segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

SÃO OS PÉS

A parte do meu corpo que mais reclama por ti são os pés. Nestas noites de Inverno adormecem e acordam sempre frios mesmo que calce meias. Já lhes tentei explicar uma quantidade de vezes que é escusado, que vão ter que se habituar á tua ausência mas sem êxito. Consegui convencer o silêncio da casa quando entro, a ausência de luz e de cheiros agitados de vida na cozinha. Consegui explicar ao sofá que teria que se habituar a um corpo apenas à noite em frente à televisão e ele aceitou. Digo ao jornal todas as manhãs que só eu é que o vou ler, e ele percebe. Explico às camisas que terão de se contentar em ter um pior aspecto daqui para a frente e elas acabaram por se habituar á ideia. Digo às longas tardes de Domingo que só um para iluminar de Sol na fresta que nos coube em sorte na varanda das traseiras e elas ficaram satisfeitas de poder trabalhar menos. Até a sombra aureolada gravada na poltrona onde te sentavas para fazer a tua costura me cumprimenta já mais sorridente, encaixando mais optimista a ideia de uma silhueta diferente a ocupar o seu espaço. Também era isso ou ia para o meio da rua. Mas os pés não. Não se calam a perguntar por ti, quando é que voltas, como crianças incorrigíveis.
É claro que os convenci a quase todos a habituarem-se à falta de ti, excepto eu e eles, que entendemos dentro da nossa limitada compreensão que podias ter partido um pouco mais tarde, daqui a uns anos, sei lá quantos.
É certo que quem nos visse nos últimos anos pensasse que já estávamos mortos, só ainda não tínhamos recebido o aviso da Câmara Municipal a dizer que já tínhamos lugar no cemitério. É certo que passávamos os dias calados, ora no café em frente a dois descafeinados, ora em casa de expressão fechada tendo como única banda sonora o pêndulo do relógio que o teu pai nos ofereceu como prenda de casamento. O que é certo é que a tua morte contabiliza hoje um ano e tenho um mundo de coisas que ficaram para te dizer. A nossa vida era aparentemente vazia, sem agitação. Mas olha que a vida lá fora não perde para a nossa, consistindo num enorme buraco negro impregnado de agitação onde nada se passa. Mentira, roubo, ganância, ambição e, acima de tudo, uma enorme falta de amor, próprio e pelos outros. Aliás como sempre foi. Quando escolhemos viver juntos dentro deste casulo sabíamos perfeitamente porque é que o estávamos a fazer. Os nossos dois filhos lá andam, enrolados nas vidas agitadas deles. Nasceu mais um neto na Primavera que berra mais que o farol de nevoeiro do Bugio.
À tarde gosto de ir para o jardim e passar algum tempo com aquela rapaziada que de rapazes já nada têm. Jogamos uma bisca lambida em cima das mesas de pedra, jogamos ao dominó, dizemos uns palavrões e damos uns traques. Tudo actividades que tu nunca apreciaste. Por isso nunca insisti em praticá-las ao pé de ti. Afinal de contas o que eu queria dizer-te era que espero que tudo te corra bem, estejas tu no Céu ou noutro lugar qualquer ou mesmo em lugar nenhum. Seja como for há um sítio onde estás de certeza. Esse sítio é na falta de tempo que tive para te dizer um série de coisas, e claro, no frio dos meus pés…
ARTUR

5 comentários:

Carlos Lopes disse...

Ora aqui está um texto "com pés e cabeça", como sempre!

Anónimo disse...

So sad...mas bonito texto! A solidão na velhice é sem dúvida muito triste. Bjs

Artur Guilherme Carvalho disse...

Obrigado Carlos. Obrigado Sara.
ARTUR

redjan disse...

Fuck ... Artur ... deixaste-me com um fdp de um nózinho !!

jisjaqueline disse...

Comovente...Belos sentimentos...

As palavras agora...que ficaram por dizer... são menos importantes que recordar os bons momentos que viveram juntos!!
Tudo o que ficou de bom construirá melhor de novo!!

Kiss the World!!
Bj.gd.