sábado, 1 de dezembro de 2007

MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO


MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO

Mário de Sá-Carneiro (1890-1916) passou pelo mundo como um raio de luz, intenso, brilhante e breve. Teve no entanto tempo suficiente para nos deixar uma obra onde genialidade e criatividade se entrelaçaram num bailado sublime que os Deuses nos deixaram observar por uma nesga da sua porta.
Uma das formas mais completas de abordar a sua obra deve ter em linha de conta três vectores fundamentais, ou seja, a ficção em prosa, a poesia e o movimento do Orpheu.
Mário de Sá-Carneiro inicia a sua carreira individual como contista (Princípio (1912); A Confissão de Lúcio (1914); Céu em Fogo (1915)), e só a partir de 1913, em Paris, principia a sua actividade poética (Dispersão (1914); Indícios de Oiro (1937)).
De uma forma geral a sua obra tem como tema central a crise da personalidade, bem como a inadequação entre o que se sente e aquilo que se desejaria sentir. Tanto em Céu em Fogo (novelas), como na Confissão de Lúcio (romance), o que sobressai é a ideia de um tédio enorme perante um quotidiano banal e insuportável; uma fuga para mundos fantásticos ou quiméricos onde a obsessão pela morte e pelo suicídio são as únicas soluções encontradas. A ficção em prosa revela não só a dramática dissociação entre a realidade e a idealidade como também a permanente compulsão do autor para a ultrapassagem de si próprio enquanto mera pessoa social e existencial, ao contrário, visando o excepcional, o raro, o singular, o maravilhoso. Para isso socorre-se da invenção de um mundo quimérico e fantástico, vislumbrado através de uma imaginação essencialmente sensorial e estética. Mas a construção do fantástico, ao invés de se deter pelo lado mítico ou sequer do sobrenatural, antes explora a magnificação das sensações, percepções e sentimentos. Esta magnificação ou delírio sensorial, obtido porventura através do álcool ou do ópio, era uma caminho já antes trilhado por desiludidos como Baudelaire e Rimbaud ( poetas simbolistas e decadentistas), além de Camilo Pessanha e Eugénio de Castro, referências de influência na obra de Mário de Sá-Carneiro. Ao aspirar por mundos quiméricos, espantosos, alucinatórios, etc, os criadores acabam por tropeçar de novo num mundo implacável e que, rejeitando toda e qualquer infracção à sua norma, traz consigo a marca da frustração universal.

O ORPHEU
Mário de Sá-Carneiro deve ter conhecido Fernando Pessoa, de acordo com António Quadros, entre o Inverno de 1911 e o Outono de 1912. Passando o primeiro a maior parte do seu tempo em Paris e tendo o segundo formado a sua adolescência na África do Sul, juntos formarão a alma do último grande movimento estético e artístico no nosso país: a escola modernista portuguesa. A eles juntam-se nomes como Luís de Montalvor, Armando Corte Rodrigues, Guilherme de Santa Rita ( ou, Santa Rita pintor), Raul Leal, José Pacheco, António Ferro, Almada Negreiros, Augusto Cunha ou Alfredo Guisado entre outros. O grupo vive durante um breve período um clima de verdadeira exaltação criadora, não só rara entre nós, mas realmente ao ritmo febril da Europa de então. Alguns viveram por sua própria conta todo o entrechocar de tendências que tinham irradiado de Paris, que receberam em Lisboa uma interpretação extremamente original. É extremamente particular o futurismo de Pessoa e de Almada, de Santa Rita Pintor ou do próprio Sá-Carneiro que o ensaia no poema "Manucure". Santa Rita, Amadeu de Souza Cardoso, Almada Negreiros ou Eduardo Viana fazem experiências cubistas, por vezes logradas e com a marca de um carácter muito portuguêss, mais moderado na concepção embora muito mais vivamente cromático, no caso dos três últimos.
Toda esta agitação do grupo atinge o seu clímax em 1915, ano em que aparecem as novelas Céu em Fogo, o ano em que Sá-Carneiro escreveu a maioria das suas poesias postumamente publicadas sob o título Indícios de Oiro, o ano do Orpheu.
O primeiro nº, saído em Março de 1915, foi um tremendo êxito. Onde a opinião pública encontrava claros sinais de degenerescência, facilmente se conseguiu também reconhecer que as suas atitudes correspondiam a um sentimento geral e ainda latente de crise. Particularidades de formação e de temperamento relacionáveis com uma maior instabilidade social, e com influências cosmopolitas mais ou menos directas, haviam-nos alheado, tanto do idealismo republicano como das reacções críticas que ele despertara. O segundo nº sai em Julho do mesmo ano, mantém o êxito mas a Sá Carneiro dá-lhe o amok e regressa a Paris. O seu pai, o financiador da publicação destes dois números, comunica-lhe que se voltou a casar e que embarcava para Moçambique, sendo-lhe impossível continuar o financiamento. O Orpheu termina nesse momento.

A POESIA
É nos últimos tempos de vida que se desenvolve a sua veia poética em todo o seu esplendor. "Caranguejola", "Crise Lamentável" e "Fim" são a testemunha de uma angustiosa cisão interior, de que o poeta teve lúcida consciência e com a qual travou uma constante luta. Luta que constitui a própria matéria dramática da sua obra. Ao lado da sua pulsão para a morte e o suicídio coexistiu na psique do escritor um complexo de Eros, um desejo de vida, de realização humana e de amor. E se o primeiro acabou por triunfar, o certo é que Mário de Sá-Carneiro o enfrentou, o desafiou e tudo fez para o vencer.
Com os mitos órficos, segundo os quais os homens, nascidos dos restos dos titãs, destruídos por Zeus por terem morto o seu filho Dióniso, de cuja carne provaram, possuíram pois uma dupla natureza, atitânica ou terrestre e divina. O conhecimento transmitido aos iniciados nos mistérios órficos, segundo o ensinamento do Orpheu, tinha uma finalidade moral, a de combater o titânico ou terrestre no humano, para fazer triunfar o divino. Pessoa e Sá-Carneiro foram pois poetas de inspiração órfica, no sentido grego e iniciático, o que dá uma outra consistência ao título da sua revista.
Os poemas do livro "Dispersão" são a relevância do diálogo entre Simbolismo e Modernismo. Ou o poeta se desespera por não conseguir alcançar o celeste, o divino, o feérico ou o ideal, embora julgando que no seu delírio poético se aproxima; ou pelo contrário se angustia ou mesmo desespera porque não se adapta à vida e à sua própria personalidade existencial de homem gordo, desajeitado, socialmente desintegrado.
Mimado na infância e filho único, julgou-se um predestinado para grandes feitos, só que o choque com a realidade desorientou-o.

O FIM
Sá-Carneiro foi o primeiro a sucumbir desta aristocracia de mentes iluminadas à procura de um espaço áureo e rarefeito, inacessível ao comum das pessoas, mas que correram o risco real de perecer. Toda a sua poesia testemunha essa tentativa de voar até ao Sol, como Ícaro, e ao mesmo tempo a sua autodestruição.
Raul Leal soçobrou também, na perturbação de um desequilíbrio mental não deixando de exibir intuições fulgurantes acerca do “paracletanismo” de que se considerava representante.
Luís de Montalvor, desaparecido tragicamente no afundamento do seu automóvel no Tejo, ter-se-á ,segundo alguns, suicidado.
Armando Corte Rodrigues encontrou refúgio na dedicação à cultura açoriana.
Almada Negreiros salva-se através do seu casamento com Sarah Afonso e com um furor expressional e megalómano que, iniciaticamente, desembocou no encontro com a sabedoria grega e com a procura do número do ouro.
Fernando Pessoa foi o precursor de uma iniciação psicológica-alquímica, através das transmutações dos heterónimos que o protegeram de uma queda mais rápida. Para ele o álcool foi um suicídio lento, enquanto que, para Mário de Sá-.Carneiro, a estricnina foi um suicídio rápido.
Estivemos a falar, ainda que de forma muito breve e superficial, acerca da última grande geração portuguesa de artistas, geração essa na qual Mário de Sá-Carneiro foi sem dúvida o Príncipe.
ARTUR

5 comentários:

Carlos Lopes disse...

Maior que Pessoa. O MAIOR!!!

Artur Guilherme Carvalho disse...

CL: E do texto sobre o "Esfinge Gorda", o que é que achaste ??
ARTUR

Carlos Lopes disse...

Isso nem se pergunta, Artur. Mesmo que acabes o texto dizendo que é "superficial", isso não é verdade. Bom texto, como sempre. Se fizer com que algumas pessoas passem a conhecer melhor o grande Sá-Carneiro (ou seja, ele próprio, o outro), jé fizeste a tua boa acção do ano.

O tipo era marado, mas genial;-)

Artur Guilherme Carvalho disse...

CL: Obrigado. Espero que tenha servido para alguma coisa. Já agora o teu texto sobre um gajo chamado Artur a falar com o editor tava o máximo. Só agora é que o consegui ler. Força
ARTUR

免費a片下載 disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.