, elaborar justificações. Neste bairro de
barracas onde se avista ao longe a cúpula da Basílica de S. Pedro no Vaticano
não há espaço para a piedade, o sentimento ou o sonho.
E sendo uma tragédia do princípio
ao fim, ao exibir a condição humana na sua forma mais animalesca não
conseguimos deixar de rir. Não conseguimos desenhar a fronteira entre o drama e
a comédia, elementos indivisos do nosso comportamento, equilíbrio instável sem
o qual não seria possível suportar o fardo da nossa condição. Os pobres vão
morrer pobres e não são nenhuma espécie de heróis por causa disso, não acolhem
consciência política, não alimentam qualquer tipo de esperança em relação ao
futuro. Nasceram condenados àquela condição que os empurrou para a
sobrevivência a qualquer preço, para a bestialidade e para todas as categorias
dos mais primários instintos animalescos que nos assistem. Alegoria destas últimas considerações poderia
ser a extraordinária cena em que Giacinto, percebendo ter sido alvo de
envenenamento corre para o mar e injecta água salgada pela boca abaixo
auxiliado pela bomba de uma bicicleta para poder vomitar. Em O MILAGRE DE MILÃO
(De Sicca) os pobres encontram a sua libertação através da morte, em VIRIDIANA
(Luís Buñuel) ao ser oferecida hospitalidade numa casa senhorial campestre a um
grupo de vagabundos, a primeira coisa que se lembram de fazer no dia em que
estão sozinhos é dar uma festa e destruir a casa toda. Em FEIOS PORCOS E MAUS a
brutalidade e o grotesco das relações humanas explode em cada gesto embalada
pela condenação da miséria.
No fim ao nascer de mais um dia,
a jovem adolescente que no princípio acompanhámos com os baldes a caminho da
água retoma a sua rotina diária. Saltita enquanto caminha mas quando a câmara a
deixa ver de corpo inteiro reparamos que está grávida.
Tragédia hiper relista, crueldade
acutilante, grotesco permanente, hilaridade, tristeza, e até ternura são as
componentes constantes deste colosso da condição humana. Sem respostas rápidas
nem soluções fáceis e muito menos teorias reconfortantes. Uma sociedade
bestificada sem identidade nem compaixão só poderá produzir bestas que não
sabem quem são ocupadas apenas em destruir o que não lhes pertence.
Se lhes forem dadas as condições
ideais o ser humano é capaz do melhor e do pior.
Ficamos à espera de saber o que
seria se existissem as ferramentas para fazer o melhor.
Um colosso que deveria ser visto
por todos.
Artur
sexta-feira, 24 de junho de 2016
PÉROLAS DE SCOLA 3
França/ Itália/ Argélia 1983
Tudo começa como se de um
qualquer espectáculo de café-concerto se tratasse. Acendem-se as luzes, as
pessoas vão chegando e começa a música. O mesmo espaço e o mesmo grupo de
pessoas que nos irão contar meio século de História da França através de seis quadros vivos, dançando ao longo do
tempo. Baseado num espectáculo musical, uma pantomima imaginada e dirigida por
Jean-Claude Penchenat e interpretada pelo grupo Thêatre du Campagnol em
Châtenay-Malabry, LE BAL resulta de uma adaptação para cinema co-escrita por
Ettore Scola, Ruggero Maccari, Furio Scarpelli e o próprio Penchenat.
Começamos por ouvir La Valse au Dénicheur , ver uma bandeira
da Frente Popular e a data…1936. Segue-se a transformação do espaço em abrigo
contra os bombardeamentos. Estamos em 1944. A entrada de um oficial alemão dá-nos a
imagem da ocupação em França. Em 1946 chegam os soldados americanos e com eles
o jazz.
Mais uma vez Scola repete a
fórmula já ensaiada anteriormente, isto é, aborda o tema histórico de forma
indirecta através dos mais desprendidos e mais comuns aspectos da realidade.
Neste caso concreto consegue aperfeiçoar o método propondo-nos um filme mudo.
De facto, são os ruídos do exterior, as músicas, as modas e as danças que nos
vão contando o passar dos anos, que nos vão colocando em cada época enquanto as
pessoas limitam a mudar de pele. São sempre os mesmos sendo sempre em momentos
diferentes o que dá uma curiosa relação visual entre o tempo e o homem. No fim
de cada “tempo” a imagem fica parada e transforma-se numa fotografia que ficará
pendurada numa parede mesmo ao lado do bar.
Tal como num espectáculo de vaudeville sucedem-se os quadros
pitorescos e curtos de humor instantâneo que vão decorando os espaços em que a
música se faz notar mais baixa. Como o do calmeirão magrinho que leva o tempo
todo a tentar vencer a timidez e convidar uma senhora para dançar, sem êxito,
ou o “riquinho” desesperado que perante o abandono da sua amante resolve
cheirar uma linha de coca sobre a mesa, linha essa exterminada pelo pano de
limpeza de um empregado diligente.
Em 1956 impera o samba e as saias
que rodam em grande efeito. Até que aos poucos os casacos de cabedal pretos
comecem a ocupar a pista de dança e a impor o Rock’n ‘Roll.
E com uma canção dos Beatles em
fundo chegam os anos 60. Lá fora ruído de multidões e sirenes da polícia.
Jovens manifestantes refugiam-se no recinto com os olhos irritados pelo gás
lacrimogéneo. Maio de 1968.
Por fim chegam os anos oitenta
(1983) e começa-se a desmontar o cenário. Faz-se ouvir um relógio, os
dançarinos retiram-se, o barman apaga as luzes. Como uma caixinha de música a
três dimensões por onde estivemos a espreitar viajámos ao longo de meio século
através da música e das modas sem ouvir uma única palavra. Uma coreografia do
tempo onde o movimento vai trocando as suas impressões com o espectador. Uma
linguagem diferente onde nos vamos integrando, ouvindo e dançando.
domingo, 19 de junho de 2016
PÉROLAS DE SCOLA 2
LA NUIT DE VARENNES/ A NOITE DE VARENNES
Ettore Scola
França/ Itália 1982
A 20 de Junho de 1789 uma
carruagem com a família real tenta a sua fuga de Paris que arde sob o fogo da
Revolução. Dias mais tarde o rei Luís XVI e a rainha Maria Antonieta acabam por
ser capturados na povoação de Varennes, precipitando uma trágica série de
acontecimentos reforçada pela desconfiança e pelo ódio à monarquia. A acção do
filme, que não acompanha em directo as várias peripécias desta fuga atribulada,
centra-se numa segunda carruagem algumas horas atrasada em relação à primeira,
onde viaja um grupo extremamente improvável de personagens, cada um com o seu
destino e motivação diferentes. Uma condessa austríaca que tinha sido aia da
rainha (Hanna Schygulla), o filósofo e escritor libertino Restif de la Bretonne
(Jean Louis Barrault), o revolucionário americano Thomas Paine (Harvey Keitel),
um Casanova em plena velhice (Marcelo Mastroianni), uma viúva a caminho da sua
propriedade (Laura Betti), um juiz e uma cantora de ópera (Andrea Ferrol).
Baseado no romance de Catherine
Rihoit ( “La Nuit de Varennes oú
l’impossible n’est pas Français”)
o filme tem a particularidade de desenvolver a análise histórica de forma
indirecta através dos diálogos entre personagens de ficção sem que isso
prejudique o rigor ou sequer a verosimilhança dos factos. Naquela carruagem um
passo atrás dos acontecimentos os conceitos de “vida”, “mudança”, medo” e
“solidão” vão sendo debatidos e avaliados através de várias perspectivas quer
sociais quer etárias. Através da avaliação dos tempos de mudança e incerteza em
que se encontram mergulhados fala-se de política e de Filosofia. Neste
autêntico road movie de
reconstituição histórica confrontam-se os tempos modernos com os antigos e
descreve-se o esboço de uma nova ideologia principalmente através das
intervenções de Paine ou de Restif. A ordem antiga é defendida pela condessa
austríaca. Numa coisa parecem estar todos de acordo. “A idiotice é a pior das
traições e não há nenhuma revolução que consiga acabar com ela”. Percebe-se que
a revolução é uma consequência directa do sofrimento da população em geral. Mas
também é evidente que os filhos dessa revolução, ao destruírem os valores da
ordem antiga não têm a mínima ideia acerca daquilo que vão construir no seu
lugar. Fica aberta a porta para um tempo de vazio e incerteza. A discussão
acesa entre o jovem estudante que insulta abertamente o decrépito Casanova faz
antever o resvalar da revolução para a brutalidade e a violência gratuita, para
o regime de terror que se irá seguir.
Mas os tempos mudam sempre como o
cenário de um palco e o que se mantém somos nós os seres humanos essa espécie
construtora de todas as ordens antigas e modernas. A vida acabará por continuar
de uma forma ou de outra e o que nos distingue será a forma como respeitamos e
vivemos com os nossos valores. Se por um lado a atracção da condessa pelo
revolucionário americano se vai reforçando nem por isso as suas ideias são alvo
de cedência. Perto do fim do filme vemos uma cena em que a condessa veste um
manequim com um manto do rei que tinha trazido de Paris e, de seguida, rende a
sua homenagem ajoelhando-se na sua frente.
Sendo um filme de reconstituição
histórica LA NUIT DE VARENNES é também uma lição de vida que nos relembra o
modo como tudo é tão efémero e de como somos muito mais iguais do que alguma
vez poderíamos imaginar em tempos de normalidade. Respiramos o mesmo ar, temos
o mesmo medo, sonhamos os mesmos sonhos. E tudo é tão frágil que pouco ou nada
vale se não nos soubermos colocar nesta
trágica comédia onde a História, o Medo, o Amor, a Vida e a Morte
brincam com as nossas existências sem dó nem piedade. Um grande filme,
portanto.
Artur
sábado, 18 de junho de 2016
PÉROLAS DE SCOLA
UNA GIORNATA PARTICOLARE / UM DIA INESQUECÍVEL
Ettore Scola
Itália/Canadá 1977
Ettore Scola
Itália/Canadá 1977
Comecemos pelo princípio. Um
plano inteiro com movimento de grua que se move em ascensão pelas traseiras de
um espaço urbano composto de vários prédios e que entra para uma janela onda
vamos encontrar a protagonista a executar as suas tarefas domésticas. Um
movimento de câmara bastante raro ainda hoje estudado em muitas escolas de
cinema. Um rádio aos berros que inunda o espaço vazio de pessoas através do
qual vamos percebendo tudo o que se vai passando naquele dia 8 de Maio de 1938
em Roma. Todos estão presentes na parada e cerimónias que celebram a visita de
Hitler a Itália. Nem todos. Antonietta fica em casa a tratar das suas tarefas
domésticas enquanto o seu marido, um funcionário público da Itália fascista se
deslocou até às comemorações com os seus seis filhos. Gabriele, um locutor de
rádio demitido aguarda a sua deportação para a Sardenha. Nem marido, nem pai,
nem soldado, nem sequer fascista, o locutor é homossexual, bilhete garantido
para a exclusão de um regime totalitário embriagado com os ventos de guerra que
começam a soprar. O encontro entre estes dois vizinhos, sendo muito mais do que
a soma de dois corações solitários acaba por se revelar a dissecação de uma
ideologia através de um hino à ternura e ao humor.
Antonietta sente-se frustrada e
sozinha num mundo onde se limita a cumprir as suas funções de mulher-a-dias da
sua casa e parideira. Apesar de já ser mãe de seis filhos o seu marido quer ser
pai outra vez e com isso beneficiar do apoio e incentivo à natalidade dado pelo
regime. Infiel e bronco transforma a vida da mulher num vazio imenso,
impossível de preencher ou de deixar encontrar um espaço mínimo de realização e
felicidade. Gabriele por seu lado, a primeira vez que é filmado no seu
escritório, tem uma arma em cima da secretária sugerindo a ideia de suicídio.
Os dois conversam, trocam histórias, dançam a rumba. Sendo considerado um dos
mais belos filmes da história do Cinema, tudo em UNA GIORNATA PARTICOLARE é
improvável e surpreendente desde o percurso de cada um dos personagens até ao
desempenho dos actores. De facto, dois dos ícones e sex symbols da sua geração,
o casal mais adorado do cinema de então envolvem-se numa interpretação sublime
e natural de duas figuras simples e tristes que vivem uma tarde de excepção
contra todas as possibilidades. Ignorando a homossexualidade do vizinho
Antonietta expõe o seu charme, a sua vontade, o seu desejo de se sentir viva
nem que seja por uma vez. Eventualmente o casal acaba por se envolver
emocionalmente. Mas tudo é tão subtil e belo ao mesmo tempo que por instantes o
que vemos é dois seres vítimas do sofrimento e da solidão que acabam por se
consolar mutuamente. Enquanto a cidade inteira comemora a tirania e a
autoridade e o rádio aos berros nos vai dando conta disso. E é esta fantástica
história de subversão e simplicidade que acaba por se tornar um contraponto de
bom senso num dia de bebedeira colectiva. Ao fim do dia Antonietta vê pela
janela o seu vizinho deixar o prédio escoltado por dois polícias. Lá dentro já
deitado está o seu marido que a chama para tratarem de fabricar o seu sétimo
filho. Assim termina “um dia inesquecível”…
Artur
quarta-feira, 8 de junho de 2016
UM QUARTO QUE SEJA SEU
Dedicado a Teresa Borges, no dia do seu aniversário.
Assombrada por uma questão aparentemente simples mas que se revelou árdua à medida que as suas pesquisas se desenvolveram, Virginia Woolf percorria, no Outono de 1928, as ruas e os parques de Cambridge, frequentava restaurantes, festas e bibliotecas, consultava dezenas de escritores, homens e mulheres, compulsava montanhas de livros, preocupada sempre com a mesma questão, cuja resposta lhe chegou espontaneamente ao espírito, mas cujo significado considerava tão crucial que procurava discernir-lhe o sentido, estudando o comportamento e os papéis masculinos e femininos, os escritos dos homens sobre as mulheres e os das mulheres sobre os homens : "Que condições são indispensáveis à criação de obras de arte ?" - obras criadas por mulheres, entende-se, e não somente pelos homens, já que, no que se refere aos homens a questão há muito tinha sido respondida através das múltiplas teorias masculinas sobre a arte e sobretudo pela incontestável plétora das suas criações.
Nessa exploração de ruas e de livros, em busca de traços femininos que documentassem um pouco mais do que a inevitável necessidade do quotidiano, Virginia Woolf percepcionava em imaginação "o peso do mutismo, a acumulação da vida inexprimida". Foi assim que no fim da errância por ruas e bibliotecas, chegou à resposta que lhe queimava os lábios "uma mulher deve ter dinheiro e um quarto que seja seu", para poder criar obras de arte, o que, na fórmula de Virginia Woolf, remetia para a escrita de ficção, ficção não no sentido do romance ou da história inventada simplesmente, mas no sentido de toda a relação criativa e voluntária com a realidade, toda e qualquer tentativa subjectiva de a interpretar, penetrar, transformar e recriar. "Eis o que permanece depois de desaparecida a espuma dos dias; aquilo que permanece dos tempos passados, dos nossos amores, dos nossos ódios.. O mundo aparece então na sua nudez, uma vida mais intensa é-lhe insuflada", escrevia ela, e dirigindo-se às mulheres prosseguia : "Já que vos convido a ganharem a vida e a terem um quarto vosso, convido-vos a viver a presença da realidade", essa realidade capaz de metamorfose, mais intensa e rica de ensinamentos.
Neste apelo, que há mais de setenta anos lançava às mulheres, nem por um momento Virginia Woolf se perguntava se as mulheres experimentavam verdadeiramente a necessidade de criarem obras de arte, ou se essa necessidade não era mais do que a expressão de uma moda, o produto de uma época. Julgava a escritora que a aptidão criativa e artística - aquilo que chamamos criatividade - era bem partilhada entre os dois sexos, tal como o bem senso cartesiano. E coube-lhe constatar que séculos de pobreza e de constrangimentos sociais tinham tido tal sucesso na repressão da aptidão criativa das mulheres que a maior parte delas tinham acabado por acreditar que tal aptidão não existia, e reprimido por inconveniente, se não mesmo perversa, tal necessidade - talvez subtilmente despertada - de conferir uma forma nova e subjectiva à realidade; então, por autopunição, não recorriam às suas capacidades; cozinhavam, plantavam, recolhiam, coziam, aleitavam, criavam e enterravam as suas crianças com mais ardor e cada vez mais mudas, e recomeçavam sempre; cozinhando, limpando a casa de alto a baixo, aprovisionando celeiros, reflectindo longamente antes de gastarem um tostão, correndo de aqui para ali ao chamamento do homem, pondo-se sempre e para sempre ao seu serviço, até desaparecerem sem ruído, imperceptivelmente, da realidade que as dominava.
Assim são as coisas, constatava Virginia Woolf. Uma mulher que no século XVI fosse particularmente dotada de nascença - imaginemos que William Shakespeare tinha uma irmã tão genial como ele - enlouqueceria, escreve ela "matar-se-ia ou terminaria os seus dias numa cabana solitária fora da aldeia", banida e expulsa, morreria de fome e não criaria certamente a grande obra de arte.
Woolf estava persuadida que as mulheres deviam a sua evolução criativa a um fenómeno concreto ocorrido no fim do século XVIII : podiam ganhar dinheiro escrevendo: "O dinheiro arrasta as honras, aquilo que foi tido durante tanto tempo como fútil que já não tem retribuição. Sem dúvida, ainda podemos ver com derrisão esses seres (...) mas já não é possível ignorar que lhes pagam pelos seus escritos." Considera essa mudança do fim do século XVIII como mais significativa e importante que "todas as cruzadas e outras guerras das Duas Rosas". E se ela pudesse reescrever a história, consagraria mais atenção ao facto de as mulheres das classes médias se dedicarem mais à escrita que a todas as guerras.
"A vida é para os dois sexos - e vejo-os passar à minha frente, na rua, lado a lado - uma luta incessante, dolorosa e difícil", escrevia Virginia Woolf depois de ter explorado ruas e lugares em busca de uma resposta à questão "Que condições são indispensáveis à criação de obras de arte ?". Essa luta, continua ela, exige uma "coragem inabalável" e mais o quê ? "Confiança em si", responde ela; coragem e confiança em si como aguilhão e substância da criatividade feminina, afim de que as mulheres participem de maneira mais eficaz, mais inventiva e segundo o seu coração, na metamorfose da realidade.
terça-feira, 7 de junho de 2016
Largar
A perda repentina e inesperada de alguém que amamos, provoca uma dor complicada de dissolver.
É um soco no estômago que sufoca a garganta, derrete-se nos olhos e faz questionar o sentido e a razão.
Todas as mágoas, todas as desilusões, frustrações, arrependimentos e, acima de tudo, raivas, ódios e rancores carregam um peso difícil de aliviar.
Há que largar lastro para hoje ser-se mais leve e estar mais apto a receber o que o Tempo e a Vida nos trazem.
Não deixem de amar hoje, como se fosse o último dia.
O que interessa é agora.
Ontem já foi e amanhã ainda não é.
segunda-feira, 6 de junho de 2016
MAIS UMA CRÓNICA SOBRE COISÍSSIMA NENHUMA
Tudo começou em algum lugar, nem
podia ser de outra maneira. Escrever é um acto de generosidade na medida em que
quem o faz normalmente não foi obrigado a fazê-lo. Entende que deve traduzir em
palavras uma história, um estado de alma e dá-lo aos outros. Mas a actividade
da escrita é talvez das mais ingratas que existem na medida em que é quase tão
antiga como a Humanidade, o que torna tudo muito mais difícil no que toca à
originalidade. Diz-se que já tudo foi escrito, que já tudo foi feito no que à
Literatura diz respeito. Está tudo na Bíblia, nas tragédias gregas e na obra de
Shakespeare. Daí para cá tudo o que se puder fazer está limitado a variações
acerca destes três colossos da memória humana. Convém portanto, se não ler
exaustivamente, pelo menos ter uma ideia do que se trata antes de se embarcar
na aventura da escrita. No tempo da informação exaustiva em que a ignorância é
uma questão de escolha o que acontece é que é precisamente a ignorância que
triunfa sobre tudo o resto. Vá-se lá saber porquê…
Ando há que tempos a “engonhar” um post sobre
um dos mais importantes realizadores do século passado (Ettore Scola) mas
falta-me a coragem. Há tanto para dizer que dava para escrever pelo menos três
livros sobre o assunto. Tantos filmes, tantos momentos altos de uma carreira
extraordinária, tantos tratados acerca da condição humana. Uma tragédia de
miséria e desgraça de duas horas e meia onde não conseguimos parar de rir,
décadas de história contadas sem palavras num espaço de um salão de baile onde
se sucedem as modas, o encontro improvável de uma dona de casa e um vizinho
homossexual numa Roma deserta onde todos estão numa manifestação que comemora a
visita de Hitler à Itália de Mussolini, ou a fuga de um grupo de cortesãos da
fúria revolucionária de 1789 em Paris. Tanta informação, tantas questões, tanto
motivo para reflectir. Ainda hoje ao fim de muitos anos fico assustado ante a
enormidade e o génio. Invento pretextos para adiar, dedico-me a tarefas
secundárias, deixo passar o tempo. Com o romance que estou a escrever passa-se
o mesmo. Um turbilhão de sentimentos e emoções, um caudal de coisas que quero
dizer mas que não se pode despejar de qualquer maneira. Porque há regras para a
comunicação, há padrões para as narrativas, porque uma grande parte dos
leitores não tem a minha idade nem a minha vivência. No fundo porque o
objectivo é bater à porta daquele edifício a que chamam a Linguagem Universal e
pedir que me deixem dar uma espreitadela, que me deixem estar só cinco minutos
no átrio da casa e respirar. Que pelo menos um dos meus livros consiga saltar
do “Cemitério dos Livros Esquecidos” para uma arrecadação dessa enorme casa. E
assusto-me outra vez como naquelas tardes em que corria para casa todo
esmurrado à espera da água oxigenada, do penso e dos lanches da minha avó. E
continuo a andar às voltas, em avanços e recuos, preocupado com o assalto à
Língua Portuguesa, sempre fascinado com a ideia de Portugal e com o que os
grandes, os clássicos fizeram antes de mim. Por vezes deslumbrado com o que
consigo fazer, outras vezes desesperado por me obrigar a despejar esta força
para fora. Escrever é também o mesmo que não rebentar por dentro, facto várias
vezes comprovado ao longo dos anos. O bem-estar que dá a finalização de um
texto nas condições mínimas que tinha sido pensado. A dor de não escrever que
se aloja dentro da alma e vai inchando quase até nos sufocar. Porque antes de
tudo, serei sempre aquele que se assusta antes de se deslumbrar para se
assustar outra vez. Aquele que nunca está satisfeito para pontualmente se poder
satisfazer. E no fim sei que acabarei por arrancar e correr até ao fim,
terminarei a tarefa. A forma como ela ficar será aquela que tiver que
acontecer. Melhor ou pior. Nessa altura o susto e o deslumbramento ficam
congelados para dar lugar apenas à acção. O que for, será. Nada a fazer, nada a
acrescentar. O mundo é um lugar demasiado grande, as pessoas demasiado
complexas, a vida demasiado cruel. Escrevo porque não sei nada sobre
eles…continuo a escrever porque nunca os conseguirei perceber. E é nessa
entrega sem retorno, nessa tarefa sem êxito, nessa obrigação sem castigo que
torno útil o tempo de que disponho para cá andar, que dou sentido ao absurdo
que me envolve, que bato timidamente à porta desse palácio encantado e
gigantesco onde a maioria dos seres se encontra e convive sem nunca terem sido
apresentados.
Artur
quinta-feira, 26 de maio de 2016
IRON MAIDEN 2016
Dia 11 de Julho será a data em
que a mítica banda de 40 anos de existência se volta a encontrar com o publico
português. Uma relação já longa que começou a 31 de Agosto de 1984 no Pavilhão
Infante de Sagres no Porto. Depois disso os Iron Maiden tocaram seis vezes em
Cascais, cinco em Lisboa, duas no Algarve e uma em Vilar de Mouros. Uma relação
de admiração e carinho mútuo que levou Steve Harris a adquirir um bar,
rapidamente tornado ponto de peregrinação (“Eddie’s Bar”), próximo de Faro.
APRESENTAÇÃO
A longevidade deste fenómeno
musical que arrasta multidões de todas as idades e esgota concertos em qualquer
parte do mundo deve-se em parte a uma vitalidade criativa (novos trabalhos
originais com intervalos de dois, no máximo três anos) associada a uma
originalidade e postura invulgares no mundo do Rock n’ Roll. Longe de uma
aceitação consensual nos meios tradicionais da divulgação (MTV’s e afins), os
Iron Maiden subiram a pulso na sua carreira construindo a sua fama em espectaculares
actuações ao vivo e no apoio dos fãs que lhes renderam milhões em vendas um
pouco por todo o mundo.
Inaugurando a era do British New Wave of Heavy Metal ao lado
de nomes como Def Leppard, Motorhead e Judas Priest, o resultado foi uma
poderosa e influente combinação de heavy
metal com uma atitude punk numa
deslumbrante diversidade rítmica. Sem os Iron Maiden não haveria trash nem speed nem death nem hardcore metal nem uma série de
palavrões que se poderiam escrever agora para enaltecer a pobreza e o deserto
musical que a sua herança preencheu.
A originalidade dos Iron Maiden
(IM) apresenta-se-nos de uma forma quase absoluta na medida em que pode ser
lida quer ao nível da composição musical quer ao nível das letras. Assim, ao
não alinharem com o padrão habitual de canções de 3 minutos (2 coros, 1guitarra
solo, coro final) escreviam temas longos e complexos como por exemplo “The Rime
of The Ancient Mariner”, 13:45 min. de Rock Progressivo. Por outro lado, em
alternativa aos temas do costume no mundo do Rock (Sexo, drogas, etc.) a
temática da banda é constantemente influenciada por outras artes como a
Literatura, o Cinema, e géneros como a Ficção Científica ou o Folclore. Outra
originalidade prende-se com a imagem limpa de drogas que a banda faz questão de
transmitir ao longo dos anos.
ICONOGRAFIA/ REFERÊNCIAS/ATITUDE
O “livro” dos IM é como um
depósito de memórias do nosso “Inconsciente Colectivo” vestido com as roupagens
e os rituais do Heavy Metal. Nada é gratuito nem muito menos acidental. Influências
quer literárias quer de referência histórica consistem no ponto de partida para
a apresentação da sua arte.
No capítulo literário vamos
encontrar temas como “Brave New World” (Aldous Huxley); “Rime of The Ancient
Mariner” (baseado num poema com o mesmo título de Samuel Taylor Coleridge, onde
a mensagem principal, de acordo com a versão da banda é: “Devemos amar todas as
coisas que Deus criou.”); “Seventh Son” (Orson Scott Card); “Lord of The Flies”
(William Golding); “Murder in The Rue Morgue” (Edgar Allan Poe); “To Tame a
Land” ( Frank Herbert).
Em termos de referências
históricas, elas são abundantes ao longo da obra dos IM. Comecemos pelo Antigo
Egipto, “Powerslave” é acerca de um Faraó que, por se considerar a si próprio
um deus não consegue viver bem com a ideia da morte. Define-se como um slave to the power of death; Guerra da
Crimeia – “The Trooper”, baseada numa batalha durante a Guerra da Crimeia entre
Britânicos e Russos. Há quem garanta que se baseou no poema “Charge of The
Light Brigade”, onde são descritos os horrores da guerra enquanto uma carga de
cavalaria britânica se precipita para a morte certa; “Run to The Hills”,
inspirado na chegada dos europeus ao continente americano e a reacção dos
índios; “Paschendale” – a batalha de Paschendale ou, em português, a terceira
batalha de Ypres na I Guerra Mundial; “The Longest Day”, o dia D, o desembarque
na Normandia, II Guerra Mundial; “Two Minutes To Midnight”, The Doomsday Clock,
a Guerra Fria na ordem do dia numa altura em que o planeta esteve à beira da
catástrofe nuclear.
OS ACTORES
Dadas as constantes mudanças que
o elenco da banda foi sofrendo ao longo dos anos, é de referir aqui dois nomes
importantes na vida da banda. Steve Harris porque é o único elemento original e
Bruce Dickinson por ser uma grande parte da imagem da banda nos últimos anos.
Steve Harris, que em adolescente
jogou futebol no West Ham, aprendeu a tocar baixo sozinho acabando por
desenvolver um estilo único. O seu baixo “galopante” é uma imagem de marca da
banda. Escreve e é co-autor da maior parte dos temas
Bruce Dickinson, o homem dos sete
instrumentos possui uma energia inesgotável. Praticante de esgrima, chegou a
ser 7º no ranking do Reino Unido, piloto de aviação comercial e a voz dos IM.
Uma voz original de estilo semi-operático que lhe permite atacar os temas mais
irregulares com uma delicadeza e um estilo únicos. Se Bruce é a cara da banda,
Steve é o cerébro numa combinação perfeita até à data.
CONCLUSÃO
Fomos vendo aqui muitas das
razões que tornam os Iron Maiden um fenómeno não só de Rock metálico como um
retrato icónico da espécie humana contado através da sua fantasia criativa. A
agressividade, a imagem violenta ou as diversas narrativas de horror e
destruição mais não são do que um reflexo da realidade, um testemunho da
História, uma fotografia da natureza humana. De acordo com muitos dos fãs, após
um espectáculo dos IM há uma sensação de alívio e tranquilidade quando se volta
para casa. Como se a violência, a agressividade e todo o género de energia
negativa se tivesse libertado durante o concerto. Um curioso ponto de vista a
reforçar a experiência inesquecível que é assistir ao vivo a um concerto desta
banda.
Artur
sexta-feira, 13 de maio de 2016
A MÃE DE ELISA
A minha mãe já chegou? Então esteja com atenção porque ela
vem – me buscar. Sei porque me disse e quando diz, faz. Tal como quando
fizemos a peça de Natal e ela teve o
acidente de carro, apareceu quase à hora do jantar mas apareceu.
Eu sou a Elisa e fiz a chuva
Já a escola se vestia de trajes de noite, uma roupagem que
eu desconhecia, o pátio vazio e azul de noite, sem meninos, as portas fechadas,
os pais e os professores a saírem uns a seguir aos outros.
Mas eu não tive medo. Sabia que ela vinha… a minha mãe.
Porque se ela disse que vinha, não falhava. A minha mãe não promete à toa e sabe
perfeitamente que se me prometesse alguma coisa que depois não conseguisse
fazer eu iria ficar muito triste
Eu sou a Elisa e fiz a chuva
E apareceu triste com um enorme penso do lado direito da
testa, e chorou por não ter visto a peça de teatro da escola em que eu fazia de
chuva, e chorámos mas ficámos felizes logo a seguir porque estávamos ali as
duas e o pátio deserto de meninos não nos metia medo nenhum
A minha mãe vem me buscar porque disse que vinha. Pouco me
importa que me digam que tenho oitenta e três anos e que moro neste lugar e com
estas pessoas que tenho dificuldade em reconhecer todas as manhãs
A minha mãe já chegou? Então esteja com atenção quando ela
vier e vá logo chamar-me
Ela chega sempre mesmo que venha atrasada. Quando acabei a
Faculdade (não me lembro que curso era mas lembro-me da cara de alegria dela),
quando tive os filhos, quando fiquei viúva…a minha mãe chegava sempre embalada
pelo sorriso, pronta para me abraçar. Mesmo quando não quero comer as mistelas
que vocês me dão, mesmo fechando a boca ou cuspindo tudo para o chão, tenho a
certeza que se a fossem chamar nada disto aconteceria.
Porque ela tinha sempre um truque novo debaixo da manga que
me fazia ficar tranquila, uma frase que me acalmava (não estas porcarias
às cores que me fazem engolir ao lanche), uma paciência sábia que me explicava
que nada era o fim do mundo mesmo quando tudo parecia perdido.
Nada era uma catástrofe ou um problema qualquer que não
tivesse solução
A minha mãe deve estar quase a chegar, tenho a certeza.
Disse que vinha pouco antes de já não me conseguir levantar da cama. Acenou
devagar e sorriu. E por isso quando vier não quero perder tempo. Quero-me
levantar daqui de uma vez, dar-lhe a mão e
sair para a rua como duas nuvens de chuva que se deixam orientar pelo vento a
caminho de casa.
Por isso não tenho medo
Eu sei que ela vem...
Por isso não tenho medo
Eu sei que ela vem...
Artur
sexta-feira, 29 de abril de 2016
UM RIO SEM FIM
Antes de mais nada há uma imagem
tranquila de eternidade a fazer as apresentações. Um barqueiro em mangas de
camisa orienta a sua barca sobre uma superfície feita de nuvens em direcção ao
fim do dia. Seguem-se registos de som quase exclusivamente ambiental, onde os
instrumentos se limitam a conduzir as emoções muito suavemente. Este é The Endless River , o décimo quinto e
último álbum dos Pink Floyd, uma despedida sincera que vem encerrar cinco
décadas de carreira. Baseado em trabalho extraído à partida do último álbum (duas
dezenas de horas de gravações não aproveitadas nas sessões de Division Bell (94)), Endless River (2014) está todo ele preenchido com a presença
de Richard Wright, falecido em 2008 vítima de cancro. Guy Pratt é o músico contratado
responsável pelo baixo enquanto que as letras ficaram a cargo de Polly Samson,
mulher de Gilmour. Só uma faixa é cantada (“Louder Than Words”) ao longo de todo este
trabalho de despedida, disperso, ocasionalmente a fazer o balanço de algumas
partes de uma obra que se estendeu por cinco décadas. Nada de novo na concepção
que não tenhamos já visto em trabalhos anteriores. Partindo das pontas que
ficaram soltas no trabalho anterior e trabalhando o legado de Wright vão
compondo novos temas. Tal como Wish You Were
Here foi feito sem Barrett mas acusando a sua influência e Division Bell trabalhava as escolhas de
Waters deixadas nos trabalhos de The Wall
. Se por um lado a maioria dos novos originais acabam por ser as revisões
do trabalho anterior e o seu respectivo desenvolvimento, uma grande parte das
obras da banda são homenagens aos seus elementos entretanto afastados. Uma
constante de elegia dos ausentes e elipse de regresso aos passos anteriores
fazem do método dos Pink Floyd uma curiosa e original imagem de marca.
De facto, quando no início o
reportório era curto a banda escolheu alargar a duração das músicas para
cumprir o tempo de permanência em palco, para compensar os poucos ensaios que
faziam improvisavam, usavam efeitos especiais desenvolvendo cada vez mais
sofisticadas produções para os seus espectáculos. Com um horizonte criativo à
sua frente muito mais vasto do que apenas a música, combinavam-se várias artes
que complementavam os seus trabalhos. Em muitas dessas combinações acabaram por
nascer fenómenos que ainda hoje complementam a indústria discográfica tal como
o conceito de videoclip. Ao longo da audição de Endless River não conseguiremos revisitar toda a vasta obra dos
Pink Floyd mas muitas serão as etapas dela para onde seremos transportados. Na
faixa “It’s What We Do” revemos “Welcome to The Machine” do album Wish You Were Here , em “Sum”
encontramos uma versão mais ligeira de “One of These Days” do álbum Meddle, e por fim, a entrada de
“Anisina” parece por um breve instante que vamos ouvir “Us And Them” de Dark Side Of The Moon.
Não sendo o melhor trabalho de
sempre é sem dúvida a mais bem acabada forma de a banda se despedir e
estabelecer o fim do seu ciclo aos milhões de fãs em todo o mundo. Tudo termina
e os Pink Floyd não podiam ser excepção. O seu legado ficará nos anais da
História da Música como um dos fenómenos mais importantes registados no seu
tempo. Serão talvez no futuro escutados e idolatrados como os compositores
clássicos o foram no passado, adquirindo esse estatuto. A mim deixam-me um mapa
temporal onde consigo encontrar e relembrar pontos do meu caminho o que não
deixa de ser um registo de breve nostalgia melancólica. Continuarei a ouvir e a
recordar estes clássicos até eu próprio me meter na barca e navegar sobre um rio
de nuvens na direcção do fim do dia.
Artur
sexta-feira, 22 de abril de 2016
MUROS / REINADOS / INDUSTRIA
WATERS
A década de 70 está a chegar ao
fim e a obra dos Pink Floyd entra em velocidade de cruzeiro. 1979 marca o ano
de saída da mais importante ópera rock de sempre. Concebida quase na totalidade
por Roger Waters, The Wall é na sua
essência um poema sobre a solidão e a falta de comunicação, uma alucinação
introspectiva, uma visão globalizada da massificação cultural e do
aniquilamento da liberdade individual, um desafio à tirania e um hino à
Liberdade, um tratado da condição humana, qualquer coisa de colossal em todas
as vertentes que o queiram analisar. Expresso pela metáfora de um muro a ser
construído entre um artista de rock e a sua audiência o álbum foi um êxito
estrondoso entre público e críticos com um único single “Another Brick In The
Wall (Part 2), que fez longas estadias nos tops de vendas um pouco por todo o
mundo. The Wall contém faixas que acabaram por se tornar
imagem de marca da banda como “Comfortably Numb” ou “Run Like Hell”. Quase todo
ele concebido por Roger Waters o som torna-se cada vez mais hard rock apesar de grandes
orquestrações a lembrar tempos passados em temas mais calmos como “Goodbye Blue
Sky”, “Nobody Home” ou “Vera”. O predomínio da personalidade de Waters colide
com Richard Wright, cuja influência neste trabalho é mínima. Wright acaba por
ser afastado durante as gravações regressando depois e desta vez contratado
para tocar nos concertos. Ironicamente Wright foi o único elemento da banda a
ter lucros na “tournée” do The Wall .
Os elevados custos de produção dos espectáculos acabaram em grande prejuízo
para a banda. Em 1989 com a queda do Muro de Berlim, Roger Waters foi convidado
para tocar The Wall ao vivo no lugar
original do muro.
Batendo sucessivos recordes de
mais ouvido, mais tocado ou mais comprado, o álbum vendeu só nos Estados Unidos
o equivalente a 11,5 milhões de cópias obtendo 23 álbuns de platina.
No cinema Alan Parker realiza
PINK FLOYD THE WALL em 1982 onde incorpora praticamente todo o álbum. Na senda
do sucesso musical a dimensão cinematográfica também não ficou atrás. Visto por
milhões de espectadores por todo o mundo, o filme integrava uma parte de
animação da responsabilidade do artista e cartoonista britânico Gerald Scarfe.
Interpretado por Bob Geldorf (vocalista dos “Boomtown Rats” e mais tarde
organizador do festival Live Aid) e escrito todo ele por Roger Waters, o filme
foi considerado por muitos críticos como “o maior vídeo de rock de sempre e
também o mais depressivo”. Os únicos temas do duplo álbum que não foram
utilizados foram “Hey You” e “The Show Must Go On”. O tema “When The Tigers
Broke Free”, apesar de surgir no filme tem um primeiro lançamento sob a forma
de single sendo mais tarde integrado
na colectânea, Echoes: The Best of Pink
Floyd, bem como no relançamento de The
Final Cut .
The Wall foi mais um tratado que ocupou a atenção de várias
gerações, discutido e ouvido durante anos e anos, ocupando lugar em todas
festas de garagem. “Another Brick In The Wall” era cantado por adolescentes
europeus despreocupados, estudantes sul africanos que combatiam o regime do
apartheid, e de uma forma ou de outra, por todos aqueles que se sentiam de
alguma forma injustiçados com os sistemas políticos/ sociais da época. No meu
caso The Wall entra na minha
existência precisamente na altura em que estou a passar da adolescência à idade
adulta. A confrontação com a realidade, a urgência de manter um estado
consciente minimamente lúcido, os labirintos da solidão, a busca de respostas,
a vida quotidiana, o consumo de drogas, a injustiça,tudo fazia eco na história
de Mr Floyd e em todo o seu processo de alucinação e enlouquecimento.
Roger Waters é o timoneiro do
grupo em toda esta fase. A sua hegemonia vai-se prolongar para The Final Cut (83), um trabalho dedicado
ao seu pai, Eric Fletcher Waters. Ainda mais sombrio de sonoridade o álbum
regressa a temas anteriormente debatidos mas com o foco centrado na actualidade
temática, nomeadamente a raiva de Waters face à participação da Inglaterra na
guerra das Malvinas (“ The Fletcher Memorial Home”) ou uma visão cínica acerca
de uma possível guerra nuclear (“Two Suns in the Sunset”). Em virtude da saída
de Wright, Michael Kamen e Andy Bown ficam com a responsabilidade dos teclados.
Apesar de tecnicamente ser um álbum com a marca Pink Floyd o nome da banda só
está referenciado na parte de trás: “The
Final Cut – Um requiem para o sonho
do pós-guerra por Roger Waters tocado por Pink Floyd: Roger Waters, David
Gilmour e Nick Mason”. Waters ficou como o exclusivo criador sendo The
Final Cut uma referência para os seus futuros trabalhos a solo. Apesar de
bem acolhido pela crítica o sucesso junto dos fãs foi moderado. Nesta
altura o afastamento e as discussões
entre Waters e Gilmour iam-se avolumando ao ponto de não chegarem a gravar
juntos ao mesmo tempo no estúdio. Gilmour reclamava a continuação de rock de
boa qualidade, criticando Waters por produzir sequências de canções demasiado
centradas nas suas letras de crítica social. No fim das gravações não houve
tournée. Depois de The Final Cut a Capitol Records lançou a colectânea Works fazendo com que a faixa de Waters
de 1970 “Embryo” estivesse disponível pela primeira vez num álbum dos Pink
Floyd.
Os membros da banda empreendem
então caminhos separados gastando o seu tempo em projectos individuais. Gilmour
foi o primeiro a lançar About Face
(84). Wright juntou-se a Dave Harris para formar uma nova banda Zee, que lançou
um álbum experimental Identity um mês
depois de Gilmour. Em Maio do mesmo ano Waters lança The Pros and Cons of Hitch
Hicking um trabalho conceptual
anteriormente proposto à banda. Em 85 Mason lançou Profiles em conjunto com Rick Fenn e com a participação de Gilmour
e do teclista Danny Peyronel.
GILMOUR
Em Dezembro de 1985 Waters
descreve a banda como “uma força criativa desgastada” e anuncia a sua saída dos
Pink Floyd. Segue-se uma batalha jurídica pela autoria e direitos da marca
“Pink Floyd” que opunha Waters de um lado e Gilmour e Mason do outro. O
processo acabou por encontrar um entendimento fora dos tribunais.
O primeiro trabalho sem Waters
deu pelo título de A Momentary Lapse of
Reason (87) . A ausência do
letrista de sempre deu lugar ao convite de escritores exteriores à banda. Ezrin
e Jon Carin (que escreve “Learning to Fly” além de tocar grande parte dos
teclados) assinam os textos, facto bastante mal recebido pelos críticos. Wright
também regressou aos trabalhos, inicialmente como musico contratado na fase
final das gravações, recuperando o seu estatuto oficial de membro da banda
assim que começam a tournée. Por causa das limitadas participações de Right e
Mason neste trabalho alguns críticos consideraram que A Momentary Lapse of Reason deveria ser considerado um trabalho a
solo de Gilmour, da mesma forma que The
Final Cut o teria sido de Waters. Um ano depois saía Delicate Sound of Thunder (88) com parte instrumental co-escrita
por Wright (a primeira vez desde 1975) e por Mason.
Em 85 estou em Londres há alguns
meses e por um acaso dei por mim numa noite fria de Novembro na Brixton Academy
a assistir a um concerto de Pete Towsend e a banda Deep End com a colaboração
de Gilmour. Não foi um concerto Pink Floyd mas foi algo de mágico acompanhar os
solos de temas como “Love on the Air” e “Blue Light”. Uma tarde para recordar e
levar para a cova como uma visita a outra dimensão da existência.
Pela década de 80 continuam os
espectáculos ao vivo e a conceptualidade Pink Floyd vai seguindo o seu rumo
sempre com novas propostas cénicas. Um desses momentos altos acontece em Veneza
num concerto memorável que ocorre na praça de S. Marcos em Veneza em 1989. Muita
da assistência acompanha o concerto em embarcações ao largo da praça.Um
concerto guardado a ouro nos pergaminhos da minha gravação em VHS. Curiosamente
uma gravação que acabou por ficar para sempre amputada das duas primeiras
canções porque o meu filho mais velho resolveu gravar uma parte de um episódio
da Rua Sésamo na mesma cassette do concerto de Veneza. Ainda hoje tenho essa
relíquia de fita magnética religiosamente guardada na qual um coro de
simpáticas vaquinhas da Rua Sésamo faz a primeira parte do espectáculo.
UMA INDUSTRIA DE FAZER MUSICA
A carreira dos Pink Floyd
continua pelos anos 90 mas agora como uma gigantesca máquina de concertos ao
vivo e colectâneas onde se transformam as formas e se inovam os embrulhos. Em
1992 é lançada a caixa Shine On, um
set de 9 CD’s onde são relançados vários álbuns de estúdio. Um bónus chamado
“The Early Singles” compunha um enquadramento onde, colocando os álbuns ao alto
era possível visualizar a imagem da capa de The
Dark Side of The Moon . No mesmo ano sai também o álbum a solo Amused to Death de Roger Waters.
Em 1994 o trabalho do grupo volta
acontecer com Wright a participar em pleno. O resultado chamou-se Division Bell e recebeu uma reacção
muito mais positiva da crítica por oposição a Momentary Lapse… criticado como cansativo e feito de lugares
comuns.
Division Bell é mais um álbum conceptual onde se pode rever a
interpretação ou a visão de Gilmour em relação a temas discutidos por Waters
aquando da feitura de The Wall.
Depois do fantasma de Barrett, a
influência de Waters, como se a criação sob a chancela Pink Floyd nunca
conseguisse ser o resultado de uma personalidade única mas um somatório de
influências onde todos acabavam por estar presentes mesmo quando não estavam.
Em 1995 é lançado Pulse, um trabalho ao vivo que inclui
várias canções gravadas na tournée de Division
Bell em Earls Court em Londres. Um
concerto que conjuga um lado clássico com outro mais moderno da banda, uma
simbiose temporal. Seria também a primeira vez em duas décadas que a banda
tocaria the Dark Side of The Moon na
íntegra.
Em Novembro de 2005 os Pink Floyd
são indicados no Hall da Fama da Musica do Reino Unido. Gilmour e Mason
compareceram explicando que Wright estava hospitalizado em virtude de uma
cirurgia e Waters fez-se aparecer numa transmissão de satélite desde Roma.
Waters, Gilmour, Wright e Mason continuarão a trabalhar juntos uns com os
outros, ora em trabalhos a solo ora em concertos da banda que juntou as suas
existências. Gilmour reconheceu um dia que não havia razão nenhuma para ele e
Waters continuarem de costas voltadas. Até porque para trás havia uma vida em
comum, um caminho repleto de acontecimentos extraordinários, momentos
inesquecíveis que não podia ignorar. Se um dia se encontrassem, naturalmente
cumprimentar-se-iam e falariam um com outro como sempre.
E esta afectividade e
reconhecimento dos méritos de cada um que sempre pairou sobre o grupo vem
apenas reforçar o valor daquela que foi uma das mais marcantes instituições
musicais de todos os tempos.
Em 2008 o membro e fundador dos
Pink Floyd Richard Wight morre aos 65 anos vítima de cancro. Muita da sua
influência ficará no último trabalho da banda, Endless River . Uma obra em forma de requiem que encerrará esta
saga sobre uma das melhoes bandas de sempre na história da música.
Artur
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