sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

PORQUE ME APETECE

Era Sexta feira, duas da tarde, e o calor caía sobre o bairro transformando-o num tempo parado de forno de padaria. Tinha feito o meu último exame naquela manhã e digeria o depois do almoço com o Osga e o Nato à frente dos restos mortais de três bicas e duas macieiras. Ninguém falava, até porque o tempo não estava para grandes paleios, secava a boca e entontecia as mentes. A certa altura, alguém perguntou " O que é que vamos fazer a seguir?", seguindo-se um silêncio de meia-hora. Alguém sugeriu ir à praia sendo de imediato metralhado por uma série de olhares e comentários desaprovadores " Tás parvo? Já viste a seca que é ir daqui até à Maria Pia, apanhar o autocarro até lá abaixo, e depois o barco para a costa ou o kimbóio até Carcavelos? Com este calor? Tem juízo,meu.A mim ninguém me arranca daqui hoje. Nem me consigo levantar" - E duques!! - respondeu o resto em coro. Passou mais algum tempo no silêncio da precária esplanada, até que um chiar de pneus acompanhado por roncos de motor engasgado se começaram a ouvir antes da esquina, lá ao fundo. Alguém balbuciou : "Aquele deve ser o Pinta". E tinha razão. em breves instantes o Datsun 100A apareceu à nossa frente em trejeitos de flamengo metálico a chiar travões e a sacudir chapa. Estacionou. Na nossa direcção, o Pinta caminhava a passo seguro, melena solta, indiferente à brasa que nos tolhia de movimentos. Saudou-nos dobrando as perninhas de alicate dentro de umas bermudas folclóricas."Então, pessoal? boraí à praia?"- Repetimos-lhe o que já nos tinha ocupado o pensamento." Não faz mal. Vamos no carro do meu velho. O Milho tá na Costa na tenda dos pais dele e disse-me para irmos lá ter para passar o fim-de-semana"- Olhámos uns para os outros. Subitamente, uma agitação vinda de lado nenhum tomou conta de nós. Apressámo-nos a pagar e a correr para casa para ir buscar calções, bonés, latas de atum, etc.
Em meia hora o Datsun 100A corria pela ponte fora a caminho da Costa. Lá dentro algazarra sem fim, berlaites a circular desde o bairro, nuvem de fumo a saír pelos vidros tipo paquete de luxo a deixar a barra a caminho de um oceano de dois dias de praia. No "cantante" gritavam os Sex Pistols, Never Mind The Bollocks, a única K7 disponível até Domingo. Ninguém se importava. Gritava a plenos pulmões: I am a anarchist, God shave the Queen e, antes de virar para a estrada da Costa já o carro seguia rumo a uma galáxia perdida nos confins da nossa mente.
No parque de campismo encontrámos o Milho "Fds, não me f... a tenda! Fds, não me estraguem o pano!" e o estupido do Passarola, mais velho que nós, sempre armado em paizinho, com o riso mais imbecil que se pode imaginar. O Milho tomou conta das operações, distribuiu lugares para dormir na tenda dos pais dele, regras do parque e hora de fazer o jantar. Comunista de várias lutas, tratou de organizar a dispensa, etiquetar víveres, distribuír tarefas. Pelo caminho choviam mines, Sagres e Super bock,jogos de raquetes e berlaites à fartazana. O Osga, a certa altura, resolveu fazer de estátua. Colocou-se à frente da tenda atrás dos seus eternos Ray-ban,olhar fixo no infinito, polegar direito preso no bolso das calças, estilo James Bond da Picheleira. No meio daquilo tudo apareceu uma miúda. O Som vai logo de meter conversa, apresentar os amigos, és de onde, vais ficar cá no fim de semana, etc. O Milho e o Nato aqueciam o fogareiro, eu e o Pinta jogámos raquetes até ele bater com a testa num poste da tenda do vizinho e retirar-se de jogo prematuramente com um galo para resolver. O Som continuou a sua palestra a caminho de lado nenhum. Já toda a gente tinha visto que a miúda era muito novinha, do estilo só posso saír à noite até às dez, depois tenho de voltar para casa,isto é, para a tenda senão o barrigudo do meu pai vem atrás de mim e dá-vos uma coça a todos só com a mão esquerda. Era quase de noite se bem que o Osga continuasse de óculos escuros exactamente na mesma pose. Às tantas a miúda, o único ser lúcido de todo aquele quadro antropologicamente desesperante de urbanodepressivos em fase de descontracção, resolveu despedir-se. Disse até amanhã, gostei muito de vos conhecer, são uns gajos muito simpáticos.Só é pena aquele vosso amigo ali, além de não se mexer não diz nada.
Sentámo-nos para jantar umas febras assadas, vestimos umas sweatshirts para a humidade. Continuaram a caír mines e berlaites. Esquecêmo-nos completamente do Osga que lá continuava, óculos de Sol, na mesma posição. Quando já fumávamos o último antes de retirar para os sacos camas em estado quase comatoso, o Osga resolveu falar: Não digo nada??- cabeça para uma lado, cabeça para o outro.- Se calhar é porque não me apetece...
ARTUR

3 comentários:

José Ceitil disse...

Artur, um grande abraço para ti..., porque me apetece!

Carlos Lopes disse...

Artur, a mim tamb�m me apetece. Ontem estive nos Xutos a falar com o Z� Pedro. O gajo mandou-te um abra�o.

Artur Guilherme Carvalho disse...

Zé: É assim. Quando apetece ficamos parados à espera sem nada para esperar...por um destino que nos sirva...
Carlos: É fantástica a sensação de deambular no backstage. E se fôr no deles torna-se inesquecível.Tocou-me a mim na fase mais romântica dos XUTOS e ficarei com lembranças desses tempos até á morte. Um abraço para o Zé e para ti também.