A obra de Franz Kafka torna-se completamente inteligível quando é pensada a partir da sua situação assente numa tripla factura: um escritor checo que pensa e se expressa em alemão e que mantém com o judaísmo uma relação complexa e tortuosa. Por vezes, a fractura torna-se sutura, um permanente esforço de mediação; a maior parte do tempo, no entanto, alarga-se em imagens dialécticas sem circulação, numa espécie de impossibilidade que se expressa de forma notável na seguinte reflexão de Walter Benjamin:
"Já puderam perceber que, em toda a obra de Kafka, o nome "Deus" não aparece. E nada há mais vão do que introduzi-lo na interpretação dessa obra. Quem não entende o que proíbe a Kafka usar esse nome não entende uma linha sequer deste autor"
Compreendemos plenamente a ambiguidade da relação de Kafka com o judaísmo a partir da atmosfera anti-romântica em que a sua personalidade se forma, a que se vem misturar a religião e cultura judaicas como fonte da sua obra. Gershom Scholem chama a esta ambiguidade "teologia negativa": no universo de "O Processo" e "O Castelo", no mundo do indivíduo esmagado pela opressão da burocracia, do Estado e da "justiça", o Messias revela-se pela sua ausência brutal, pela negatividade do seu silêncio. A configuração do mundo contemporâneo, caracterizado pela ausência de liberdade e pela omnipresença da máquina estatal, não pode ser redimido, nem transformado, o que remete para uma concepção anarquizante do processo histórico: a História terá que "explodir", terminar, extinguir-se. Só então virá o Messias, depois do último dia. Assim, a relação de Kafka com Jerusalém caracteriza-se essencialmente pela inextricável relação entre uma dimensão teológico-política negativa, da qual a esperança parece estar ausente, manifestando-se numa recusa permanente de estabelecer uma relação efectiva entre o pensamento messiânico redentor, característico do pensamento judaico da Europa central, e o ideal utópico anarquizante, uma relação que poderiamos legitimamente esperar numa consciência que, de forma tão absoluta, percebeu a alienação do homem contemporâneo às mãos de um poder de tal modo totalitário que escapa à compreensão do senso comum. Registe-se, com alguma perplexidade da minha parte, não existir em toda a obra do escritor (pelo menos que eu tenha conhecimento) nenhuma referência ao universo judeu, nenhuma personagem judaica, uma única menção à fantástica atmosfera da Praga judaica. E, no entanto, Kafka tornou-se ele próprio o Judeu Errante, esse ser que não encontra em lado nenhum a sua pátria, em parte alguma a redenção da alma atormentada. E, no entanto, ninguém deixa de ficar arrepiado de horror premonitório quando lê "Na Colónia Penal" a descrição da sentença que é tatuada na pele do prisioneiro, ou a total arbritariedade do sistema judicial em "O Processo", ou inúmeros outros exemplos de como os pesadelos se tornaram realidade num século XX que não deixou de coleccionar catástrofe após catástrofe e de acumular ruína sobre ruína.
8 comentários:
O título deste post lembrou-me um livro “Kafka à beira mar” de Haruki Murakami. É um livro encantador, no verdadeiro sentido da palavra, leva-nos a um mundo de fantasia e de encantamento ao jeito de Gabriel García Márquez, para mim o mestre dos sonhos e mundos fantasiosos. Recomendo. Beijos
Arnaldo : Um belíssimo texto sobre alguém perdido no fundo de um quarto escuro mas com uma cabeça e uma sensibilidade do tamanho do Farol de Alexandria. Um homem a quem já considero um amigo, dada a generosidade e alcance de tantas coisas que me deu com as suas palavras e pensamentos. Só é pena não apareceres mais vezes por aqui. Um abraço.
SARA: o Murakami é um espectáculo embora um tanto ou quanto alucinado. Mas o KAFKA é fundamental em literatura...para tudo.Volçte sempre
ARTUR
Artur: alucinado!! eheheh, é mesmo!! basta referir que neste livro chovem sardinhas... :)é completamente passado...
arnaldo: welcome back... man !
Arnaldo: nunca me desiludes. Excelente texto, muitos parabéns por esta abordagem original do universo kafkiano.
Nuno
Arnaldo, meu caro, vê lá mas é se vais fazer o exame de Ética II e se fazes o trabalho de seminário. Bom texto ! Muito bem vista a questão do messianismo e da "teologia negativa". A Molder havia de gostar...
Um grande abraço
Arnaldo: Sim, senhor, grande texto. É pena seres tão preguiçoso, tão deixa-andar, tão "je-m'en foutisme" militante. Vê se apareces pelo Seminário. Estamos com saudades tuas e, quem sabe, os professores relembrem a tua cara e os teus ditos espirituosos. Bjs.
Caríssimo Arnaldo,
Kafka diria: Todos, à parte ou raios partam os totalitaristas.
Texto essencial, algo de transcedental. Um fragrância de impulse...Anos 80.
Cá espero o convite.
Abraço,
João Nuno
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