segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

PARA NÃO ME ESQUECER

Eu trago um buraco no Futuro
Traz presentes fugidios...e memórias de navios.
Traz tanta confiança
Que se é sempre criança
Mesmo quando não se quer
O que foi não volta a ser...
Xutos&Pontapés

Olho da janela do Tempo para o lado onde corre em pressas inadiáveis o caudal dos acontecimentos, pensamentos e frases de um texto que acaba por ser uma existência. Nem uma se consegue agarrar para amostra, apenas ouvir num repente audio e saborear o resíduo deixado brevemente. Olho para o outro lado e tudo está no mesmo lugar de onde nunca saíu, suspenso no seu tempo de não ser nada, arquivos, memórias, recordações, sensações armazenadas no pó das prateleiras. Desse lado o Tempo não é tempo nem é nada, apenas uma massa anónima de imagens, apenas uma linha contínua onde tudo se passa ao mesmo tempo, devagar. Na coexistência de todos os acontecimentos vou formando um todo; na velocidade inalcançável do outro lado vou tentando apanhar com o camaroeiro dos registos, pedaços do "acontecer", irremediavelmente incompletos. E entre um lado e outro da janela suspiro ante a impossibilidade certificada de nunca ser Todo, de nunca poder ser Absoluto. Se sei trajectória e velocidade, escapa-me a localização; se localizo, não consigo calcular caminho e andamento. E por aqui me fico, nesta catarse quântica que não aquece nem arrefece, a sonhar com manhãs de universo completo, perdido nos nós das frases, escondido na busca da palavra certa para dizer meia duzia de coisas, para contar uma história da melhor maneira que ela o possa ser, sabendo que nunca o conseguirei. Para não perder os dias em depressões e nostalgias recuo para um dos lados da janela. Aquele precisamente em que tudo está a acontecer ao mesmo tempo...e respiro. Esfolei os joelhos a andar no triciclo. Fui contra a porta e a dor física é ainda uma sensação nova, quase insuportável. A minha avó vai buscar a água oxigenada, coloca-me o penso sobre o joelho e pergunta-me se quero ir comer um bolo à pastelaria. A dor recua de forma inexplicável ante a visão do bolo na minha mão, o seu sabor, o prazer de o devorar. E assim vai doendo cada vez menos. Também nos dias que passam é preciso recuar, ou voltar ao lugar que ainda é presente. Por isso tento nunca me esquecer que tinha um triciclo, uma ferida no joelho e a miragem de uma viagem à pastelaria para comer um bolo. Preciso de me lembrar de não me esquecer de ser criança até morrer.
ARTUR

3 comentários:

redjan disse...

Cum car .... Art ... que puta de maneira boa de não morrer !!!!

Carlos Lopes disse...

Passamos a vida a esfolar os joelhos. Mesmo agora que já não somos crianças de calções. E a comer bolos com as mãos de tempos que já foram nossos. Fisicamente nossos.
Ganda texto.

Anónimo disse...

e assim passamos a vida, entre o que importa e não importa, porque o joelho deixou de ser joelho e dói que se farta e perdemos a capacidade de esquecer a dor, e recorrer ao prazer inocente do sabor duma promessa para sarar um joelho que sangra, um coração que estilhaça, uma vida que aperta....tão simples, tão simples, continuar a ser crianças...será?