Ivo Ferreira
Portugal, 2016
Contrariando um pouco o título, CARTAS DA GUERRA é um filme de amor e transformação interna referenciado através da correspondência de um jovem médico para a sua mulher. Colocado no Leste de Angola durante dois anos (71 - 73) António vai enfrentar todo um cenário que, não lhe pertencendo o acaba por fazer pertencer à força da passagem dos dias. Ultimo reduto de compaixão e racionalidade é naquele apertado espaço das cartas que António tenta manter a sua sanidade mental, alimentar a sua capacidade de resistir e acesa a esperança de que tudo aquilo irá acabar um dia. E de facto, acabando nunca acabou nem nele nem em milhares de jovens que conservaram a sua passagem pela guerra por um vida inteira enquanto segunda pele. Do autor podemos saborear "Os Cus de Judas" em que todo o enquadramento é nesse período, embora uma parte substancial de toda a primeira parte da sua obra seja marcada de forma directa ou indirecta pelo mesmo tema.
Consciente de todo este processo de transformação que vai tomando conta dele, o jovem médico percebe que não sairá dali como entrou. E por isso faz da mulher a guardiã do António que era e que não volta a ser...que não se pode repetir no fim de tudo.
Pessoalmente entendo que este tipo de documento de uma vida (as cartas trocadas com a mulher) não deveria ser publicado antes da morte do autor. Por várias razões a começar pelo facto de serem demasiado íntimas e acabando na circunstância de pouco ou nada acrescentarem ao interesse colectivo. São momentos demasiado exclusivos ou demasiado intensos que tenham algum interesse em partilhar essa intensidade com outros. No entanto não deixam de ser a oportunidade para fazer um excelente filme onde revisitamos uma realidade histórica que devorou uma geração inteira, geração essa que está agora a chegar ao fim das suas vidas.
Com uma fotografia extremamente bem trabalhada ficamos perfeitamente esclarecidos com o deslumbramento de António pelas paisagens e pela exuberância da vegetação do continente africano. Acompanhamos a riqueza única da avaliação do elemento humano em condições extremas, seja dos portugueses seja dos naturais da terra. O melhor e o pior da espécie humana derramado e distribuído por todos em porções muito semelhantes sem espaço para julgar ou estabelecer prioridades. A consciência política que acaba impreterivelmente por vir ao de cima ao avaliar a glória de um império cansado e velho que insiste em não terminar, teimoso agarrado a qualquer coisa que o prenda no momento em que sopram os ventos da História.
Tudo visto e ponderado estamos perante uma história de amor num cenário de guerra, dentro da mutação de um homem que aprende à força as páginas negras da brutalidade humana, do escritor que nunca mais se esqueceu daquele tempo, do português que carrega consigo a herança, a responsabilidade e a memória de uma época. Um protagonista do seu tempo que manteve à tona da água a esperança na forma de um amor à prova de tudo, um homem que ainda hoje se sente parte daquele filme.
Artur
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